CALF
Verinha olhou para o relógio.
Faltavam apenas dois minutos para tocar a sirene.
Não poderia esperar mais, tinha que ir para a sala. “Ele não chegava, porra” , praguejou mentalmente.
Seu coração disparava, não conseguia esconder a ansiedade estampada em seus olhos. Silmara, sua colega de carteira desde o primeiro ano do ginásio, chegou perto dela. Puxou-a pelo braço, dizendo:
– Vamos, ele deve ter se atrasado, ou não tem a primeira aula. Por isso se atrasou.
A sirene tocou, convocando os alunos para mais um dia de aulas. Sete e quinze da manhã, em ponto.
O pátio começou a se esvaziar, os alunos das várias séries do turno da manhã procuravam suas salas,
Verinha, já no corredor, nervosa, ainda deu um último olhar para trás, em busca de Rogério. O uniforme azul e branco do Liceu cintilava em seu corpo, limpinho, engomado. como sua mãe gostava que ela fosse para o colégio todas as manhãs.
Não conseguia se concentrar na aula. A professora de história falava sobre a vida de Joana D’Arc, mas seu pensamento passeava por aquelas tardes que ela e Rogério, de mãos dadas, caminhavam calmamente pela calçada da Praia de São Francisco.
Aquela era a fase mais deliciosa da sua vida.
Aproveitava cada minuto, cada segundo, não deixava nada escapar-lhe das mãos. Curtia o seu Liceu, era boa aluna, diretora do Grêmio, fora, a pedido de Carlinhos, quem redigira o seu primeiro estatuto. Adorava passar as manhãs, quando não tinha aula, naquela salinha apertada do Grêmio, lá no fundo do corredor, junto à escada que dava para aquela ruazinha atrás do Liceu.
A turma, ali, era muito gostosa de estar junto. Carlinhos, Josa, Irapuam, Carrano, Joãozinho, Silvinho e alguns outros que ali apareciam de vez em quando.
De menina, só ela.
Independente, resoluta, não tinha satisfações a dar de sua vida. Por isso, era a Verinha do Saco (de São Francisco). Gostava de fazer o que queria, ajudar os meninos do Grêmio na confecção de carteirinhas, programação de esportes, excursões, etc... Pouco se importava com que os outros diziam.
“Verinha só anda com aquele pessoal do Grêmio, gente que não gosta de estudar, que só pensa em festas, beber cuba-libre e hi-fi”.
“Dali, não vai sair ninguém que se aproveite, ninguém vai se formar, vão ficar por aí parasitando”, era o que os outros alunos e até professores comentavam.
Era apaixonada por Rogério, seu deus encantado. Moreno, alto, estudava numa série antes da dela.
Apaixonou-se à primeira vista.
Foi numa parada de Sete de Setembro.
O Liceu, impecável, uniforme azul e branco, fazia o aquecimento da bateria no Jardim São João, perto da Catedral de Niterói.
A bateria, comandada por Azer, fazia rufar os tambores. Bumbo, surdos, caixas e taróis repicavam sob o comando do apito do velho zelador, em estado de graça no seu uniforme de gala, calça azul marinho, camisa branca de mangas compridas, o reluzente LNP bordado no bolso esquerdo.
“LICEU, CAMINHEMOS A CANTAR...” – os alunos ensaiavam, cantando em voz baixa o hino do colégio...
Verinha, no auge dos seus dezesseis anos, era a porta bandeira do colégio. Orgulhosa, vestindo saia azul (era a única que tinha a saia acima dos joelhos) e blusa branca, o escudo do Liceu no ombro esquerdo, a gravata azul frouxa no pescoço, agitava nas mãos a bandeira grande do colégio, só usada em ocasiões especiais. Enorme, azul escuro, com a inscrição LNP em letras brancas em losango, no meio.
“LICEU, PATRIMÔNIO A RESGUARDAR...”, continuavam os alunos a cantar baixinho, aquecendo as vozes para o desfile.
Rogério, um menino de quinze anos, ficou encantado com a coreografia de Verinha, que fazia girar a bandeira do colégio em volteios graciosos, cheios de graça.
Aproximou-se dela , timidamente. Disse:
– Puxa, tá muito bonita essa bandeira. Onde você aprendeu a fazer tudo isso, fazer ela rodar assim?
Ela, rainha do Grêmio, olhou para ele pela primeira vez. Olho no olho, encantou-se pelo rapaz. Parecia com Elvis Presley, seu ídolo máximo. Ainda tentou manter sua posição de veterana, estrela da bateria:
– Gostou?
Ele olhava para ela, extasiado, ar de encantado, sem nada dizer.
– De que série você é? – ela perguntou.
– Quarta. Do ginásio – conseguiu ele responder, ainda sem tirar os olhos dela, admirando suas evoluções com a bandeira.
Amor à primeira vista.
Começaram a namorar, ele ia todas as terças, quintas, sábados e domingos a São Francisco, àquela época um bairro distante e esquecido de Niterói. Não havia água encanada, esgoto, calçamento só na Quintino Bocaiúva, a rua da praia. Ele, para chegar lá, tinha que pegar o trolley 5, dirigido por Roberto, um negão forte, que conhecia quase todos os ainda poucos moradores do bairro.
Verinha morava na Tapuias, na primeira quadra, num dos poucos edifícios de quatro andares que ali existiam.
O namoro era conhecido de todo Liceu. Nos intervalos de aula, no recreio, Rogério e Verinha passeavam de mãos dadas pelos corredores, pela pista de terra, quadra de basquete, dividiam uma merenda num dos bancos de cimento do enorme pátio coberto de telhas, trocavam um beijo escondido junto ao coqueiro da quadra de vôlei.
Sim, porque o Liceu tinha tudo isso naquela época: quadras de vôlei e basquete, campo de futebol, pista de atletismo, um enorme pátio para o passeio dos alunos. “Hora do Grêmio” no alto-falante no recreio, tocando músicas dos The Platters, Elvis, Little Richard...
Só não curtia o colégio quem não queria. Ele tinha tudo a nos oferecer.
A sirene tocou, encerrando a aula de História. A professora saiu, alguns alunos e alunas foram ao banheiro fumar um cigarro escondido.
Dez minutos depois, o som estridente outra vez. Ia começar outra aula. Dª. Nícia, professora de Matemática, sempre com aquele sorriso bondoso na boca, cumprimentou os alunos.
“Nada de Rogério” – pensou Verinha, já irritada.
***
Verinha não casou com Rogério.
Rogério não casou com Verinha.
Será se ainda estão apaixonados um pelo outro?
***
2 comentários:
Oi, Calf,
Como sempre amei o romance, muitobem escrito, predendo a gente do princípio ao fim!
Os outros contos, eu já os conhecia e quando os li gostei muito, também!
Voltarei a ler o romance com mais calma. Icaraí, Regatas, ..., sempre Niterói e magistrados, não é amigo?
Parabéns, continue, não pare, não nos prive de suas boas e agradáveis obras.
Um grande abraço.
Pedrita Zita
Vim apenas conhecer. Li pequenos trechos, era inevitável. Vou voltar e ler com atenção.
Abraço, Meritíssimo.
Jorginho
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