TONINHO DO LICEU, MEU AMIGO...
Calfilho
Estava distraído escutando o resumo dos acontecimentos da véspera, não mais de dez minutos... O telefone toca... Fiquei um pouco preocupado...
“Àquela hora”, pensei... “Não deveria ser coisa boa...”.
Já tivera duas experiências extremamente dolorosas quando o telefone tocou no início da manhã. Uma, em agosto de 1963, comunicando a morte de meu pai, num trágico acidente nas barcas, quando voltava do Rio para Niterói. O outro, recente, do meu filho mais novo, em outubro de 2007, assaltado e jogado de um viaduto após sair de uma festa no Rio de Janeiro, quando se preparava para voltar a Niterói.
Mas, ainda sonolento, atendi o telefone, com o espírito totalmente desarmado...
-- Oi, Carlinhos, bom dia, desculpe se estou te acordando – disse uma voz de mulher do outro lado da linha.
-- Bom dia, quem está falando? – perguntei, com uma ponta de curiosidade, esfregando os olhos para espantar o sono.
-- Aqui é Zezé.
Estranhei, mas não me surpreendi. Dias atrás, quarta feira, havia tido uma longa conversa interurbana com Toninho, eu no Rio, ele em Paraisópolis, pedindo sua opinião sobre uns exames que havia feito... Afinal de contas, eu tinha um clínico geral que me atende há mais de 20 anos aqui no Rio, mas sempre pedia uma segunda opinião a Toninho, em quem eu confiava muito mais...
Não era nada de extraordinário, apenas e somente 50 anos de amizade... No nosso último encontro bimestral da turma da praia, lá na Academia de Niterói, chamei-o de lado, mostrei meu tornozelo inchado e comentei sobre minha preocupação... queria sua opinião.
Teve até gente do nosso grupo que gozou:
-- Porra, o cara tá dando consulta em botequim, tem que cobrar... Eu, brincando, mandei o cara à merda e Toninho, naquele seu jeito gozador de sempre:
-- Vem cá você também, se quiser eu te examino...
Perguntei:
-- Oi, Zezé, tudo bem? Toninho ligou? Estava esperando uma resposta dele sobre meus exames...
Ela respondeu, a voz já embargada pela emoção:
-- Não, Carlinhos, ele não ligou. Ele morreu...
A sensação que tive foi de ter levado um soco na boca do estômago... Não consegui respirar, as palavras não saíam de minha boca... Depois de alguns segundos de silêncio consegui falar, apalermado, voz de idiota:
-- O QUÊ? NÃO BRINCA COMIGO A ESSA HORA DA MANHÃ...
Zezé, já não conseguindo segurar o choro:
-- Foi num desastre, na Dutra, perto de Piraí...
Eu não sabia o que dizer. Olha, que estava acostumado com a morte, depois de dez anos como juiz do Júri... Ali, vi e senti todos os tipos de emoções... Mães que perdem filhos, mulheres que perdem maridos, assassinos frios e cruéis, mortes inesperadas, muitas delas por motivos banais...
Tentei recuperar o controle.
-- Zezé, como foi isso? perguntei, sem saber direito o que perguntava.
O filme da minha vida começou a passar rapidamente em minha mente. As cenas se atropelavam, as épocas se misturavam, a dor era tão grande que eu não conseguia dimensioná-la.
Zezé falava:
-- Foi num acidente, ele vinha de carro para o Rio, capotou três vezes, quebrou vários ossos, o corpo está no necrotério de Volta Redonda... Já liguei para o Renato, ele ficou de avisar o resto do pessoal de vocês... O corpo chega por volta de onze horas, o enterro é às quatro da tarde, no Parque da Colina, capela 1...
