DA VIDA...
R E F L E X Õ E S.
Coletânea de Contos
Calfilho
2003
Registrado sob número 261.245, Livro número 467, folha 405.
Fundação BIBLIOTECA NACIONAL
Escritório de Direitos Autorais.
Capa: Jefferson Braga.
Ao meu pai e à minha mãe,
"in memoriam"..
APRESENTAÇÃO
Esta pequena obra reúne dezesseis contos por mim escritos no período de 1965 a 2001, alguns ainda atuais, outros evidentemente ultrapassados pela rápida passagem do tempo.
São todos eles fruto da minha imaginação, pequeno resumo das observações por mim feitas sobre fatos da vida, alguns inspirados em fatos verídicos, outros pura invenção da minha mente, mas ressaltando, desde logo, que qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas terá sido mera coincidência. Estão eles colocados, segundo a memória alcança, em ordem cronológica de realização.
Peço, por isso, a compreensão do leitor para algumas expressões ou situações que possam parecer desatualizadas para os dias de hoje, mas que realmente existiram na época em que os contos foram escritos.
O AUTOR
ÍNDICE
SONHO DE UM ANJO..................................... 9
ORGULHO........................................................ 13
FORÇA DO ESTÍMULO.................................. 30
ENCURRALADO ............................................. 37
ADEUS............................................................... 43
FABIANA.......................................................... 47
O 484................................................................. 49
E DAÍ................................................................ 54
COISAS DE GÊNIO......................................... 57
AMOR INFELIZ............................................... 63
A SABIDINHA................................................. 74
HOME M DO ÉTER......................................... 78
AS DUAS PATETAS....................................... 82
O ASSALTO..................................................... 90
FUGA PARA O NADA.................................... 93
O MAGISTRADO............................................ 110
SONHO DE UM ANJO
Lílian acordou cedo naquela manhã. Era seu primeiro dia de aula. Ansiava por voltar à escola. Desejava rever suas colegas, conversar com elas sobre os passeios que fizera durante as férias, assistir Da. Célia dar a primeira aula daquele ano... Já estava na terceira série primária e era uma das primeiras da turma. Tomou seu banho e, ajudada pela mamãe, vestiu o uniforme novo, ainda passadinho, como viera da loja.
Ajeitou com cuidado a fita branca nos cabelos dourados, mirando-se demoradamente em frente ao espelho, numa atitude de prematura vaidade feminina...
Tinha oito anos e a vida, para ela, começava a desabrochar, na ânsia de aproveitar todos os seus minutos, na agitação contínua de estudar, cuidar de suas bonecas, brincar de roda e de pique. Mas, o que ainda mais gostava era ficar, horas a fio junto da mamãe, antes de chegar a hora de dormir, ouvindo-a ler para ela as histórias dos livros de fada... Adorava as aventuras de Branca de Neve em luta com a Bruxa-Madrasta, de ouvir como Chapeuzinho Vermelho e a Vovó enganavam o Lobo-Mau e, como Peter Pan e Sininho venciam o Capitão Gancho... Ria gostosamente, torcia por seus heróis, ficava apreensiva e nervosa quando as coisas não iam bem para eles, chorava...
Gritaram seu nome da rua:
- Lílian, anda logo... Já tá na hora...
Correu até a janela, e de lá respondeu:
- Já tou descendo... Um minutinho só...
Apanhou sua mala com o material escolar, deu-se uma última olhadela frente ao espelho e desceu correndo as escadas. Na porta, deu um beijo na mamãe, que lhe fez as recomendações costumeiras: cuidado ao atravessar as ruas, não correr muito, voltar logo p'ra casa, não conversar com estranhos, etc...etc...
Na rua, ainda voltou-se para dar um adeus à sua mãe, que a observava, em pé, junto à porta. Deu o braço à Silvinha, sua colega, e lá foram as duas juntas, saltitando alegremente pela calçada...
No colégio, o reencontro com as amigas, depois das longas férias, tomou-lhe todo o tempo disponível antes que tocasse a campainha que as fazia entrar em forma, a fim de se dirigirem para as respectivas salas de aula. Assim mesmo, já na fila, ainda comentava, rindo alegremente e falando alto, como aproveitara suas férias.
