sábado, outubro 27, 2007

MANEQUINHO DO LICEU...

MANEQUINHO DO LICEU


CALF



Conheci-o em 1958.
Eu, no segundo científico. Ele, no quarto ginasial.
Timidamente, aproximou-se do pessoal do Grêmio, interessado em participar de suas atividades, principalmente as esportivas.
Cabelo castanho-claro cacheado num topete caído na testa, tipo Elvis Presley, um dos seus ídolos. Vivia cantarolando uma musiquinha ou outra do então “rei do rock”.
Seu outro grande ídolo era Almir, o “Pernambuquinho”, então estrela máxima do Vasco, supercampeão de 1958.
O Brasil, naquele ano, respirava futebol por todos os poros, após a inesquecível campanha da Suécia, que nos deu o primeiro título de campeões do mundo.
E, para Luiz Carlos, Almir só não participara daquela seleção porque estava contundido. O topete que usava também era uma homenagem ao craque vascaíno, que ostentava um semelhante caído na testa.
A propósito: seu nome verdadeiro era Luiz Carlos, mas todo o mundo o chamava carinhosamente pelo apelido: Maneco ou Manequinho.
Enturmado no Grêmio, passou a participar de suas atividades. Ia ao colégio todas as tardes, depois das aulas do turno da manhã e de uma rápida passada em casa para um almoço ligeiro, para ajudar na confecção das balizas de futebol de salão. Lixou a madeira dos postes e travessão, pintou-os de amarelo, a cor escolhida após votação entre os liceístas.
No dia de inauguração, uma festa num sábado á tarde.
O severo diretor não queria permitir a abertura do colégio aos sábados. Foi convencido a muito custo pelos alunos do Grêmio que se comprometeram a levar um professor de Educação Física para ficar responsável pela preservação do colégio.
Apesar de ser uma festa do Grêmio, até então freqüentado apenas pelos rapazes, várias meninas compareceram. Inclusive atraídas pela promessa de formação de uma equipe de vôlei feminino. Mas, a maioria delas acompanhava um ou outro craque do então embrionário time de futebol de salão do Liceu. Era a namorada do Irapuam, do Telúrio, do Regê, e Verinha, que então flertava com Manequinho. Além de outros casaizinhos de jovens alunos que nada tinham a ver com o futebol, mas que começavam a ter a oportunidade de curtir um pouco mais o seu colégio, fora dos dias de aula.
Realmente, foi uma festa. Recebemos o Plínio Leite, para uma partida amistosa contra os nossos dois times de futebol de salão.
O segundo, com Irapuam no gol, Carrano de parado, Eduardo e Carlinhos nas alas e Manequinho de pivô. Ganhamos de 5 X 3. Três gols de Maneco, um de Eduardo, outro de Carlinhos.
O primeiro time, com Maia no gol, Paulinho Massa de parado, Antonio Matheus e Sérgio Frigideira de alas e Ronaldo de pivô. Liceu 10 X 2.
Depois, quase todos os sábados, já agora com a aquiescência do nosso diretor (o professor Aldo só tinha fama de mau, por dentro era possuidor de um enorme coração), realizávamos festivais vespertinos, com partidas de futebol de salão, vôlei masculino e feminino e basquete.
O ano letivo terminou e, mesmo nas férias de início de ano, conseguimos reunir aqueles que não viajaram para alguns sábados à tarde no Liceu. Sempre com a presença do professor Alber, de Educação Física, e de Azer Ribeiro, que abria os vestiários para o pessoal.
Voltamos às aulas em março de 1959, meu último ano de científico e que também deveria ser o derradeiro no Liceu.
As atividades do Grêmio se intensificaram. Além dos esportes, continuamos com a “Hora do Grêmio”, nos recreios dos turnos da manhã e tarde. As excursões, culturais e esportivas: Quinta da Boa Vista, Volta Redonda (para visita à Cia. Siderúrgica), Angra dos Reis ( Colégio Naval), Marambaia e Cachoeiro do Itapemirim, entre outras.
Na época das festas juninas, organizamos quermesses e arraiais no pátio, com danças de quadrilha e outras típicas (o quentão era vendido escondido dos professores). Muita gente comparecia, já agora com as meninas em número maior, a maioria delas acompanhadas das mães severas, zelando pelo bom nome das filhas.
Manequinho participava de todos aqueles acontecimentos com intensidade. Dos torneios e jogos de futebol de salão, das festas e bailes, das excursões.
Adorava as brincadeiras que o pessoal fazia uns com os outros. Mesmo quando era ele a vítima. Uma vez, no início de 59, fizemos uma excursão ao Colégio Naval, em Angra dos Reis. Levamos os dois times de futebol de salão, vôlei, basquete, futebol de campo, até water-polo, mesmo sem nunca termos jogado esse esporte. Na ida para o Colégio, pegamos uma lancha da Marinha, um “aviso”, como era conhecida dos militares. Alguns dos alunos colocaram suas mochilas no chão e deitaram sobre elas, curtindo o maravilhoso sol daquela manhã de setembro.