O filme continuava a rodar em minha cabeça em velocidade máxima... Não sei, lembrava-me de Toninho ainda cheio de cabelos, aos doze, treze anos de idade, correndo atrás de uma bola de meia na pista de terra do Liceu, já que só os mais velhos tinham direito de jogar futebol nas quadras de vôlei e basquete... Para nós, calouros, só restavam as pistas de atletismo e o campinho do necrotério. Depois, vinha a imagem de Toninho careca, carregando Alessandra no colo, com apenas dois anos e meio de idade, quando fui visitá-lo em Paraisópolis, na época em que iniciava sua carreira de médico. Essa imagem misturava-se com aquela do dia em que eu, ele, Irapuam e Silvinho, viajamos para Campinas para o casamento de Celso, nosso colega do Liceu... Depois, veio-me à mente a imagem do nosso quarto ano ginasial no Liceu, quando estudamos na mesma turma e nossa amizade se solidificou. Suas descidas do lugar humilde onde morava, tomando o ônibus 24 – Palmeiras-Centro, para irmos até o Canto do Rio, para jogarmos futebol de salão, assistir um cineminha às terças feiras, brincarmos o carnaval ou mesmo acompanhar o clube nos diversos estádios cariocas, quando disputava ele a primeira divisão do campeonato do Rio de Janeiro... Ele torcia pelo Flamengo, eu pelo Botafogo, mas éramos Canto do Rio acima de tudo...
Disse para Zezé:
-- Olha, não sei se vou conseguir ir ao enterro. Estou tomando remédio para pressão, essa notícia mexeu em tudo comigo. Vou ligar para o meu médico e ver como está a pressão. Desculpe, Zezé, a gente se conhece, você deve saber como estou me sentindo. Peça desculpas ao resto do pessoal se eu não for. Vou ligar para o Renato e ver quem eu posso avisar... O filme continuava a rolar... Vieram cenas de eu visitá-lo várias vezes no Buraco do Juca, lá no final da São Januário, no Fonseca, à direita, na subida do morro, conversar com Dona Edith, sua mãe, com Lourdes, sua irmã, com Amaurílio, o irmão mais velho... Voltavam-me imagens dele me visitando em meu apartamento, na Amaral Peixoto, onde eu morava naquela época do Liceu... Terminamos o ginasial, ele foi estudar à noite, para trabalhar durante o dia e ajudar a família no sustento da casa. Eu continuei no científico de manhã, preparando-me para o vestibular de medicina, para seguir a carreira do meu pai... Mas, dali em diante, nunca mais perdemos o contato...
Já no Grêmio do Liceu, convoquei-o para o time de futebol de salão do colégio, colocando-o logo no primeiro time, pela qualidade do seu futebol... João Carlos Maia, Paulo Massa, Toninho Matheus, Ronaldo Ganso e Sérgio Frigideira, esse o primeiro time de futebol de salão do Liceu, invicto em mais de 80 jogos... Foi o primeiro a vir do turno da noite para o time do Grêmio... Depois, veio o Dario Seixas... O resto, inclusive o segundo time, era todo do turno da manhã... Foi a nossa época de ouro... Jogávamos futebol de salão no Liceu, em Neves, no time do Robertinho Siri (também liceísta), frequentávamos o Canto do Rio durante a semana, nos sábados ou domingos acompanhávamos o time nos diversos estádios da cidade, brincávamos o Carnaval na rua da Conceição, frequentávamos o Riviera, o Manuel’s, a Gruta de Capri, íamos a festinhas em casas de liceístas e no Regatas todos os fins de semana... Fora as excursões a Angra dos Reis, Marambaia, Cachoeiro do Itapemirim...
Depois, ficamos adultos...