Mariazinha viajara de carro com o pai e a mãe; Sônia fora á praia todos os dias; Judith andou p'ra chuchu de barco à vela...
Dª Célia entrou na sala... Cumprimentou alegremente as meninas, tendo nos lábios o sorriso amigo e jovial, uma de suas mais marcantes características. Lílian a adorava... Não só pela maneira agradável e fácil de assimilar com que transmitia suas aulas, mas, principalmente, por sua extrema bondade..Conversava com as alunas após o horário, ouvia seus problemas e dificuldades no aprendizado escolar e da vida, tinha sempre uma palavra de alento e carinho. Levava-as à sua casa, passeava com elas, programava excursões, enfim, estava integrada às suas vidas. Era mais que uma mestra no cumprimento do dever profissional: era uma amiga mais velha.
Ao terminar aquele dia de aula, que passou rapidamente por ser o primeiro após as férias, as alunas precipitaram-se sala afora, fazendo uma barulheira tremenda. Da. Célia, apanhando seus livros sobre a mesa, ao ver passar Lílian e Silvinha, chamou:
- Lílian, tenho uma boa notícia para você...
A menina olhou-a, surpresa. Depois, ficou esperando com ansiedade. Da. Célia disse-lhe, devagar:
- Sua professora de ginástica me disse hoje que você será a representante do colégio, em corrida e salto em distância, nos Jogos Intercolegiais.
Lílian quase caiu para trás. Ficou paralisada. Queria falar, entretanto as palavras não lhe transpunham os lábios. Atirou-se para a professora, abraçando-a fortemente. Da. Célia correspondeu ao gesto, abraçando-a também com ternura.
Disse:
- Eu sabia que você iria ficar feliz...
A menina, voltando a si de sua alegria, afastou-se da mestra e pediu-lhe desculpas pela demonstração de intimidade. Da. Célia apenas riu, felicitando-a mais uma vez.
Na rua, braço dado com Silvinha, Lílian ainda não acreditava no que ouvira.
Permanecia em silêncio, os olhos quase em lágrimas de tanta alegria. Era esse o seu sonho dourado. Por ele treinara dois anos a fio, durante as férias e o período escolar.
Representando a escola, quer correndo, quer saltando, teria mais uma oportunidade de dar vazão à imensa vitalidade que tinha dentro de si. Era uma criança que só se sentia bem quando em atividade...
* * *
Um barulho, vindo de fora da casa, despertou-a. Ainda sorria, com o sonho que tivera ainda bem vivo em sua mente... Com toda a ingenuidade dos seus oito anos, refletia agora sobre a vida...
Dez minutos depois, gritou:
- Mamãe!
Sua mãe logo apareceu. Abraçou-se à filha, beijou-a na face. Perguntou-lhe:
- O que é que o anjo da mamãe quer?
Lílian retrucou, ainda olhando o teto:
- Quero dar uma volta no jardim...
Sua mãe sorriu meigamente e começou a empurrar a cadeira de rodas...
* * *
O R G U L H O
Luís espantou-se ao acender o cigarro, vendo como suas mãos tremiam. Amassou com força o palito de fósforo, levantando-se em seguida. Foi até a janela e olhou para o céu, assistindo o despertar de um novo dia... Colocou a cabeça entre as mãos, correndo os dedos pelos cabelos em desalinho. Por que nascera, meu Deus? Por que vivia? Por que o mundo era tão cruel, tão ruim? Não, não - duas pequenas lágrimas principiaram a desabrochar em seus olhos - aquilo tudo era sonho mau, não podia ser realidade... Shirley estava bem, deveria estar em casa àquela hora, dormindo um sono tranqüilo. E ele não estava em nenhum hospital, aquilo tudo não passava de um pesadelo...
Abriram a porta e ele voltou à realidade. Era a enfermeira carregando uma bandeja.
Olhou-a interrogativamente. Perguntou baixinho, a voz trêmula, embargada pela emoção:
- E então?
- Nada ainda. O doutor vai operar agora...