Manequinho começou a cochilar. Eu e outros desmiolados lambuzamos seu cabelo com pasta de dente. Ele não acordava. As meninas que foram com a gente riam à vontade. Quando ele acordou, todo mundo fingiu que nada tinha acontecido. Bebeu uma coca, conversou animadamente, enquanto os risinhos escondidos eram dados às suas costas.
Em determinado momento, despreocupadamente, pediu-me o pente:
– Carlinhos, me empresta teu pente. Meu cabelo deve estar um gracinha...
Com cara de cínico, contendo o riso, passei-lhe o pente. Quando ele o passou pelos cabelos, tentando arrumar seu topete, olhou desolado para o mesmo, todo sujo de pasta de dente. Todo mundo ria à vontade, inclusive nosso professor de Educação Física.
Ele olhou para o pente todo sujo, depois para o pessoal que continuava a rir. Esboçou um sorriso. Somente disse, em voz baixa:
– Sacanagem de vocês. Pode deixar que eu vou à forra...
Nada mais que isso. Nenhuma demonstração de raiva,. de irritação. À noite, já no Colégio, não se lembrava de mais nada. Ria e brincava alegremente, como se nada tivesse acontecido.
Continuava sua idolatria por Elvis e Almir. Naquela época, foi lançado um LP de Presley, com as músicas de seu último filme, ainda em preto e branco: “King Creole”. Manequinho vivia assoviando e cantando pelos corredores uma das músicas do LP, intitulada “Young Dreams”...
Seu porta-caderno (naquele tempo era o que os alunos costumavam usar, um porta-caderno de folhas soltas) estava repleto de fotos dos seus dois ídolos.
Era a alegria em pessoa. Sempre brincando, rindo, extravasando bom-humor, amor pela vida.
Certa vez, no final de 1959, quando a cumeeira da casa que meu pai estava construindo no Saco de São Francisco ficou pronta, chamei-o para me acompanhar para tomar um chope lá na obra. Meu pai havia comprado dois barris para os operários. Eu esperava ainda encontrar alguma sobra de cerveja por lá. Era um final de tarde sábado. Deviam ser quatro e meia, cinco horas. Pegamos o trolley nas Barcas e em Icaraí, Verinha subiu. Os dois já não namoravam mais, mas continuavam bons amigos. Convidei-a também para nos acompanhar. Ela topou.
Chegamos na obra, ali na General Rondon, os operários já estavam de porre. Eu conhecia todos eles, pois nos últimos meses acompanhava de perto o andamento da construção. Sentamo-nos em banquinhos improvisados com tijolos e um dos pedreiros, o chefe deles, Joaquim, veio nos trazer os copos de chope. Ficamos a uma certa distância deles, que, respeitosamente, passaram a conversar em voz baixa, apesar de, vez em quando, lançarem um olhar com o rabo de olho para aquela morena bonita que nos acompanhava. Mas, permaneceram onde estavam, não falaram palavrões e por volta das seis horas, despediram-se e foram embora.
Joaquim ainda disse, virando-se para mim:
– “Seu” Carlinhos, ainda tem quase meio barril de chope sobrando. Podem acabar com ele, senão vai ficar choco.
– OK. Joaquim – respondi. – Obrigado e até segunda.
E, ficamos os três ali, iluminados apenas por uma luz de velas que achamos num canto da obra, até às nove da noite, acabando com o resto do barril e jogando conversa fora.
O tempo passou, saí do Liceu, entrei para a Faculdade. Manequinho ali permaneceu até o fim de 1961, quando terminou o científico.
Apesar de distante do dia-a-dia do colégio, continuava mantendo contato com os amigos mais íntimos. Manequinho era um deles. Ainda jogávamos uma partida de futebol de vez em quando, tomávamos um chope na Gruta, íamos a festas ou bailes de Carnaval no Canto do Rio, Gragoatá ou Regatas.
No início de 1962 ele foi servir o Exército, alistando-se no NPOR, lá no Terceiro Regimento de Infantaria, na rua Dr. March, na Venda da Cruz.
Já não o via há uns dois meses. No final de março, Sérgio, um ex-colega de Liceu, me encontrou na rua, e, com a fisionomia triste, me disse:
– Porra, Carlinhos, acabei de saber ontem...
Olhei para ele, ar de surpresa:
– O que foi, Sérgio?
Ele, procurando as palavras com cuidado, despejou no meu rosto:
– Manequinho está com câncer. Leucemia...
Levei um susto:
– O quê? – gritei na Amaral Peixoto, as pessoas olhando para mim.
– Isso mesmo, leucemia. Soube ontem pela mãe dele – retrucou João.
Fiquei um instante sem saber o que dizer. Passados alguns segundos daquele silêncio idiota, consegui falar:
– Meu Deus, Sérgio, isso é verdade mesmo? Eu falei com ele há pouco tempo atrás, jogamos uma pelada na praia, ele estava tão bem, esbanjando saúde...
Sérgio quase não conseguia conter as lágrimas.
– É verdade, sim. Está internado no Hospital Central do Exército, lá no Rio.
Despedi-me dele ainda atordoado, sem saber o que fazer. Chegando em casa, telefonei para outros colegas, que me confirmaram a notícia.


