segunda-feira, dezembro 28, 2020

ABUSO DE AUTORIDADE... EXCLUDENTE DE ILICITUDE...

 

ABUSO DE AUTORIDADE...

EXCLUDENTE DE ILICITUDE...

 

Calfilho

 

 

 

 

Lamentável, para não dizer revoltante...

Quantas vezes este ano que está por terminar, o macabro 2020, nos trouxe, nas páginas dos jornais ou noticiários da televisão, mais um caso de morte de inocentes, muitos deles simples crianças, a maioria moradores de comunidades carentes, envolvendo policiais militares (em sua grande parte) ou civis? E, também, seguranças de estabelecimentos comerciais.

A pandemia da COVID-19 é a pior coisa que aconteceu este ano, para torná-lo tão macabro. Já ceifou a vida de quase 200 mil brasileiros. Mas, a morte de inocentes, em “confrontos” em que a polícia esteve envolvida, ou mesmo quando este sempre alegado “confronto” inexistiu, talvez tenha sido a segunda pior tragédia deste 2020 que ora se finda.

É a tecla em que venho batendo desde o início de minha atividade profissional, a maior parte passada na área criminal: temos que ter muito cuidado em preparar psicológica e profissionalmente nossos policiais (ou seguranças particulares) antes de entregar-lhes uma arma de fogo. Em tese, para nos defender, mas, que, muitas das vezes, acaba virando contra a própria sociedade, ceifando vidas de inocentes. E, olhe que não são armas leves, quase sempre poderosos fuzis, armamento de guerra.

É claro que a criminalidade evoluiu muito nesses últimos 30 anos. Organizou-se, armou-se com armas contrabandeadas, também de grosso calibre, e os jornais televisivos mostram que eles transitam livremente pelas comunidades mais carentes portando ostensivamente todo esse armamento. Criaram-se as milícias, cujos membros, em grande parte, são ex-policiais expulsos de suas corporações ou contraventores ligados ao conhecido jogo do bicho, e parecem querer dominar o espaço público. Assaltam caminhões de carga nas estradas, constroem irregularmente prédios em terrenos públicos, cobram taxas de segurança para os pequenos comerciantes das comunidades e mesmo de bairros afastados, usam o terror como arma principal para obter o domínio da região.

Lógico que é sabido que essas quadrilhas se refugiam nessas comunidades, pois sabem que ali falta quase tudo, onde o Estado não está presente e é muito fácil controlar aqueles que necessitam de transporte, de comércio, de luz, gás, internet, etc... A polícia raramente aparece nessas comunidades e, quando o faz, age de forma atabalhoada, agressiva, truculenta, invadindo barracos, intimidando moradores honestos, que trabalham, que estudam, que lutam por uma melhor situação de vida.

Por isso, necessário que a polícia esteja fortemente armada para enfrentar um inimigo de tão alto poder de violência e intimidação. Mas, antes de tudo, que os policiais que vão usar estas armas estejam psicologicamente preparados e treinados para esse uso. Não podem entrar nas comunidades atirando a esmo, temerosos de qualquer movimento suspeito que pensam ter visto, e atingindo inocentes que ali residem por não terem outro lugar para morar.

Infelizmente, não é isso o que se vê.

A grande maioria de nossos policiais (civis ou militares), jovens recrutados nas classes menos favorecidas da população, grande parte com baixo nível de escolaridade, sem o treinamento adequado, sem uma rigorosa seleção psicológica, colocam uma farda ou portam um distintivo, pegam uma arma de alto poder letal e vão para as ruas cumprir missões para as quais evidentemente não estão preparados.

Aí, uma menina de 11 anos, aluna de uma escola pública, que brincava com colegas na hora do recreio, é morta brutalmente porque policiais militares perseguiam um suspeito fora da área do colégio e dispararam seus fuzis nessa perseguição.

Ou um carro que trafegava por uma rua da zona norte é metralhado porque policiais de uma patrulha receberam comunicação pelo rádio de que um veículo com as mesmas características transportava bandidos em fuga. Sem uma abordagem, sem nada. “Atira primeiro, pergunta depois...”.

Ainda um menino que é atingido e morto por tiro de fuzil quando estava no interior de sua residência, em São Gonçalo, em outra alegada diligência policial na comunidade pobre em que morava...

Mais duas meninas que conversavam na porta de uma casa humilde de outra comunidade carioca também são mortas porque a polícia entrou abruptamente na favela alegando procurar um perigoso delinquente...

E, ainda mais recente, dois jovens que transitavam em uma motocicleta por uma via da Baixada são atingidos por tiros de fuzil, presos, colocados na viatura policial e aparecem mortos em outro local...

Alguns desses casos foram gravados por câmeras de vigilância... e os outros? Quantos mais não o foram?

Sei que o problema é de difícil solução. Mas, esta não pode ser encontrada com “tiros na cabecinha” ou com entradas espalhafatosas em comunidades, com policiais despreparados atirando descontroladamente as armas que portam, sem que sejam tomadas cautelas mínimas para evitar a morte de inocentes...

Não adianta o porta-voz da corporação vir perante às câmeras da TV e dizer que “houve confronto”, que “os policiais não dispararam”, “que um inquérito rigoroso vai ser instaurado”. Suas palavras não vão diminuir a dor dos pais, filhos, parentes daqueles que são enterrados em consequência de um ato estúpido, truculento praticado por alguém que não estava preparado para usar uma arma tão poderosa...

Muitos afirmam que o problema da violência policial contra pobres e pretos seria, acima de tudo, racismo...