Voltou a olhar para fora, para o céu escuro, mas coalhado de estrelas... Shirley, Shirley, por que você fora tão criança? Por que não deixou de lado seu orgulho bobo, sua vontade infantil de aparecer?
Mas, por que supunha ele aquilo? Talvez, na realidade, ela nunca o tivesse amado de verdade... Talvez o considerasse mais um de seus amigos, diferente dos outros, quem sabe, mas apenas mais um com quem quisesse se divertir, brincar um pouco com ele, com seus sentimentos...
Mas, ele a amara tanto, amava-a ainda loucamente... Brigaram, separaram-se, porque ela pôs à prova sua dignidade, seu caráter de homem honesto, um pouco crescido demais em mentalidade para sujeitar-se aos seus caprichos e aos daquela turminha de idéias curtas que a acompanhava.
Ela que, junto de seu grupo, aparentava tanta confiança em si mesma, que era a atirada, a de coragem, a "avançada", como se julgava, perto dele era uma criancinha frágil, desamparada, que sentia falta de proteção, do verdadeiro amor...
Rememorava os fatos... Lembrou-se de como a conhecera... Saíra cedo naquele dia para fazer uma reportagem na Zona Sul. Já era quase uma da tarde e ele estava morto de fome, após haver andado por toda a manhã. Entrou num daqueles restaurantes tipo popular, lanchonete, melhor dizendo, que começavam a proliferar em Copacabana e onde podia fazer uma refeição ligeira. Sentou-se numa mesa de canto e, enquanto esperava ser atendido, rabiscava algumas notas num papel. O local estava movimentado, com vários grupinhos espalhados pelas mesas, rindo e conversando alegremente enquanto faziam um lanche. Continuava a escrever, quando uma bolinha de papel, batendo-lhe no rosto e caindo dentro de seu copo de chope, respingou o líquido.em seu terno, fazendo com que ele levantasse o olhar... Numa mesa em frente à sua, um grupo de sete, três moças e quatro rapazes, riram de sua reação de surpresa...
Luís os encarou firmemente, de cara amarrada. Os componentes da outra mesa ficaram um pouco sem graça, menos uma moça que continuava a rir gostosamente. Disse, olhando para os seus companheiros e apontando para ele, em tom de deboche:
- Tadinho dele, sujou o terninho... Mamãe vai zangar quando ele chegar em casa...
Os outros, mais encorajados, riram da observação da menina. Zombavam dele agora...
Luís levantou-se com calma, encarando-a com os olhos gelados.
Chegando em frente a ela, que permanecia sentada, puxou-a violentamente pelo braço, arrastando-a com rapidez para o fundo do bar. Os outros, colhidos pelo imprevisto de sua reação, permaneceram em seus lugares. Apertando fortemente o braço da menina, Luís disse-lhe, em tom ríspido:
- Tome cuidado, neném. Veja com quem você brinca. Um dia desses você pode se dar mal...
Ela, já refeita da surpresa, tentou desvencilhar-se:
- Solte meu braço, seu... seu "fresco".
Luís vibrou-lhe uma bofetada, a mão aberta estalando no rosto da garota.
Um dos companheiros dela veio correndo da mesa. Luís, empurrando-o para o lado, encarou-o firmemente.
- Que é que você quer, garoto? Vê lá se quer se machucar...
O outro, bem mais fraco que ele, parou. A moça disse:
- Deixa p'ra lá, André. Pode deixar que eu resolvo...
O rapaz olhou Luís de lado, depois voltou para a sua mesa. Virando-se para a moça, Luís reparou que de sua boca escorria um filete de sangue. Puxou seu lenço do bolso traseiro da calça, passando-lhe o mesmo, num gesto displicente.
- Toma. Limpa a boca...
Ela apanhou o lenço, passando-o pelos lábios intumescidos.
- Doeu... - disse, num meio sorriso.
Olhava-o maliciosamente, dois olhinhos verdes, ariscos, que não paravam de brilhar.
Ele apanhou o lenço de volta e, vendo que os lábios dela ainda permaneciam inchados, puxou-a pelo braço, dizendo com frieza:
- Venha cá. Vamos dar um jeito nisso.