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Num domingo do início de abril, eu, João e Verinha pegamos o bonde no Rio e fomos até a Triagem, onde ficava o HCE.
Ele estava deitado numa cama, sua mãe ao lado.
Sorriu de alegria quando nos viu. Eu e João o abraçamos, Verinha o beijou no rosto. Conversou conosco por mais de meia hora, brincando muito, perguntando sobre o resultado do jogo do Vasco, se Almir tinha jogado bem. Estava apenas um pouco abatido, com aquele avental de hospital cobrindo-lhe o corpo. Mas não emagrecera, sua fisionomia era a mesma alegre de sempre.
Despedimo-nos dele, prometendo voltar no próximo domingo, dia de visita.
Do lado de fora do quarto, sua mãe, tentando manter o controle, não conseguiu esconder as lágrimas. Ainda perguntei:
– Qual é a gravidade? Ele vai se recuperar?
Ela, agora chorando copiosamente:
– Não... não... ele vai morrer... ele vai morrer...



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Na quarta-feira seguinte, 12 de abril, ouço tocar a campainha da casa. Havíamos nos mudado para São Francisco desde maio de 1961.
Minha mãe me chamou no quarto.
– É pra você. Um rapaz e uma moça.
Levantei-me da cama, saí do quarto e olhei pelo vidro da janela. No portão estavam João e Verinha.
Mandei-os entrar, falei que sentassem no balanço de ferro que havia na varanda.
– Péra aí que vou escovar os dentes – gritei.
Fui até o banheiro, lavei o rosto, escovei os dentes, coloquei um short e uma camisa.
Abri a porta da sala, descendo o degrau da varanda. Os dois estavam com os olhos cheios d’água.
Nem precisei perguntar. Verinha, soluçando, disse:
– Morreu, Carlinhos, morreu...
Dei um abraço nos dois e ficamos em silêncio, sem encontrar as palavras que exprimissem nossa dor...



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Eu já havia tido contato com a morte antes...
Quando meu avô morreu, em 1954, estava no segundo ano ginasial do Liceu, no turno da tarde. Era a hora do recreio. De repente, vejo meu pai e Da. Coralina, os dois em pé, junto àquela escadinha que dá acesso ao pátio. Estranhei, a princípio, mas logo caí em mim.
Meu avô materno já estava doente há vários meses, fora operado de um câncer no estômago, os médicos abriram e nem mexeram, dada a gravidade do caso. Meu pai, que era médico, assistira à operação que foi lá em São Paulo. Nos últimos dias, estava internado no Hospital Santa Cruz, da Beneficência Portuguesa. A morte era questão de dias. Por isso, apesar do choque, chorei o que devia chorar, já estava preparado para a notícia.
Quando cheguei perto do meu pai e da inspetora, ele apenas disse:
– Seu avô faleceu. Pegue seu material e vamos embora.
Acompanhei velório, enterro com relativa tranqüilidade. Era inevitável, a gente esperava...
Depois, soube da morte de alguns colegas do Liceu, durante o ginasial e o científico: Jorge Chocolate, Benedito, Noel, Terezinha, que a gente apelidou de Diacuí, por ser ela descendente de índios. Também alguns professores: Amaro, Vieira, Padre Carneiro, Dona Estefania. Mortes tristes, mas de pessoas um pouco distantes do nosso cotidiano.
Com Manequinho foi diferente. Ele era parte da gente, convivia o dia-a-dia com a nossa turma, partilhava das nossas alegrias e tristezas. Era como se nos tivessem amputado uma parte do nosso corpo...



