Os três minutos...
Os amigos se foram... As lembranças continuam...
Não vi Heleno, mas vi Zizinho, Garrincha e Pelé...
Era cantorriense, o azul e branco de Niterói... Mas, em 1958, na Copa do Mundo na Suécia, vi os três minutos mágicos que o futebol me ofereceu... Nada de Ronaldo, nada de Zico, só um gênio... Hoje, a mídia exalta a aposentadoria do Ronaldo como se ele fosse o maior do mundo... Nada disso... O Flamengo celebra Zico, esquecendo-se de Dida, para mim, o maior jogador que o clube já teve... O Brasil saiu de um empate apertado contra a Inglaterra, aí decidiram colocar o gênio em campo...
Ele, que fora barrado por Feola e outros "sábios" da Comissão Técnica da então CBF, porque driblara a defesa inteira da Fiorentina num amistoso antes da Copa e, não satisfeito, já em cima da linha do gol, voltou para driblar novamente um dos beques e o goleiro antes de mandar a bola para o fundo das redes...
Engraçado que hoje, passados mais de 50 anos da Copa da Suécia, esse mesmo goleiro da Fiorentina, que foi driblado duas vezes pelo gênio, numa entrevista para a televisão, diz que nunca viu nada parecido com aquilo que ele sofreu e que futebol é isso mesmo, alegria, diversão, encantamento...
Contra a Áustria e a Inglaterra jogou Joel, ponta direita do Flamengo, que até tinha sido pivô de uma briga entre seu atual clube e o Botafogo, onde começara a sua carreira e fora aliciado pelo Flamengo, no início da década de 50. Era bom jogador, mas limitado, sem muito repertório a acrescentar ao escrete brasileiro.
O jogo contra a Rússia, o terceiro da fase classificatória, seria decisivo para o Brasil. Se perdesse, a seleção poderia arrumar as malas e retornar mais uma vez derrotada de uma Copa do Mundo.
Didi e Nilton Santos, os mais experientes jogadores da equipe, decidiram ir até o técnico Feola e ao presidente da delegação, Paulo Machado de Carvalho:
-- Dr. Paulo, o Garrincha tem que entrar, se não podemos dar adeus à Copa -- disse Didi.
-- Não temos nada contra o Joel, que é nosso amigo, mas o Garrincha vai dar um nó nos russos, eles vão ficar tontos, sem saber como reagir -- confirmou Nilton Santos.
Feola ainda tentou ponderar:
-- Mas, ele é indisciplinado, irresponsável, não pensa no time, parece que gosta de brincar sozinho com a bola, só dribla, dribla, não joga para a equipe...
-- Mas, ele é assim mesmo, "seu" Feola... tem aquele seu jeito desligado de jogar, mas enlouquece os marcadores... E, desculpe, ele joga para o time sim... quantos gols o Paulinho Valentim e o Quarentinha fizeram com cruzamentos dele, lá no Botafogo... -- rebateu Nilton.
Feola ironizou:
-- Nem no psicotécnico que o Dr. Carvalhaes fez com ele aqui, conseguiu ser aprovado...
-- Ele joga bola, "seu" Feola, é semi analfabeto, nem sabe o que é psicotécnico -- rebateu Didi.
Paulo Machado de Carvalho ouvia tudo em silêncio. Depois que todo mundo falou, disse:
-- Está certo, Didi e Nilton, vocês deram a sua opinião. Vou conversar com calma com o Feola e decidir o que fazer.
No dia seguinte, antes do jogo, Joel sentiu uma providencial dor no joelho direito e foi afastado. Feola escalou Garrincha e, de quebra, também chamou Pelé, para jogar ao lado de Vavá, que já fora colocado no lugar de Mazola. Zito, também entrou no meio de campo, no lugar de Dino Sani, contundido.
Todo a delegação temia os russos. Altos, fortes, treinavam de manhã e à tarde, num campinho perto da concentração brasileira. Tinham ido bem nos jogos anteriores e eram até considerados favoritos para o jogo contra o Brasil. No gol, tinham o melhor goleiro da Europa, o Aranha Negra, Yashin. No meio de campo, Ygor Netto, o grande capitão.
Nilton, na véspera do jogo, foi ao quarto de Garrincha:
-- Te prepara, Mané, que você vai entrar amanhã. Não vai decepcionar a gente, joga sério...
Ele, que nem esperava mais jogar na Copa, reagiu com indiferença:
-- Ué, Nilton, eu não jogo sério?
No dia do jogo, 15 de junho de 1958, as equipes perfiladas para ouvir a execução dos hinos nacionais, os russos olhavam com curiosidade para a equipe brasileira. Estavam preparados para a presença de Joel, que analisaram com cuidado nos jogos contra a Áustria e a Inglaterra.
Perguntavam baixinho,uns aos outros, enquanto os hinos eram tocados:
-- Quem é aquele moreno atarracado, com as pernas tortas, parecendo um aleijado, que vai entrar no lugar do Joel?
