Os três minutos...
Calfilho
Os amigos se foram... As lembranças continuam... Não vi Heleno, mas vi Zizinho, Garrincha e Pelé... Até 1957, era cantorriense, o azul e branco de Niterói... Gostava muito do Canto do Rio, clube que então disputava o campeonato do Rio, apesar de ser de outro Estado, antes da fusão. Frequentava sua sede social, ali praticava vários esportes, curtia bastante seus bailes de carnaval. Tinha contato próximo com seus jogadores da época, que por ali sempre transitavam: Garcia, goleiro, que veio Flamengo; Veludo, também goleiro, reserva de Castilho na Copa do Mundo de 1954, vindo do Fluminense; Eli do Amparo, vindo do Vasco; Lafayette, Vitor, também oriundos do Fluminense. E Osmar, Mituca, Jairinho, Caboclo, pratas da casa, e tantos outros... A maioria dos que vieram de outros clubes estava em fim de carreira, aproveitando para jogar profissionalmente suas últimas partidas enquanto as pernas ainda aguentavam. Até que no final daquele ano, quando assisti pela televisão a final do Campeonato Carioca e vi aquele ponta direita endiabrado fazer o que fez em campo, arrasando com o pobre time do Fluminense, na épica vitória por 6 a 2, conquistando o título da cidade, tomei a decisão: dali para frente torceria pelo Botafogo, o time da estrela solitária. Já estava cansado de torcer para o Canto do Rio, que apenas ganhava um joguinho aqui, outro ali, mas sempre chegava nas últimas colocações quando o campeonato chegava ao fim. No meu fanatismo pelo futebol, cheguei a acompanhar a equipe cantorriense quando ia jogar nos diversos campos da cidade. Caio Martins, sua casa; Bariri, Conselheiro Galvão, Teixeira de Castro, São Cristóvão, Moça Bonita, Campos Sales, São Januário, Laranjeiras, General Severiano e, claro, até no Maracanã.
Depois que passei a torcer pelo Botafogo, cada dia mais me encantava com o que Garrincha fazia em campo. Lembro-me do seu início de carreira, quando estreou no time de futebol profissional do Botafogo, em 19 de julho de 1953. Oduvaldo Cozzi, transmitindo um jogo no Maracanã, recebeu a informação de que em Teixeira de Castro, o Botafogo estava lançando um ponta direita que estava infernizando a defesa do Bonsucesso. Já tinha feito três gols e o Botafogo continuava massacrando. Ninguém sabia seu nome ao certo. Pela informação que lhe foi passada e pela velocidade com que passava por seus adversários, o repórter disse a Cozzi que seu nome talvez fosse Gualicho, referência a um famoso cavalo muito veloz que corria no Hipódromo da Gávea.
Fiquei acompanhando de longe sua trajetória no Botafogo, às vezes via alguns jogos da equipe pela então TV Tupi. A princípio, pelo que vi, não me impressionei muito, torcedor de futebol com apenas doze anos de idade. Achava que ele driblava muito, era rápido, mas improdutivo. Seus dribles não levavam a nada de útil. Continuava cantorriense. Mas, depois daquele jogo contra o Fluminense, na final do Campeonato de 1957, não tive mais dúvidas: o homem era um gênio. Daquele jogo em diante, passei a acompanhar mais de perto sua carreira. Fenomenal, diabólico, ninguém conseguia marcá-lo. Seus famosos dribles para a direita passaram a ser mais objetivos: depois de deixar um ou dois marcadores para trás, centrava com precisão para um dos centroavantes botafoguenses. Inicialmente, Paulinho Valentim. Quando este foi vendido para o Boca Juniors, o felizardo passou a ser Quarentinha, que só tinha o trabalho de empurrar para as redes as bolas açucaradas que Mané lhe cruzava da direita.
Claro, em 1958, foi convocado para a seleção brasileira que iria disputar a Copa do Mundo na Suécia. Mas, quase não foi. Julinho Botelho, que então jogava na Fiorentina da Itália, era o preferido de Feola, o treinador. Junto com Joel, do Flamengo, seriam os dois convocados para a ponta direita. Julinho, entretanto, que já havia disputado a Copa do Mundo anterior, em 1954, na Suiça, num gesto de muita nobreza, preferiu recusar a convocação, dizendo que não seria justo com os jogadores que atuavam no Brasil. Ele, que jogava no exterior, entendia que não deveria participar de uma seleção brasileira, prejudicando, assim, jogadores que atuavam no Brasil. Tão parecido com os dias de hoje, não é mesmo?