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Ele parecia sorrir dentro do caixão. O topete caído na testa estava impecavelmente arrumado. Vestido com a farda de aspirante do NPOR, verde-oliva reluzente, tinha nos lábios aquele sorriso maroto de menino alegre e brincalhão que nunca desaparecia de seu rosto. As bandeiras do Grêmio, do Liceu, da FESN e do Vasco estavam ao lado do caixão.
A salinha da casa da Conselheiro Paulino, lá no bairro de Fátima, onde tantas vezes conversei com ele, estava cheia de gente. Todos chorando, não conseguindo conter as lágrimas por aquela perda que não tinha dimensão...
Só faltava estar tocando ao fundo uma balada de Elvis e Oduvaldo Cozzi narrando um gol de Almir Pernambuquinho...




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Quarenta e cinco anos depois da sua morte, você deve estar dando um sorriso de satisfação ao saber que tinha tantos amigos, ao constatar a falta que você faz para nós...








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sábado, outubro 13, 2007

O MAGISTRADO...

O MAGISTRADO

CALF



Era juiz no interior do Estado.
Tinha 56 anos, recusara por várias vezes a promoção para a Capital. Era, há muitos anos, o primeiro na lista de antigüidade, já poderia ser desembargador há muito tempo.
Preferiu ficar em Silvermado, comarca pequena, vida calma, tranqüila e metódica. Ali já estava por mais de 22 anos, sua primeira e única lotação desde que fora promovido a juiz titular.
Homem de rígidos princípios morais e éticos chegava diariamente ao Fórum às onze horas, início do expediente judiciário, conforme constava do Código de Organização da Justiça Estadual. Dali saía exatamente às 5 da tarde, como também determinava o referido Código. Tivesse ou não mais trabalho a fazer (exceto nos julgamentos prolongados do Tribunal do Júri). A população da cidade costumava dizer que os relógios das pessoas eram acertados pela "hora em que o Dr. Mario entra e sai do Fórum".
Vestia-se formalmente, com extrema sobriedade... Terno escuro (cinza ou preto), sempre bem passado colete, gravata discreta e um indefectível relógio, que trazia no bolsinho dianteiro da calça, preso a uma corrente de ouro.
Era casado com Maria há 32 anos, mulher de educação tradicional, feita sob medida para ele... Mario e Maria...
Residiam numa casa bonita, bem no centro da pequena cidade, jardim cheio de bem cuidadas roseiras e outras flores, dois andares, cômodos espaçosos, bem claros e ventilados...
Não tinham filhos (porque assim o decidiram).
Mas, gostavam sinceramente um do outro, passando reciprocamente uma atmosfera de carinho e compreensão pouco vista em outros casais. Se já não se amavam loucamente, com a paixão própria da juventude que já se perdera no tempo, respeitavam-se e se derramavam em atenções mútuas. Espontaneamente, sem afetação, quer estivessem sozinhos ou na presença de estranhos.
Dormiam em quartos separados, no segundo andar ("para preservar a privacidade de cada um").
Mas, religiosamente, a cada quinze dias, Mario ia ao quarto de Maria, onde mantinham conjunção carnal, dever sagrado entre um casal unido pelo matrimônio.
Antes, Mario preparava-se para todo o ritual que antecedia o ato sexual. Tomava um longo banho, perfumava-se discretamente, passava álcool nas mãos com cuidado... Maria, também, sabedora de que era chegado o dia, preparava-se com esmero para receber o marido, colocando um belo roupão cor-de-rosa e soltando os longos cabelos já começando a ficar grisalhos, normalmente presos no alto da cabeça.
Carnaval de 1976.
Mario começou a assistir o desfile das escolas de samba na televisão, na sala da casa, no primeiro andar.
Maria, em seu quarto, após o demorado banho, já vestindo o roupão cor-de-rosa, esperava pelo marido. Era o dia...
Às 9 da noite em ponto, Mario subiu.
A porta do quarto da mulher estava apenas encostada, como costumava acontecer a cada quinze dias (marcados no calendário dependurado na cozinha).
Mario entrou, tirou o pijama, abriu o roupão da mulher com delicadeza e, sem dizerem qualquer palavra, consumaram o ato sexual. "Papai e mamãe", é claro.
Após a satisfação da função biológica, Mario torna a vestir o pijama, dizendo para Maria:
- Até amanhã, Maria, durma bem.
Ela, ainda um pouco ofegante, respondeu:
- Até amanhã. Durma bem você também.
Após Mario sair do quarto, Maria levantou-se, tomou uma rápida chuveirada, trancou a porta e deitou-se outra vez, logo caindo no sono (como habitualmente fazia).
Mario foi até seu quarto, tomou outro banho, vestiu um outro pijama e, sem sono, decidiu descer para continuar assistindo o desfile das escolas.
Ligou a televisão, sentou-se no confortável sofá, pegou um refrigerante e biscoitos.
Desfilou o Salgueiro, depois a Mangueira, veio a Beija-Flor...
Mulatas exuberantes, seios à mostra, praticamente nuas, uma minúscula tanguinha, fingindo cobrir-lhes as partes íntimas, cabelinhos enrolados aparecendo na região pubiana, cheiro de pecado no ar, parecendo querer sair da tela de 20 polegadas...
Mario foi ficando excitado, o pênis começou a enrijecer, o pijama foi ficando molhado por um líquido viscoso saído ninguém sabe de onde.
Não conseguindo conter o desejo que o dominava, incontrolável, sobe as escadas e, voz suplicante, murmura, batendo na porta do quarto de Maria:
- Maria... Maria...
A mulher desperta do sono recém-iniciado. Ainda meio sonolenta, voz arrastada, reconhece a voz do marido. Pergunta, um pouco preocupada:
- Sim, Mario. O que aconteceu? Está precisando de alguma coisa?
Ele, gaguejando, voz meio sem graça, responde, perguntando:
- Maria, você se incomodaria... se incomodaria... de me adiantar uma quinzena?
A mulher pula da cama, e já sem qualquer peça de roupa no corpo, abre prazerosamente a porta do quarto...
Após a noite sem limites que tiveram (ela chegou a ficar de quatro para a penetração por trás), a primeira em tantos anos de vida em comum, na manhã seguinte, o relógio da igreja matriz da cidade, pela primeira vez, deu onze horas antes que o Dr. Mario chegasse ao Fórum...