Conduziu-a ao lavatório e, após molhar o lenço, passou-o com cuidado, levemente, pelos lábios da menina, fazendo pressão com a ponta dos dedos, a fim de estancar o sangue.
Ela continuava com os olhos grudados nos dele, como em transe. Apertou-lhe o pulso da mão que segurava o lenço, dando um gritinho de dor.
- Ai, cuidado. Não aperta tanto, você acaba quebrando o meu dente... - disse, com voz melosa.
Ela sorria maravilhosamente. E ele, não sabia o motivo, estava um pouco perturbado.
Aqueles olhos verdes em cima dele mexiam com seu interior. Retirou o lenço, olhou para a ferida com olhar de entendido.
- Acho que agora está melhor... Abriu a torneira e deixou a água correr sobre o lenço. Torceu-o, enrolou-o em papel higiênico e colocou-o de volta no bolso. Ela, ainda encarando-o com um sorriso zombeteiro,perguntou:
- Qual é o seu nome?
- Luís - respondeu secamente.
- Você não quer se sentar com a gente?
- Não, obrigado - respondeu ele, em frente ao espelho, passando o pente no cabelo. - Já pedi na minha mesa.
- Então... eu posso sentar com você?
Luís virou-se para ela e sentiu, então, toda a força de seu olhar. Ela permanecia fitando-o fixamente, dentro dos olhos, sem pestanejar. Em outra ocasião, ele teria respondido que não... Era meio metido a machão, não gostava de paparicar mulher. Mas, ela tinha algo que o atraía, não sabia o que era... Talvez fossem os olhos verdes, talvez sua pele bem moreninha, de um bronzeado cor de cobre. Poderia ser ainda o cabelo curtinho, franja na testa, ou mesmo o corpo certinho, sem sobrar nem faltar coisa alguma. Ou, quem sabe, aquele sorriso encantador,um pouco ingênuo, um pouco debochado...
Respondeu, quase sem refletir:
- Tudo bem, se você quiser. Mas, não vou demorar muito. Tenho várias coisas p'ra fazer.
Ela tomou-lhe o braço e dirigiram-se para a mesa dele. Seus companheiros da mesa ao lado nem pareceram notar que ela estava com ele, continuando a conversar.
Seu nome era Shirley. Filha de papai rico estudava por esporte, mas sua profissão era gozar a vida. Passava a maior parte dos seus dias nos bares, discotecas, inferninhos, praia, clube, etc... Bebia, dançava, fumava, freqüentava os motéis da Barra, também começando a aparecer no início daqueles anos 60... Papai liberal financiava tudo.
Ele almoçava rapidamente, tinha que fazer uma entrevista dali a meia hora. Ela continuava falando sem parar. Seu linguajar era um festival de gírias, uma língua difícil de entender.
- E é só essa a sua vida? Você não pensa em fazer nada de útil? - perguntou ele, enquanto mastigava um pedaço de carne.
Ela o encarou com uma expressão divertida. Respondeu, assumindo uma pose de filósofa de lanchonete:
- E, o que você considera ser útil? Viver sob as regras dessa sociedade falsa, cheia de hipocrisia, que se esconde sob uma capa de moral artificial, quando no fundo são todos podres? Que criam seus filhos sem amor, sem carinho, sem dar-lhes nenhuma orientação? Pensam apenas neles próprios, em sua posição social, nas festas e recepções a que comparecem por dever social e onde o prato do dia é falar da vida alheia... Não, meu bem, prefiro o meu mundinho, que pode ser pequeno, considerado desregrado, mas que, ao menos, é sincero, livre, onde se tem a impressão de ser alguém. Não um autômato cumprindo ordens, relegado a um segundo plano, mas alguém que vive, que respira e que também tem o direito de pensar, de falar, de ter idéias próprias...
Falava como se desabafasse, não conseguindo disfarçar um tom de revolta em sua voz.
