quarta-feira, novembro 20, 2019

A EXCLUDENTE...

A EXCLUDENTE... 

 

Calfilho 




                 Como já afirmei aqui em publicações anteriores, não acredito mais em política ou em políticos... Os nossos e os estrangeiros...         Custei, mas acabei constatando que eles se aproveitam da política (que é algo imprescindível numa democracia) quase sempre para satisfação de seus interesses pessoais, de suas famílias e grupos de amigos... Infelizmente...                      Quando alcançam o poder, mesmo que inspirados  em ideais e pretensões legítimas, acabam dele gostando e não querem mais dele se afastar... Temos vários exemplos, aqui e no exterior...               Aproveitam-se de uma fase de crise de um povo para espalharem ideias radicais, salvadoras, fingindo serem aqueles escolhidos por um ser superior para levar os habitantes de um país a dias melhores, prósperos, felizes...     
           Num passado relativamente recente, podemos citar Napoleão (na França), Hitler (na Alemanha), Mussolini (na Itália), Fidel Castro (em Cuba), Getúlio, Jânio, Collor, Lula e esse que atualmente nos preside (no Brasil)... Assumiram o poder em suas épocas e países, aproveitando-se de um estado de quase desespero da população que ou passava fome, ou não tinha liberdade para expressar suas opiniões, ou era subjugada por um regime de força... ou ainda que escolheu mal seus governantes... Releiam os livros e revejam os filmes da época desses personagens citados e vejam como eram aplaudidos por multidões de fanáticos que só enxergavam e queriam ver o que  o falso líder lhes dizia, ouvidos e olhos fechados para qualquer opinião em contrário...  Os desfiles militares na Alemanha, Rússia, Itália, Coreia do Norte, China, Cuba, Brasil (principalmente na época de Getúlio) deixam claro como o povo seguia cegamente o ditador ou o "presidente" da ocasião... 
       Sinceramente, não consigo entender como o povo ainda acredita nesses candidatos ou nesses líderes...  
         Mas, o motivo maior desta matéria é comentar a tendência atual de algumas de nossas autoridades em querer voltar a implantar um estado policialesco em nosso país.       
         Durante a minha relativamente longa trajetória no Direito, quer como advogado, Promotor de Justiça ou magistrado, minha atuação maior foi na área do Direito Penal.  Apesar da opinião de um atual "eminente" ministro do Supremo Tribunal  de que "a Justiça Criminal para ser ruim precisa melhorar muito", acredito que com todas as dificuldades que enfrenta e deficiências dos órgãos que a auxiliam, ainda assim procura ela dar à sociedade a resposta devida para os criminosos que infringem as leis e alguma satisfação (se não plena), àqueles que são vítimas desses crimes.          Infelizmente, os juízes criminais julgam processos que já lhes chegam às mãos mal instruídos por inquéritos policiais mal feitos, com graves falhas de órgãos técnicos, com laudos periciais mal elaborados por institutos de criminalística mal aparelhados (cheguei a julgar processos em que os laudos periciais diziam que não tiraram fotos do local porque não tinham filme para as máquinas ou que o "filme velou"). Por isso, infelizmente, é quase sempre apenas com a prova testemunhal que conta o juiz para proferir sua decisão. E, testemunha, como todos sabem, às vezes se confunde, nem sempre viu toda a cena, em muitas oportunidades cai em contradição... Quando não são ameaçadas ou têm medo de dizer a verdade...   
         Imagino o dilema em que se sentem os jurados no Tribunal do Júri, que não são técnicos em Direito, quando vão proferir sua decisão. Mas, acredito: o júri é o melhor juiz justamente por isso: suas decisões representam o que acha o cidadão comum, aquele que vive e coabita no mesmo domicílio em que o crime foi cometido, a opinião média da sociedade sobre o fato colocado em julgamento ... Sem as tecnicidades do juiz togado, até sem uma certa deformação profissional do magistrado...   
        Essa, a triste realidade que pude constatar em cinco anos como advogado, quase quatro como Promotor de Justiça e mais outros quase dezoito como juiz, atuando na maioria desse tempo na área criminal... 
      Frequentei delegacias de Polícia como advogado e Promotor, conheço relativamente bem a qualidade da seleção da maioria de nossos policiais. Mal remunerados, com nível relativamente baixo de instrução (refiro-me aqui aos investigadores. Não, é claro, aos Delegados), têm à sua disposição uma carteira funcional e uma arma de fogo que a sociedade lhes entrega. Para defender essa mesma sociedade... Muitos ingressam na carreira como soldados da Polícia Militar ou investigadores apenas pela sensação de poder que a farda ou a carteira e, principalmente, a arma de fogo lhes dão...               E, quando são incentivados por governantes que defendem que o uso de armas de fogo e tiros na "cabecinha" são os melhores meios para enfrentar a criminalidade, aí então é que se sentem à vontade para disparar seus potentes fuzis ou pistolas que levam quando saem para uma "diligência" numa comunidade...    