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quarta-feira, outubro 10, 2007

NAMORO NO LICEU...


CALF





Verinha olhou para o relógio.
Faltavam apenas dois minutos para tocar a sirene.
Não poderia esperar mais, tinha que ir para a sala. “Ele não chegava, porra” , praguejou mentalmente.
Seu coração disparava, não conseguia esconder a ansiedade estampada em seus olhos. Silmara, sua colega de carteira desde o primeiro ano do ginásio, chegou perto dela. Puxou-a pelo braço, dizendo:
– Vamos, ele deve ter se atrasado, ou não tem a primeira aula. Por isso se atrasou.
A sirene tocou, convocando os alunos para mais um dia de aulas. Sete e quinze da manhã, em ponto.
O pátio começou a se esvaziar, os alunos das várias séries do turno da manhã procuravam suas salas,
Verinha, já no corredor, nervosa, ainda deu um último olhar para trás, em busca de Rogério. O uniforme azul e branco do Liceu cintilava em seu corpo, limpinho, engomado. como sua mãe gostava que ela fosse para o colégio todas as manhãs.
Não conseguia se concentrar na aula. A professora de história falava sobre a vida de Joana D’Arc, mas seu pensamento passeava por aquelas tardes que ela e Rogério, de mãos dadas, caminhavam calmamente pela calçada da Praia de São Francisco.
Aquela era a fase mais deliciosa da sua vida.
Aproveitava cada minuto, cada segundo, não deixava nada escapar-lhe das mãos. Curtia o seu Liceu, era boa aluna, diretora do Grêmio, fora, a pedido de Carlinhos, quem redigira o seu primeiro estatuto. Adorava passar as manhãs, quando não tinha aula, naquela salinha apertada do Grêmio, lá no fundo do corredor, junto à escada que dava para aquela ruazinha atrás do Liceu.
A turma, ali, era muito gostosa de estar junto. Carlinhos, Josa, Irapuam, Carrano, Joãozinho, Silvinho e alguns outros que ali apareciam de vez em quando.
De menina, só ela.
Independente, resoluta, não tinha satisfações a dar de sua vida. Por isso, era a Verinha do Saco (de São Francisco). Gostava de fazer o que queria, ajudar os meninos do Grêmio na confecção de carteirinhas, programação de esportes, excursões, etc... Pouco se importava com que os outros diziam.
“Verinha só anda com aquele pessoal do Grêmio, gente que não gosta de estudar, que só pensa em festas, beber cuba-libre e hi-fi”.
“Dali, não vai sair ninguém que se aproveite, ninguém vai se formar, vão ficar por aí parasitando”, era o que os outros alunos e até professores comentavam.
Era apaixonada por Rogério, seu deus encantado. Moreno, alto, estudava numa série antes da dela.
Apaixonou-se à primeira vista.
Foi numa parada de Sete de Setembro.
O Liceu, impecável, uniforme azul e branco, fazia o aquecimento da bateria no Jardim São João, perto da Catedral de Niterói.
A bateria, comandada por Azer, fazia rufar os tambores. Bumbo, surdos, caixas e taróis repicavam sob o comando do apito do velho zelador, em estado de graça no seu uniforme de gala, calça azul marinho, camisa branca de mangas compridas, o reluzente LNP bordado no bolso esquerdo.
“LICEU, CAMINHEMOS A CANTAR...” – os alunos ensaiavam, cantando em voz baixa o hino do colégio...