Foi em 1958, na Copa do Mundo na Suécia, que vi os três minutos mágicos que o futebol me ofereceu... Nada de Ronaldo, nada de Zico, só a marca de um verdadeiro gênio... Hoje, a mídia exalta a aposentadoria do Ronaldo como se ele fosse o maior do mundo... Nada disso... O Flamengo celebra Zico, esquecendo-se de Dida, para mim, o maior jogador que o clube já teve...
O Brasil, depois de vencer com facilidade a Áustria na estreia, saiu de um empate apertado contra a Inglaterra. Aí decidiram colocar o gênio em campo...
Ele, que fora barrado por Feola e outros "sábios" da Comissão Técnica da então CBD, porque driblara a defesa inteira da Fiorentina num amistoso antes da Copa e, não satisfeito, já em cima da linha do gol, voltou para driblar novamente um dos beques e o goleiro antes de mandar a bola para o fundo das redes...
Engraçado que hoje, passados mais de 50 anos da Copa da Suécia, esse mesmo goleiro da Fiorentina, que foi driblado duas vezes pelo gênio, numa entrevista para a televisão, diz que nunca viu nada parecido com aquilo que ele sofreu e que futebol é isso mesmo, alegria, diversão, encantamento...
Contra a Áustria e a Inglaterra jogou Joel, ponta direita do Flamengo, que até tinha sido pivô de uma briga entre seu atual clube e o Botafogo, onde começara a sua carreira e fora aliciado pelo Flamengo, no início da década de 50. Era bom jogador, mas limitado, sem muito repertório a acrescentar ao escrete brasileiro.
O jogo contra a Rússia, o terceiro da fase classificatória, seria decisivo para o Brasil. Se perdesse, a seleção poderia arrumar as malas e retornar mais uma vez derrotada de uma Copa do Mundo.
Didi e Nilton Santos, os mais experientes jogadores da equipe, decidiram ir até o técnico Feola e ao presidente da delegação, Paulo Machado de Carvalho:
-- Dr. Paulo, o Garrincha tem que entrar, se não podemos dar adeus à Copa -- disse Didi.
-- Não temos nada contra o Joel, que é nosso amigo, mas o Garrincha vai dar um nó nos russos, eles vão ficar tontos, sem saber como reagir -- confirmou Nilton Santos.
Feola ainda tentou ponderar:
-- Mas, ele é indisciplinado, irresponsável, não pensa no time, parece que gosta de brincar sozinho com a bola, só dribla, dribla, não joga para a equipe...
-- Mas, ele é assim mesmo, "seu" Feola... tem aquele seu jeito desligado de jogar, mas enlouquece os marcadores... E, desculpe, ele joga para o time sim... quantos gols o Paulinho Valentim e o Quarentinha fizeram com cruzamentos dele, lá no Botafogo... -- rebateu Nilton.
Feola ironizou:
-- Nem no psicotécnico que o Dr. Carvalhaes fez com ele aqui, conseguiu ser aprovado...
-- Ele joga bola, "seu" Feola, é semianalfabeto, nem sabe o que é psicotécnico -- rebateu Didi.
Paulo Machado de Carvalho ouvia tudo em silêncio. Depois que todo mundo falou, disse:
-- Está certo, Didi e Nilton, vocês deram a sua opinião. Vou conversar com calma com o Feola e decidir o que fazer.
No dia seguinte, antes do jogo, Joel sentiu uma providencial dor no joelho direito e foi afastado. Feola escalou Garrincha e, de quebra, também chamou Pelé, para jogar ao lado de Vavá, que já fora colocado no lugar de Mazola. Zito, também entrou no meio de campo, no lugar de Dino Sani, contundido.
Toda a delegação temia os russos. Altos, fortes, treinavam de manhã e à tarde, num campinho perto da concentração brasileira. Tinham ido bem nos jogos anteriores e eram até considerados favoritos para o jogo contra o Brasil. No gol, tinham o melhor goleiro da Europa, o Aranha Negra, Yashin. No meio de campo, Ygor Netto, o grande capitão.
Nilton, na véspera do jogo, foi ao quarto de Garrincha:
-- Te prepara, Mané, que você vai entrar amanhã. Não vai decepcionar a gente, joga sério...
Ele, que nem esperava mais jogar na Copa, reagiu com indiferença:
-- Ué, Nilton, eu não jogo sério?
No dia do jogo, 15 de junho de 1958, as equipes perfiladas para ouvir a execução dos hinos nacionais, os russos olhavam com curiosidade para a equipe brasileira. Estavam preparados para a presença de Joel, que estudaram com cuidado nos jogos contra a Áustria e a Inglaterra.
