quarta-feira, janeiro 25, 2017

OS DESBRAVADORES Capítulo 53



OS DESBRAVADORES

Capítulo 53

Calfilho




53
Os trabalhos de carga e descarga duraram um dia e meio.
Manolo, Raphael e Antonio desceram mais uma vez do navio pela manhã e foram experimentar o acarajé, comida típica da Bahia. Era um bolinho feito de uma pasta de feijão branco, frito num azeite típico da região, chamado dendê. Dentro colocavam camarão seco e uma massa chamada vatapá. Com um molho de pimenta preta, fritada no dendê numa frigideira, tinha um sabor delicioso. Era a primeira vez que comiam tal
iguaria, tendo ficado encantados com a mesma. Foi-lhes dito que aquela era uma comida de origem africana, cultivada pelo povo baiano.
O “Highland Chieftain” só deixou o porto por volta das quatro da tarde. Continuou sua marcha em direção ao sul do Brasil, costeando vagarosamente o imenso litoral baiano.
A sucessão interminável de praias desertas e paradisíacas constituía a paisagem que viram durante os três dias seguintes. A rotina da vida a bordo voltou ao seu normal. Ninguém mais enjoou ou teve diarreia.
Os imigrantes estavam ansiosos pela chegada ao Rio de Janeiro, porto de destino de vários deles. Mas, a costa baiana era imensa, maior que muitos países da Europa. No fim do dia seguinte, por volta das seis da tarde, viram ao longe o casario de Ilhéus. O navio seguia muito próximo ao litoral, pouco mais de setecentos metros, evitando as ondas gigantescas de alto-mar. Logo em seguida, quase escurecendo, aparecia o Pontal.
Depois do jantar, como fazia habitualmente, Manolo subiu até o convés, acendendo seu cigarro. A noite estava maravilhosa, o céu coalhado de estrelas, a lua brilhando forte, em todo seu esplendor. Debruçado sobre a amurada de madeira, admirava a beleza da noite, aproveitando para gozar o frescor da brisa leve que lhe tocava o rosto. Ora olhava para o céu, para a imensidão de estrelas, ora para o mar, vendo as espumas das ondas que batiam vagarosamente no casco do velho navio, enquanto este avançava lentamente.
Manolo meditava, lembrando-se de sua infância miserável e da vida dura que levou na sua cidadezinha do interior espanhol. Conseguiu apenas aprender a ler e a escrever precariamente, as quatro operações e nada mais. Queria ter estudado mais, não foi possível. Desde os sete anos já ajudava o pai na rudimentar lavoura de fundo de quintal que mantinham em casa, que mal dava para o sustento da família. Já um pouco mais velho, por sua iniciativa, sem que ninguém o orientasse ou influenciasse, aproximou-se de um pedreiro que trabalhava na construção de uma casa na aldeia. Ficaram amigos, tinham a mesma idade, e Manolo foi com ele aprendendo os segredos da profissão. Aprendeu a misturar pedra, areia e cimento, a usar o fio de prumo e o metro de madeira, a empilhar os tijolos uns sobre os outros, a construir alicerces, caixa d’água, etc... Seu aprendizado foi além daquele de um simples pedreiro. Aprendeu a mexer com madeira, com vergalhão, tinta, argamassa, até sobre eletricidade teve algumas noções...
Quando chegou aos dezesseis anos já sabia quase tudo sobre construção, arranjando alguns biscates nas cidades próximas que em muito ajudavam as finanças da casa. Mas, o trabalho era escasso e tinha que procurá-lo em cidades cada vez mais longínquas. Acabava ficando meses sem trabalhar, vivendo ele e a família apenas da lavoura que tinham nos fundos da casa.
Foi quando Pepe, seu irmão mais velho, que tinha ido para o Brasil há uns dois anos, escreveu-lhe fazendo o convite para também ir para lá. Tinha vaga na lavoura onde trabalhava, em Ribeirão Preto, cidade agrícola do interior do Estado de São Paulo. José, o Pepe, disse na carta que estava conseguindo economizar algum dinheiro e que, em pouco tempo, compraria uma casinha para ele e a mulher.
Manolo, não vendo saída para a situação em que se encontrava, bem como sentindo de perto a ameaça de que a guerra na Europa se estendesse à Espanha, acabou convencido. Seu pai e sua mãe, embora tristes, não fizeram muita força para que ele ficasse. Afinal, diminuiria as despesas em casa.
O que o esperava na nova terra? Será que se adaptaria? Conseguiria um emprego melhor? Sairia, enfim, da miséria de vida em que transcorreram os primeiros vinte anos de sua vida? Teria um teto para abrigá-lo, faria as três refeições diárias, vestiria roupas ao menos decentes? As antigas dúvidas voltaram a povoar sua mente.
Essas as preocupações que o atormentavam. Estava com o olhar distante, perdido em suas divagações, quando Raphael chegou. Apoiou os cotovelos na amurada de madeira.
– Está dormindo acordado, Manolo? – brincou.
O outro levou um susto, distraído que estava. Virou-se para ele.
– Não, Raphael, estou pensando na morte da bezerra.
– devolveu a ironia.
O outro espanhol ficou meio sem graça. Ficou quieto,
olhando também para a espuma que batia no casco do navio.
Manolo retomou a palavra:
– Estava pensando no que me espera lá em São Paulo. Outra terra, outro povo, outros costumes, comida diferente. Será que vou me acostumar?
Raphael ficou em silêncio por alguns segundos. Depois, com voz calma, retrucou:
– Acho que sim, não vai haver problema. Você, pelo menos, vai ter seu irmão ao seu lado, com quem se dá muito bem. Eu vou trabalhar com meu cunhado, que nem conheço direito, só vi uma vez quando era pequeno. Além disso, vou trabalhar num bar, coisa que nunca fiz. Não sei lavar um prato, nunca fui cozinheiro...
Manolo deu uma risada. Bateu amigavelmente nas costas do amigo.
– Não se preocupe, você aprende logo. Serviço de botequim é muito mais fácil que o de lavoura, para onde vou.
– Lavoura, pelo menos, estou acostumado – retrucou Raphael, acendendo também um cigarro. Mas, esse negócio de atender balcão, servir freguês, não é comigo não. Além do mais, dizem que no Rio faz muito calor, é muito quente. Você, pelo menos, vai para o interior de São Paulo, onde faz frio, segundo ouvi dizer. Já está acostumado.
– Não reclama, Raphael, não reclama – disse Manolo, sorrindo, encerrando a conversa, dirigindo-se os dois para o dormitório, dois andares abaixo.
A longa viagem se aproximava do fim. A ansiedade aumentava, a incerteza os dominava.

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