Verinha, no auge dos seus dezesseis anos, era a porta bandeira do colégio. Orgulhosa, vestindo saia azul (era a única que tinha a saia acima dos joelhos) e blusa branca, o escudo do Liceu no ombro esquerdo, a gravata azul frouxa no pescoço, agitava nas mãos a bandeira grande do colégio, só usada em ocasiões especiais. Enorme, azul escuro, com a inscrição LNP em letras brancas em losango, no meio.
“LICEU, PATRIMÔNIO A RESGUARDAR...”, continuavam os alunos a cantar baixinho, aquecendo as vozes para o desfile.
Rogério, um menino de quinze anos, ficou encantado com a coreografia de Verinha, que fazia girar a bandeira do colégio em volteios graciosos, cheios de graça.
Aproximou-se dela , timidamente. Disse:
– Puxa, tá muito bonita essa bandeira. Onde você aprendeu a fazer tudo isso, fazer ela rodar assim?
Ela, rainha do Grêmio, olhou para ele pela primeira vez. Olho no olho, encantou-se pelo rapaz. Parecia com Elvis Presley, seu ídolo máximo. Ainda tentou manter sua posição de veterana, estrela da bateria:
– Gostou?
Ele olhava para ela, extasiado, ar de encantado, sem nada dizer.
– De que série você é? – ela perguntou.
– Quarta. Do ginásio – conseguiu ele responder, ainda sem tirar os olhos dela, admirando suas evoluções com a bandeira.
Amor à primeira vista.
Começaram a namorar, ele ia todas as terças, quintas, sábados e domingos a São Francisco, àquela época um bairro distante e esquecido de Niterói. Não havia água encanada, esgoto, calçamento só na Quintino Bocaiúva, a rua da praia. Ele, para chegar lá, tinha que pegar o trolley 5, dirigido por Roberto, um negão forte, que conhecia quase todos os ainda poucos moradores do bairro.
Verinha morava na Tapuias, na primeira quadra, num dos poucos edifícios de quatro andares que ali existiam.
O namoro era conhecido de todo Liceu. Nos intervalos de aula, no recreio, Rogério e Verinha passeavam de mãos dadas pelos corredores, pela pista de terra, quadra de basquete, dividiam uma merenda num dos bancos de cimento do enorme pátio coberto de telhas, trocavam um beijo escondido junto ao coqueiro da quadra de vôlei.
Sim, porque o Liceu tinha tudo isso naquela época: quadras de vôlei e basquete, campo de futebol, pista de atletismo, um enorme pátio para o passeio dos alunos. “Hora do Grêmio” no alto-falante no recreio, tocando músicas dos The Platters, Elvis, Little Richard...
Só não curtia o colégio quem não queria. Ele tinha tudo a nos oferecer.
A sirene tocou, encerrando a aula de História. A professora saiu, alguns alunos e alunas foram ao banheiro fumar um cigarro escondido.
Dez minutos depois, o som estridente outra vez. Ia começar outra aula. Dª. Nícia, professora de Matemática, sempre com aquele sorriso bondoso na boca, cumprimentou os alunos.
“Nada de Rogério” – pensou Verinha, já irritada.

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Verinha não casou com Rogério.
Rogério não casou com Verinha.

Será se ainda estão apaixonados um pelo outro?



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