Perguntavam baixinho,uns aos outros, enquanto os hinos eram tocados:
-- Quem é aquele moreno atarracado, com as pernas tortas, parecendo um aleijado, que vai entrar no lugar do Joel?
Depois, olharam para Pelé, no verdor dos seus dezessete anos. Comentaram com ironia:
-- O Mazola deve estar machucado, acho que eles não tinham ninguém para substitui-lo e colocaram um menino no lugar dele. Deve ser juvenil ainda.
Já antegozavam o prazer da vitória, achando que o jogo seria fácil.
Executados os hinos, escolhidos os lados do campo em que cada equipe atuaria no primeiro tempo, o Brasil iria dar a saída.
Começavam aí os três minutos mais lindos da história do futebol mundial, aqueles considerados os três minutos mágicos, reconhecidos como os mais espetaculares já vistos até hoje por toda a crítica especializada depois que o jogo terminou.
Vavá deu a saída, tocando a bola para Pelé. Esse recuou para Zito, alguns metros atrás. Zito avançou com a bola dominada e no círculo central, passou-a para Didi. Este, recebendo o passe, levantou a cabeça e divisou Garrincha aberto na ponta direita. Como se estivesse no seu Botafogo, esticou um passe de quase 30 metros. O gênio matou a bola no bico da chuteira e avançou devagar. No bico da grande área, Kusnetzov aproximou-se para dar-lhe combate. Manteve uma certa distância, talvez esperando que atitude o aleijado de pernas tortas tomaria. Deve ter pensado: "Vai ser fácil tirar-lhe a bola, não vai conseguir passar por mim".
De repente, a explosão: o demônio dá uma arrancada rápida para a direita, seu drible característico, deixando Kusnetzov a mais de dois metros distância atrás. Então, já no bico da pequena área, dá um violento petardo com a perna direita, que explode no poste esquerdo de Yashin, que, atônito, não sabia o que fazer. A bola, depois de balançar a trave russa, vai para fora. Os russos se entreolhavam, abismados.
Yashin bate o tiro de meta. No círculo central, a bola é dominada por Zito, que novamente faz o passe para Didi. Este, outra vez, procura Mané, na ponta direita. Ele recebe a bola e parte para cima da defesa russa. Agora, além de Kusnetzov, outro marcador estava ao seu lado. O demônio, mais uma vez, arranca pela direita, deixando os dois russos para trás, e, desta vez, cruza para o centro da área. Vavá não conseguiu alcançar a bola, que, novamente, sai pela linha de fundo.
A defesa russa estava um pandemônio. Discutiam entre si, gesticulavam nervosamente, procuravam encontrar a melhor forma de marcar aquele ser do outro mundo que estava infernizando-lhes a vida. E, durante aqueles três minutos, a cena se repetiu. Garrincha, já agora marcado por três ou quatro russos, continuava deixando-os para trás, enlouquecidos. Ora cruzava a bola para o meio da área, ora tentava o chute direto para o gol. Os russos só tinham tocado na bola na hora de bater os tiros de meta, pois, para eles, felizmente, nenhuma daquelas jogadas resultou em gol. Vagavam em campo como zumbis, como autômatos, incapazes de encontrar uma fórmula que lhes permitisse parar aquele demônio que jogava contra eles.
A marcação sobre Garrincha, nos lances seguintes, já tinha cinco, seis jogadores. Ele continuava driblando, driblando, passando o pé sobre a bola, voltando com ela dominada, dando gingas de corpo que deixavam seus marcadores enlouquecidos.
Com isso, com toda a marcação em cima de Garrincha, pelo lado direito do ataque brasileiro, foi fácil para Didi encontrar os espaços necessários para fazer lançamentos para Vavá e Pelé, tendo o primeiro marcado os dois gols do Brasil naquele jogo.
Depois do jogo, no vestiário russo, Kusnetzov desabafou, atirando com raiva as chuteiras contra os azulejos da parede:
-- Chega, vou parar aqui de jogar futebol. Eu pensava que jogava alguma coisa, mas futebol de verdade é o que eles jogam.
E o gênio voltou tranquilo para a concentração, esquecido de tudo aquilo que fizera em campo, sem se preocupar com o rebuliço que havia provocado na imprensa internacional com sua atuação, como se ela fosse a coisa mais natural do mundo. Colocou na vitrolinha portátil que comprara na Itália um disco do trombonista Raul de Barros e ficou assoviando despreocupado, como se estivesse sob a sombra de uma árvore na sua Pau Grande, de onde surgira para assombrar o mundo...