segunda-feira, janeiro 23, 2017

OS DESBRAVADORES Capítulo 52

OS DESBRAVADORES

Capítulo 52


Calfilho




52
O “Highland Chieftain” manobrava vagarosamente, puxado por dois pequenos rebocadores que resfolegavam fazendo um enorme barulho, utilizando força máxima para puxar o velho cargueiro e encostá-lo no porto da capital baiana.
Quando entraram na Baía de Todos os Santos, via-se, ao longe, o forte de São Marcelo, marco da época da escravidão no Brasil.
Eram quase nove da manhã. O sol resplandecia no céu azul sem nuvens, irradiando todo o seu fulgor sobre as maravilhosas praias e morros da cidade que já surgia à distância.
A maioria dos passageiros estava debruçada na amurada de madeira do convés superior, a bombordo do navio. Do outro lado, a estibordo, a enorme ilha de Itaparica completava o maravilhoso cenário. O casario de estilo colonial, as torres e as numerosas igrejas dominavam os morros e a parte baixa da cidade.
Manolo comentou:
– Bem que ouvi dizer que aqui, em Salvador, existiam muitas igrejas. É considerada uma das cidades mais católicas do mundo.
Raphael observou:
– Ouvi dizer também que foi a primeira capital do Brasil. Será verdade?
– Acho que sim, também ouvi falar isso – disse Joaquim.
– E a maioria da população é de negros – acrescentou Manolo. – Isso se deve a vocês, portugueses, não é? – brincou, provocando Joaquim.
– Mas, no século passado, quase todo mundo trazia os escravos para suas colônias. Era a mão de obra mais barata para suas lavouras – rebateu o português.
– É verdade – disse Raphael. – Até os ingleses, que mais tarde combateram o tráfico de negros da África, levaram muitos deles para os Estados Unidos para as lavouras do Sul. Chegaram a ter uma guerra entre eles, americanos do Norte contra os do Sul, no fim do século passado, por causa dos escravos.
– Rapazinho inteligente esse nosso Raphael – debochou Manolo. – Onde você aprendeu tudo isso?
– Olha, eu não tive muita instrução, mas aprendi a ler e escrever alguma coisa. E, sempre que podia, lia um jornal ou um folheto lá na minha aldeia. Assim, não fiquei totalmente ignorante das coisas como vocês – rebateu Raphael a provocação.
O navio aproximava-se do cais. O alvoroço dos marinheiros, tanto os de bordo como os de terra, gritando ordens, transmitindo orientações, abafou a conversa dos imigrantes. As cordas foram lançadas para os que estavam em terra, sendo amarradas fortemente em grossos troncos de madeira fixados no chão de pedra. Já com os motores parados, foi atirada a grande âncora ao mar.
A escada foi baixada e as autoridades brasileiras subiram ao navio para examinar a documentação. Uma hora depois, foi autorizada a descida dos passageiros a terra.
O calor sufocante e o ar abafado, as duas primeiras coisas notadas pelos imigrantes quando colocaram os pés no solo baiano. No ar, um cheiro mistura de suor e azeite de dendê, característica que diferençava a cidade das outras.
Apesar de já terem visto muitos negros quando passaram por Lanzarote e Dakar, os cinco imigrantes se surpreenderam com o grande número deles circulando pelas ruas. Manolo, Raphael, Antonio, Miguel e Joaquim caminhando já nas proximidades do Mercado Modelo, souberam que no porão do mesmo, onde chegava a água do mar, os escravos eram desembarcados diretamente dos navios que vinham da África. Salvador era o primeiro porto brasileiro onde os barcos negreiros tocavam, dirigindo-se depois para o Rio de Janeiro e Santos. Também fora a primeira capital do Brasil, daí a sua importância desde a época do descobrimento.
Depois de perambularem pelas dependências do mercado, onde uma variedade enorme de mercadorias era vendida, decidiram explorar as ruelas e caminhos da cidade. Caminhando por entre os pequenos e íngremes caminhos de pedra, foram subindo para a cidade alta, em direção à Praça da Sé. Dali divisaram uma vista magnífica da Baía de Todos os Santos, com o Mercado Modelo logo abaixo, o forte de São Marcelo mais à frente, guardando a entrada do porto e, mais ao longe, a imensidão de terra da então quase inexplorada ilha de Itaparica.
Visitaram a Catedral, depois a Igreja de São Francisco, com seus magníficos adornos em ouro maciço.
Joaquim comentou:
– Portugal, mas também a Espanha e até a Inglaterra levaram muito ouro do Brasil. Portugal fazia a exploração e quando transportava o metal para Lisboa, muitos navios eram atacados e pilhados pelos espanhóis e ingleses. A pirataria era muito grande nesses oceanos há dois séculos atrás.
– E vejam que ainda sobrou algum ouro aqui no Brasil para cobrir quase toda essa maravilha de igreja – disse Manolo, enquanto visitavam São Francisco.
Em seguida, desceram uma ladeira que ia dar no Largo do Pelourinho. Souberam por um português, dono de um pequeno bar, que ali os escravos eram açoitados antigamente.