         E aí, quando morre alguém, criminoso ou inocente, é lavrado o triste "auto resistência", que, em quase sua totalidade, acaba em arquivamento. Ultimamente, quando a política de combate ao crime tem sido o confronto, assistimos policiais saírem para incursões em favelas e, ao menor movimento em uma viela escura ou quando suspeitam de alguém (geralmente preto ou pardo), começam a atirar descontroladamente, acabando alguma "bala perdida" indo atingir uma criança ou uma vítima inocente. Até dentro de uma escola uma menina foi atingida meses atrás. Ou, quando são comunicados pelo rádio da viatura que determinado carro pode estar transportando criminosos, acabam atirando em qualquer veículo parecido com a descrição fornecida e só depois verificam que ele transportava uma família com crianças que apenas voltava para casa... "Atirar primeiro para perguntar depois"... 
         Isso tudo devido ao mau preparo desses policiais para a difícil missão que enfrentam diariamente. Vão trabalhar com os nervos à flor da pele, temerosos do que lhes pode acontecer em mais uma jornada de trabalho. Afinal, também têm família, mulher, filhos, pais...  
       Também porque a má remuneração oferecida não atrai gente mais qualificada para o exercício da profissão.     Por isso tudo, grande parte dos policiais acaba se embrutecendo no dia-a-dia de suas atividades, tornam-se insensíveis, a morte de um semelhante não mais os comove. Alguns deles, infelizmente, acabam se associando aos bandidos que devem combater. Daí se explicar o grande número deles que acaba expulso da Polícia civil ou militar.       Antigamente, eram os famosos "Esquadrões da Morte”, “Scuderie Le Coq”, ou similares, que hoje se transformaram nas vergonhosas milícias que dominam as comunidades carentes das grandes e pequenas cidades. E, que hoje, segundo notícias mais recentes, estão se associando aos traficantes de entorpecentes...              Com todo esse quadro caótico em que vivemos atualmente, o ministro da Justiça, que se arvorou em paladino da luta contra a corrupção, pretende incluir em nossa legislação penal, como excludente  de ilicitude, em favor dos policiais, o fato deles matarem alguém por... medo... Acredito que nosso ministro, por ter sido magistrado por vários anos, saiba bem qual a diferença entre excludente de ilicitude e causa de diminuição de pena (como a violenta emoção, logo após injusta provocação da vítima) consagrada esta última no parágrafo único, do artigo 121, do nosso Código Penal.   E, ainda, querer consagrar o medo ao lado daquelas já previstas como homicídio privilegiado, transformando-as em causas de ilicitude, positivamente, é realmente de espantar...                    Além disso, o Código Penal, depois de definir o estado de necessidade, que, como a legítima defesa, é uma das outras excludentes de ilicitude, esclarece, no parágrafo primeiro, do artigo 24, que "não pode alegar estado de necessidade quem tinha o dever legal de enfrentar o perigo"...    Ora, se o policial, que sabe quando ingressa na carreira, que vai ter que enfrentar bandidos armados, que vai se deparar com situações de perigo iminente, vai alegar que teve medo ao se defrontar com algum desses elementos ou situações, então ganharam eles uma verdadeira licença para matar... Quer assim ache ou não o ministro da Justiça... 
       O policial, como qualquer cidadão, tem que responder pelos atos praticados. Se matou alguém em legítima defesa ("não há crime"), deve ser absolvido. Mas, a excludente deve ser provada e não apenas alegada. Se cometeu excesso, deve ser julgado esse excesso. Como, aliás, a lei já prevê.       Absurdo será incluir para a categoria uma excludente de injuridicidade apenas porque o policial teve... medo...       
        Se os policiais têm medo dos bandidos, os bombeiros também têm medo do fogo. O cidadão comum também sente medo ao andar nas ruas das cidades, medo de ser atropelado, de ser atingido por uma bala perdida... Segundo esse raciocínio, todos deveriam andar armados, para que se possam defender de uma agressão real ou imaginária... Aliás, parece que nossos governantes pretendem isso mesmo... Liberação total da posse e porte de armas...      Nossos "bravos" policiais deveriam  então escolher outra profissão... Não procurar na lei uma excludente para seu ato homicida, sem se indagar se ele foi legítimo ou fruto de arbitrariedade... Se o policial é uma pessoa de bem ou alguém com uma farda ou carteira que quis se vingar de um inimigo...Ou, pior, sendo policial, se estava associado a traficantes ou marginais...
      Lamentável, em nosso modesto entendimento, a atitude do nosso ministro da Justiça...   Nisso é que dá simples seres humanos serem transformados em super-heróis... Como se somente ele tivesse sido o juiz a combater a corrupção e os outros tantos magistrados criminais do Brasil não existissem ou não fizessem nada...          
          Enfim, esse é o nosso Brasil...      
        "As redes sociais" é que o governam...   

4 comentários:

Jorge Sader Filho disse...