Telúrio, mais velho que nós, mas meu colega de turma no Liceu, teve a idéia de formar um grupo, inicialmente de ex-liceístas, mas que foi sendo aumentado de outros vários amigos, para jogarmos uma pelada descompromissada aos sábados na Praia de Icaraí. O local escolhido foi o trecho entre Presidente Backer e Lopes Trovão. Começamos, timidamente, no final de 1960. Já conhecia Toninho Pêssego do Canto do Rio, que, apesar de não ser liceísta, era conhecido de praticamente todo mundo do grupo recém-formado. Vieram Alvinho, Madeira, Paulo Fernando, seu irmão José Carlos, Pinheiro, Paulo Cezar, Jorge, Paulo Moll, Anésio, juntando-se aos ex-liceístas Oswaldinho, Pedro Aurélio, Cezar (irmão de Oswaldinho), João Henrique Papoula, Irapuam, Joza, Silvinho, Laércio, eu, Francisco Roberto, Renato, Serginho. Mesmo alguns que não eram muito chegados aos encantos da bola, mas sendo ex-liceístas, conheciam quase todo mundo, por isso incorporaram-se ao pessoal, como o Nelson e o Dráusio. Como sempre, convidei Toninho para integrar o grupo e ele chamou Adalto, seu irmão para juntar-se a nós.
Depois do futebol na areia, que às vezes ia quase até o meio dia, alguns de nós dirigiam-se ao Luciu’s, misto de bar e mercearia, na esquina de Tavares Macedo e Lopes Trovão, para relaxar um pouco e curar as feridas que algumas entradas mais ríspidas da pelada tinham deixado em nossas pobres canelas.
Eu, que pretendia fazer medicina, seguindo a carreira do meu pai, acabei fazendo Direito e Toninho formou-se em Economia e Medicina...
Ironias do destino...
Adalto, irmão de Toninho, que eu conhecia apenas superficialmente, solidificou uma grande amizade comigo e, também formado em Direito, acabamos sócios de escritório e ele foi aprovado em concurso para Defensor Público do Estado.
O tempo passou rapidamente...
Os anos sucederam-se sem que tivéssemos a real noção dessa velocidade...
Toninho formou-se em Medicina, fui à sua formatura em Volta Redonda... Depois, foi trabalhar em Paraísópolis, interior de Minas, onde fui visitá-lo e conhecer sua filha, então com pouco mais de dois anos de idade e Maria José, sua mulher... Sempre nos falávamos, apesar da distância e das carreiras diferentes... Há uns três anos atrás, até por coincidência, viajamos juntos para a Europa, eu, minha mulher, Toninho e Zezé... Polônia, Hungria, República Tcheca, Suécia, Noruega, Rússia, Letônia...
Certo dia, no início de 2005, ele me telefona de Paraisópolis:
-- Carlinhos, porra, vê se consegue localizar o pessoal do futebol da praia, para a gente marcar um encontro, um bate-papo. Se não, vai acabar que só vamos nos encontrar em enterro, em cemitério...
Eu comentei:
-- Tudo bem, vou tentar... Mas, acho difícil, tem muita gente que talvez não se interesse em ir, tanto tempo se passou... A última vez que vi alguns deles foi no casamento de minha filha, em 88. Você, Irapuam, Toninho Pêssego, Renato, Joza, Silvinho, Jorge, segundo me lembro... Silvinho já morreu, menos um... Não sei o telefone do resto do pessoal. Mas, em todo caso, vou ligar para Renato, talvez ele saiba.
E, assim fiz. Falei com Renato, ele contatou alguns do grupo e fizemos nossa primeira reunião na Gruta de Capri, em maio de 2005. Poucas pessoas compareceram. Dali em diante, foram vários encontros na Academia de Niterói, em São Francisco, já agora com a quase totalidade dos integrantes originários dos craques da década de 60, da Praia de Icaraí. E, Toninho, o idealizador dessas reuniões, um dos seus mais assíduos frequentadores, morreu...
A inevitabilidade da morte é algo que temos que aceitar e aprendermos a com ela conviver... Mas, é muito duro quando essa dor nos atinge tão de perto... Parece que um pedaço de nós se perde, é arrancado de nosso corpo, sentimo-nos mais frágeis, mais vazios...
Triste, não é? Zezé continuava a falar ao telefone, passando-me outros detalhes da morte, do enterro... Eu não ouvia mais nada... Uma dor no peito me angustiava, não me deixava respirar... O filme continuava a passar diante dos meus olhos...
Toninho morreu...
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