Enquanto tomavam uma aguardente feita de cana-de-açúcar, ouviam com atenção o relato do dono do botequim:
– Isso aqui tem muitas histórias, meus amigos – dizia o português.
Beliscaram alguns tremoços, nacos de presunto defumado e sarapatel. Experimentaram a pimenta baiana. O homem advertiu:
– Tomem cuidado, que ela é muito forte, se não estão
acostumados é melhor não comerem.
Raphael brincou com Miguel e Antonio:
– Vocês dois aí, abram o olho. Já tiveram bastante diarréia no navio.
Entre os outros fregueses do bar estavam vários negros, conversando animadamente em outras mesas ao lado. Para os imigrantes, aquela era uma cena inusitada, pois nunca a haviam visto antes em sua terra natal. Aliás, para dizer a verdade, nenhum deles havia visto um negro antes, até a escala do navio em Lanzarote.
O dono do bar, notando o ar de surpresa dos novos fregueses, comentou:
– Pois é, há pouco mais de trinta anos atrás, eles chegavam aqui como escravos, vendidos nos leilões públicos. Depois que foram libertados pela Princesa, em 1888, tiveram muita dificuldade no início para se acostumarem com a nova situação. Mas, foram se adaptando aos poucos, arranjando um emprego aqui, outro ali, e hoje muitos deles já têm um comércio próprio, exercem várias profissões como marceneiros, cozinheiros, pedreiros e várias outras. E, olha: são ótimos em tudo o que fazem. Eu mesmo tenho um cozinheiro negro trabalhando aqui comigo. Se quiserem experimentar a comida dele, tenho certeza de que vão gostar.
Os amigos se entreolharam. Depois de alguns segundos, numa espécie de consulta silenciosa, Manolo disse:
– Está bem, é uma boa ideia almoçar aqui. Mas, o senhor não cobra caro, não é?
– Não, meu amigo, a minha clientela é só de gente pobre. Aqui se come bem e barato – respondeu, sorrindo o português.
Manolo continuou:
– Bem, mas ainda é muito cedo para o almoço. Vamos dar umas voltas antes, conhecer um pouco mais da cidade. O que o senhor nos recomenda visitar?
O português coçou o vasto bigode negro. Respondeu:
– Olha, visitem as igrejas aqui de cima. Carmo, Santo Antonio, a imagem do Senhor morto. São muito bonitas. Se tiverem tempo, vão até o Bonfim. Mas, lá é mais longe, vão ter que pegar condução.
– Obrigado – disse Manolo, arrecadando o rateio dos outros para pagar a conta. Voltamos lá pelas duas horas para o almoço. Pode nos aguardar.
Despediram-se e continuaram sua peregrinação pela capital baiana. Visitaram as igrejas indicadas pelo português, descobriram um transporte que os conduziu ao Bonfim, onde visitaram a igreja. Depois Itapagipe, Mont Serrat e Boa Viagem. Aquela fora, sem dúvida, a melhor escala do “Highland Chieftain”. Mesmo com o dinheiro controlado, gastando muito pouco, foi o porto onde mais se divertiram.
As horas passaram rapidamente, pouco depois das duas da tarde estavam de volta ao botequim do português para o almoço. Foi-lhes servida uma deliciosa feijoada, prato que nunca haviam experimentado antes. Feijoada baiana, feita com feijão mulatinho. Recheada de todos os complementos necessários: carne seca, lombo, rabo, orelha, pé de porco. O português explicou:
– Esse é um prato tipicamente brasileiro, originado dos escravos que vieram para cá. Era feito antigamente nas senzalas aproveitando os escravos dos restos da carne de porco que os patrões não comiam, como o lombo, a orelha, o rabinho, o chispe. Hoje, é a comida-símbolo do Brasil, servida nos melhores restaurantes do país. Aqui, no Nordeste, é feita com feijão mulatinho. No Rio, com feijão preto, vocês vão conhecer.
Os imigrantes se fartaram de tanto comer. E, abusaram da pimenta malagueta, que, realmente, como disse o português, dava um gostinho especial à comida. Para acompanhar, mais aguardente de cana-de-açúcar. Não pediram cerveja, pois ficaria muita cara a despesa.
Lá pelas quatro, depois de saciarem a fome com fartura, voltavam para o navio.
No caminho, desceram ladeiras estreitas e com aspecto meio suspeito. Das janelas das casas algumas mulheres acenaram alegremente, convidando-os para uma tarde de prazer. Joaquim, já semi-embriagado pelo efeito da aguardente ingerida no almoço, estava disposto a aceitar o convite.
Tentou seduzir os outros.
– Vamos lá. – insistiu, puxando Manolo pelo braço. – Já não vemos mulher há muito tempo.
Manolo desvencilhou-se do seu braço.
– Vamos embora, Joaquim. Essas mulheres vão te deixar liso, sem dinheiro nenhum – disse.
Raphael concordou:
– Vamos, Joaquim. A gente quase não tem dinheiro, não podemos nos dar ao luxo de gastar com putas.
A contragosto, Joaquim concordou com os outros. Voltou para o navio, resmungando.

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