Luís sentia-se intimamente entediado. Já vira aquele filme diversas vezes antes: menininhas filhinhas do papai, cheias de dinheiro, revoltadas contra a sociedade, com raiva do mundo... "É que nunca tiveram que lutar pela vida, nunca passaram dificuldades, tudo sempre foi fácil para elas...". E ainda se faziam de vítimas.
Luís levantou os olhos. Perguntou, sério:
- Você tem problemas em casa, não tem?
Ela sorriu, um pouco sem graça. Pensou um pouco antes de responder:
- Eu não. O que me interessa é o dinheiro deles. Eles que vivam como entenderem, pouco me importa. Desde que não me falte o "tutu"...
Luís decidiu dar uma de moralista, um pouco cinicamente:
- E você não pensa em casar, ter filhos, sua casa? Não pense que vai ser jovem a vida inteira... Um dia você envelhece e vai chegar à realidade de que não foi e nunca conseguirá ser ninguém...
- Eu sou alguém - ela o interrompeu, de forma um pouco brusca. - Pelo menos, p'ra quem me interessa ser. - Apontou para seus companheiros, na mesa ao lado: - Pergunte a eles...
Luís levantou-se e disse-lhe, encerrando a conversa:
- É o que você pensa. Espera que o tempo passa e você vai ver se eles ainda estarão do teu lado.
- Mas, como você é careta - retrucou ela, sorrindo. - Fala igualzinho ao meu pai...
Ele a olhou de cima a baixo, sem nada dizer. Após pagar a conta, virou-se para ela, despedindo-se:
- Bem, vou andando. Infelizmente - sorriu pela primeira vez - tenho que ganhar a vida...
Já ia embora, quando subitamente, não sabe a razão, virou-se outra vez para ela e perguntou:
- Quando é que eu te vejo de novo?
Ela, com um sorriso maroto nos lábios, levantando-se:
- Qualquer dia desses. Depois das dez da noite, estou sempre por aqui.
* * *
Os dias se passaram. Luís, após o dia normal de trabalho, terminava a noite com Shirley e seus amigos. Iam a festas, bebericavam nos bares, faziam programas de violão até altas horas da madrugada, sucedendo-se os dias numa agitação contínua. Luís, cada vez mais, sentia-se prender a Shirley. As tardes, agora, em vez de trabalhar, passava-as com ela, passeando de mãos dadas pela cidade, apreciando seus recantos pitorescos. Era a única oportunidade em que podia estar a sós com ela, pois as noites, Shirley fazia questão de passá-las em companhia de sua turma.
Os companheiros de fé da menina eram duas moças, Rose e Gilda, dois efeminados, Juju e Ricardo, Vítor, o namorado de Gilda e André, o boa vida. Esse era o único pobre da turma, vivendo encostado no dinheiro dos outros. O "parasita", como eles o chamavam. Ele, com cinismo, aceitava com prazer aquele título. Todos, entretanto, gostavam muito dele. Era esse o mundo maravilhoso de Shirley. Seis imbecis, com pouco mais ou menos 20 anos de idade, considerando-se os donos do mundo. Luís não os suportava, Mas, queria estar junto dela, não lhe bastavam apenas as tardes em que ficavam sós. Por isso, reunia-se a eles todas as noites, agüentando, entediado, as conversas que dali nasciam.
Junto ao seu grupo, ela era autoconfiante, dominava suas emoções, fazendo-se de superior, de dominadora do ambiente. Perto dele, entretanto, quando estavam os dois sozinhos, ela parecia mais frágil, mais insegura, parecendo necessitar de alguém que a protegesse. Não era tão atirada, tão convencida, deixando que ele tomasse todas as decisões. Fazia questão, no entanto, de.não admitir sentimentalismos. Gostava de demonstrar, sempre que possível, que vivia somente na realidade, encarando-a crua e friamente, sem fantasias...
Lembrava-se de uma dessas suas demonstrações contra o sentimentalismo... Certa tarde, passeando os dois pela Nossa Senhora de Copacabana, o pôr-do-sol chegando, um fotógrafo de rua, aproveitando a pose dos dois abraçados, andando distraidamente, a cabeça dela apoiada no ombro dele, bateu a chapa. Ela pareceu aborrecer-se com aquilo, e, quando o fotógrafo lhe entregou o papel do estúdio para que apanhasse o retrato posteriormente, ela o amassou com desprezo, fazendo o seguinte comentário e assumindo aquele ar de filósofa, mais uma vez:
- Retratos... P'ra que isso? Eles não espelham a alma, só a aparência. Tenho nojo dessas emoções baratas...