A experiência faz você pensar assim, amigo Carlos. O povo ainda pensa nos "heróis", que nada mais fazem do que cumprir com o seu dever.
A tal excludente seria uma licença para matar. Atira e terminado o assunto, basta comunicar o fato aos superiores.
Muito bem costurado o seu texto, parabéns!
Grande abraço,
Jorge

Unknown disse...

Genial!
Penso exatamente assim.
Você, melhor do que ninguém, pode descrever o que estamos assistindo no país.
Ai de nós, pobre mortais, de sermos contra a esses heróis de araque!
Parabéns, Carlinhos!
Vou compartilhar,para que todos os
nosssos amigos possam ler essa crônica avalizada por alguém que viveu intensamente como juiz criminal.
Beijos

Eduardo Muniz disse...

Parabéns, amigo. Foi o melhor texto que li sobre a tentativa de se implantar no país um Estado policial (melhor diria policialesco), e acho difícil que alguém tenha escrito outro de mesmo nível. Densa e abrangente análise, a revelar um juiz de direito consciente da grandeza do ofício que desempenhou, sensível mais que o bastante para revelar o senso de justiça que sempre ordenou suas decisões e sentenças. Saiba agora que não foi à-toa que em você encontrei motivação para enfrentar o desafio de ser juiz de direito e colhi inspiração constante para o desempenho do duro encargo. Obrigado pelo artigo, MM. DR. JUIZ DE DIREITO CARLOS AUGUSTO LOPES FILHO - com letras maiúsculas. Meu sincero agradecimento por ter você como espelho, Carlinhos.

Carlos Lopes Filho disse...

Obrigado, R's Rue, Jorge Cortás Sader Filho, Unknown e Eduardo das Chagas Muniz pelos amáveis comentários. Solicitaria a gentileza de que R's Rue e Unknown se identificassem para que eu possa reconhecê-los ou conhecê-los, caso ainda não tenha esse prazer.
Jorginho e Eduardo, meus amigos/irmãos: nós, que nos conhecemos desde 1953 da sala de aula do primeiro ano ginasial do Liceu Nilo Peçanha, seus comentários só vieram enriquecer e valorizar essas rápidas linhas que escrevi. Vocês dois que cursaram o clássico do Liceu, acredito já pensando em cursar Direito, já tinham mais ou menos definido um plano de vida quando terminamos o ginasial Eu, não. Cursei o científico, pois pretendia fazer medicina, profissão do meu pai, para atender a um desejo dele, e tive que estudar matemática mais avançada, desenho, física, química, biologia, matérias que acabei não usando no futuro. Cheguei a fazer curso pré-preparatório para a faculdade de medicina, e até mesmo o vestibular. Mas, realmente, não era aquilo o que queria. Acabei desapontando profundamente meu pai com essa decisão. Fiz, ao mesmo tempo, o vestibular para Direito, também sem ter nenhuma vocação para a carreira, apenas para ter um diploma de curso superior. Na faculdade, encontrei Jorge Sader Filho como meu colega de turma. Mas, ali ia mais só para jogar futebol, nunca cheguei a abrir um livro de Direito. Com a morte prematura do meu pai, fiz concurso para o Banco do Brasil e fui trabalhar no interior do Estado. Já estava no final do quarto ano da faculdade e acabei concluindo o curso. Em Cantagalo, como não tinha nada para fazer, comecei a frequentar o cartório de um irmão de um colega de banco e foi o primeiro contato que tive com um processo e com o Direito. Comecei a estudar mais a fundo e, depois de formado em 1965, já em fevereiro de 1966, fiz meu primeiro júri naquela comarca ao lado de um advogado local, hoje padrinho de um dos meus filhos. Fui chamado para trabalhar na Assistência Jurídica do BB quando voltei a Niterói e comecei também a advogar na área criminal. Já então, estudando mais a fundo, fiz concurso para Promotor de Justiça em SP e RJ, conseguindo ser aprovado e, depois para a magistratura do antigo Estado da Guanabara, sendo também aprovado. Por isso, Eduardo, meu colega das peladas e do futebol do Liceu, acho que não tive muita coisa a ver para servir de inspiração para o seu ingresso na magistratura. Você obteve sucesso porque sempre foi estudioso, inteligente e dedicado em tudo aquilo que construiu na vida. Não sei se você se lembra, tivemos uma conversa no final dos anos 80 do século passado, num restaurante do Rio, eu, você e acho que Carlinhos Barreto, nosso colega do Liceu, quando eu já estava quase me aposentando e você pensava em fazer concurso para a magistratura. Tinha certeza de que você seria aprovado, pois conhecia relativamente bem a pessoa. Direito, para mim, foi um acaso na minha vida e ter sido magistrado apenas um lance do destino.
Jorginho Sader tornou-se, além de advogado, o brilhante escritor que é hoje.
Quanto à excludente, dá pena ver o estado lastimável em que nosso país chegou. Tem até gente pedindo a pena de morte em nossa legislação...