Essa afirmação foi veementemente sustentada após o espancamento bárbaro de um cliente negro por seguranças de um supermercado no Rio Grande do Sul. Violência que resultou na morte da vítima. Dois “seguranças” brancos que espancam um negro até a morte. Fato assistido por uma supervisora do estabelecimento que tenta, inclusive, impedir o registro da cena por um celular de entregador de mercadorias, fazendo-lhe ameaças. Tudo gravado de diversos ângulos, desde o início da discussão entre o cliente e uma caixa, a intervenção dos “seguranças”, até o momento final da bárbara e covarde agressão, num outro local do estabelecimento.

Não resta dúvida de que o ingrediente “racismo” está presente nesse tipo de violência. Até porque quem veste uma farda, seja de policial ou simples segurança particular, considera-se investido de uma autoridade excepcional contra os seus semelhantes, principalmente se for um negro e pobre, por considerá-los inferiores, parentes próximos da marginalidade, segundo seus deturpados conceitos.

É o famoso “sabe com quem está falando?”, há muito impregnado na cultura brasileira. Além das autoridades do “alto escalão”, todo aquele que usa uma farda ou um distintivo de uma instituição pública também se considera como tal. Mais modernamente, surgiram os coletes, para indicar que esse ou aquele servidor pertence a determinado órgão público. Tais como “Defesa Civil”, “GAECO’, “Meio ambiente”, “Ministério Público”, “Segurança” e tantos outros que proliferaram nos últimos anos...

Então, por ostentarem uma farda, um distintivo, um colete, se acham superiores aos outros cidadãos, principalmente se estes pertencerem a classes menos favorecidas da sociedade... O que vimos gravado no episódio do supermercado de Porto Alegre, com o espancamento covarde (um imobilizando, outro dando socos e pontapés), que acabou com a morte do cliente, vai bem por esse enfoque do abuso da “autoridade”. Pode ter existido algum racismo, mas acho que muito mais prepotência, arrogância, o “sabe com quem está falando?” por parte dos “seguranças” autores do assassinato e da cúmplice supervisora, que nada fez para impedir o massacre e até quis impedir que a cena grotesca fosse gravada...

Quando ainda era ministro da Justiça, o ex-juiz Sergio Moro, famoso por ter combatido a corrupção, quis introduzir no nosso Código Penal uma excludente de “ilicitude” para policiais que cometessem um homicídio “por medo, ou receio” quando no exercício da função. Excludente de ilicitude, segundo o nosso Direito Penal, significa que “não há crime”, ou seja, no caso do homicídio em particular, a morte de alguém teria sido um ato lícito.

Nosso ex-ministro talvez fosse mais especializado nos chamados crimes de colarinho branco, na corrupção ativa e passiva. Mas, apesar destes também poderem ser praticados por policiais, a tal excludente visava absolver por ausência de ilicitude (não isentar de pena, o que é outra coisa), o agente da lei que matasse outrem “por medo ou receio”. Pronto, a farra estaria completa e os policiais e demais “autoridades” poderiam legitimamente “atirar antes, para perguntar depois”, pois teriam certeza de que estavam agindo legitimamente.

Acho que essa não era a área do ex-ministro, que, felizmente, não foi adiante. Mas, é claro, só fez essa tentativa por influência superior, que, desde a campanha eleitoral sempre esteve a favor da classe policial, e tem nela um forte apoio à sua gestão.

Tanto que, já com Moro longe, voltou agora, recentemente, a insistir na inclusão dessa aberração em nosso ordenamento jurídico. Isso ocorreu num comício recente que fez num centro de abastecimento em São Paulo.

Aliada à intenção do governo da liberação total de compra e posse de armas (até o imposto de importação foi zerado), com essa excludente, vamos ter mais inocentes mortos em “confrontos”, em “diligências”, em invasões espalhafatosas em comunidades carentes, em “rigorosos inquéritos” para apurar responsabilidades, com mais policiais engrossando as já poderosas milícias em nossas cidades...

E, todos portando suas armas, vamos assistir duelos nas ruas, nas estradas, nos condomínios, e vão sair vitoriosos aqueles que conseguirem “sacar” primeiro...

 

8 comentários:

Eduardo Muniz disse...

É o de sempre, visar o efeito sem combater a causa. O Beltrame bem que tentou ir mais fundo, mas seu esforço se desintegrou na inépcia e na corrupção que o cercavam.

Calfilho disse...

Justamente. As UPPs eram uma boa ideia, se viessem acompanhadas de medidas de assistência social, creches, lazer e algumas outras coisas. As pessoas das comunidades já têm desconfiança da polícia, e se ela não se aproxima, não tenta apoiá-los, acabam caindo nas mãos da milícia e do tráfico.

Jorge Sader Filho disse...

Como sempre, escrito por quem autoridade. O meu amigo Carlos Augusto ocupou o cargo de Presidente do I Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, ou seja conhece e tem autoridade para escrever tudo o que lançou no seu blog. "Ah, é muito duro", dirão muitos! Pois sim, tanto pior. Muito duro, mas verdadeiro, é o retrato feio e sujo de uma sociedade doente. Quanto isso deve ter custado a você, Carlinhos. É sofrimento, sujeira e continuidade no ilícito, que quase transformam em legal!
Parabéns, velho e querido amigo. Grande abraço!

Jorge Carrano disse...


Se me permite subscrevo.
Abraço e votos de um 2021 com saúde.
As alegrias e vitórias conquistaremos.

Maria disse...

Hoje venho desejar-lhe um Bom Ano de 2021!

Jorge Carrano disse...


Também eu, ao amigo e aos seus amigos e parentes.

Forte abraço.

Calfilho disse...

Mesmo atrasado, até porque já desejei em outros espaços, que 2021 vá à forra de 2020...

Jorge Carrano disse...


AMEM !!!