Depois, olharam para Pelé, no verdor dos seus dezessete anos. Comentaram com ironia:
-- O Mazola deve estar machucado, acho que eles não tinham ninguém para substitui-lo e colocaram um menino no lugar dele. Deve ser juvenil ainda.
Já antegozavam o prazer da vitória, achando que o jogo seria fácil.
Executados os hinos, escolhidos os lados do campo em que cada equipe atuaria no primeiro tempo, o Brasil iria dar a saída.
Começavam aí os três minutos mais lindos da história do futebol mundial, aqueles considerados os três minutos mágicos, reconhecidos como os mais espetaculares já vistos até hoje por toda a crítica especializada depois que o jogo terminou.
Vavá deu a saída, tocando a bola para Pelé. Esse recuou para Zito, alguns metros atrás. Zito avançou com a bola dominada e no círculo central, passou-a para Didi. Este, recebendo o passe, levantou a cabeça e divisou Garrincha aberto na ponta direita. Esticou um passe de quase 30 metros. O gênio matou a bola no bico da chuteira e avançou devagar. No bico da grande área, Kusnetzov aproximou-se para dar-lhe combate. Manteve uma certa distância, talvez esperando que atitude o aleijado de pernas tortas tomaria. Deve ter pensado: "Vai ser fácil tirar-lhe a bola, não vai conseguir passar por mim".
De repente, a explosão: o demônio dá uma arrancada rápida para a direita, seu drible característico, deixando Kusnetzov a mais de dois metros distância atrás. Então, já no bico da pequena área, dá um violento petardo com a perna direita, que explode no poste esquerdo de Yashin, que, atônito, não sabia o que fazer. A bola, depois de balançar a trave russa, vaí para fora. Os russos se entreolhavam, abismados.
Yashin bate o tiro de meta. No círculo central, a bola é dominada por Zito, que novamente faz o passe para Didi. Este, outra vez, procura Mané, na ponta direita. Ele recebe a bola e parte para cima da defesa russa. Agora, além de Kusnetzov, outro marcador estava ao seu lado. O demônio, mais uma vez, arranca pela direita, deixando os dois russos para trás, e, desta vez, cruza para o centro da área. Vavá não conseguiu alcançar a bola, que, novamente, sai pela linha de fundo.
A defesa russa estava um pandemônio. Discutiam entre si, gesticulavam nervosamente, procuravam encontrar a melhor forma de marcar aquele ser do outro mundo, que estava infernizando-lhes a vida. E, durante aqueles três minutos, a cena se repetiu. Garrincha, já agora marcado por três ou quatro russos, continuava deixando-os para trás, enlouquecidos. Ora cruzava a bola para o meio da área, ora tentava o chute direto para o gol. Os russos só tinham tocado na bola na hora de bater os tiros de meta, pois, para eles, felizmente, nenhuma daquelas jogadas resultou em gol. Vagavam em campo como zumbis, como autômatos, incapazes de encontrar uma fórmula que lhes permitisse parar aquele demônio que jogava contra eles.
A marcação sobre Garrincha, nos lances seguintes, já tinha cinco, seis jogadores. Ele continuava driblando, driblando, pasando o pé sobre a bola, voltando com ela dominada, dando gingas de corpo que deixavam seus marcadores enlouquecidos.
Com isso, com toda a marcação em cima de Garrincha, pelo lado direito do ataque brasileiro, foi fácil para Didi encontrar os espaços necessários para fazer lançamentos para Vavá e Pelé, tendo o primeiro marcado os dois gols do Brasil naquele jogo.
Depois do jogo, no vestiário russo, Kusnetzov desabafou, atirando com raiva as chuteiras contra os azulejos da parede:
-- Chega, vou parar aqui de jogar futebol. Eu pensava que jogava alguma coisa, mas futebol de verdade é o que eles jogam.
E o gênio voltou tranquilo para a concentração, esquecido de tudo aquilo que fizera em campo, sem se preocupar com o rebuliço que havia provocado na imprensa internacional com sua atuação, como se ela fosse a coisa mais natural do mundo. Colocou na vitrolinha portátil que comprara na Itália um disco do trombonista Raul de Barros e ficou assoviando despreocupado, como se estivesse sob a sombra de uma árvore na sua Pau Grande, de onde surgira para assombrar o mundo...
2 comentários:
Parabéns!! Emocionante, esse texto!
Eu, que só sei de Garrincha o que ouço e algumas imagens de dribles famosos, me vi assistindo essa partida mágica...
Foi como se tivesse visto com meus olhos...
Muito bom, gostei.
Bjão, pai!
Parabéns!! Emocionante, esse texto!
Eu, que só sei de Garrincha o que ouço e algumas imagens de dribles famosos, me vi assistindo essa partida mágica...
Foi como se tivesse visto com meus olhos...
Muito bom, gostei.
Bjão, pai!
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