Luís nada disse. Aliás, prometera a si mesmo, desde que começara a sair com ela, a respeitar-lhe a opinião, mesmo que com ela não concordasse. E ela era terna, carinhosa, alegre, uma verdadeira criança em seus braços. Talvez mimada demais, mas nada mais que uma criança.
Adorava pregar-lhe peças, divertia-se com suas reações um tanto ou quanto sérias, chamava-o de ultrapassado, de velho, a ele, que tinha apenas 25 anos. Tinha quase certeza de que ela já começava a amá-lo. Quando a beijava, percebia que ela sentia prazer verdadeiro, fechando os lindos olhinhos e enfiando a língua, nervosa e sem controle, dentro de sua boca... Ela estremecia todinha, entregando-se àquele momento de carinho... Nas madrugadas passadas nos motéis, da Lapa ou da Barra, eram as poucas ocasiões em que ela se traía, deixando transparecer uma pontinha de emoção...
Durou sete meses aquela quase lua-de-mel. O rompimento veio de modo fútil. Mas, a decisão que tomou foi a correta. Não poderia submeter-se a caprichos idiotas e estragar seu futuro, ir contra seus princípios...
Foi num daqueles fins-de-noite, quando já bastante excitados pela bebida, estavam na rua os oito. Ricardo, um dos efeminados, teve a idéia luminosa. Disse, cheio de afetação:
- Vamos fazer alguma coisa diferente hoje? Essa rotina tá me cansando...
Os outros o olharam, curiosos. Shirley, a cabeça apoiada no ombro de Luís, perguntou:
- Que é que vai ser?
- Que tal roubar um carro? Vai ser um barato, vocês vão ver - respondeu a bicha, desmunhecando.
- Juju, que é que você acha? - perguntou Shirley, a princípio desinteressada.
A outra bicha, entusiasmada:
- Legal, ótima idéia. Quem é que vai fazer a ligação direta?
Os outros concordaram. Luís disse:
- Bem, eu vou embora. Se vocês querem fazer merda, não contem comigo...
Ricardo o encarou, fazendo-se de ofendido
- Que foi que houve, grande homem? Tá com medo? Eu acho que você é quem devia fazer a ligação...
Luís deu-lhe as costas, dizendo:
- Sai p'ra lá, palhaço. - Virou-se para Shirley, puxando-a pelo braço: - Vamos embora, Shirley.
Ela separou-se dele, largando do seu braço. Disse calmamente:
- Não, eu fico com eles. Se você é covarde, nós não somos. Vai dormir cedo, benzinho. Lugar de criança é na cama...
Luís ficou chocado com a reação da menina. A raiva tomou conta dele, fazendo-o ficar vermelho como um camarão. Controlou-se, entretanto. Disse-lhe baixo, com voz rouca:
- Está bem, faz o que você quiser. Você é dona da sua vontade, sabe de tudo. Mas, depois, quando se arrepender, não vem chorar no meu ombro...
Afastou-se, deixando-os rindo dele.
* * *
Não mais a viu por uns dois meses. Afastou-se completamente dos lugares onde poderia encontrá-la e ao seu grupo. Voltou ao ritmo normal de trabalho, produzindo agora mais que nunca, na esperança de, com as horas do dia cheias, conseguir esquecê-la. Em vão... Ela não saía de seu pensamento. Dormia e acordava com sua figura na mente. Por várias vezes, pensou em procurá-la, abraçá-la e beijá-la loucamente, dizendo-lhe o quanto a amava... Acabava resistindo à tentação. Tinha que lhe mostrar que era mais forte e que aquele não era o caminho a seguir na vida. Viver cercada de parasitas, de gente vazia...
Viu-a uma vez, quando fazia uma reportagem à noite, numa Delegacia de Polícia da Zona Sul... O camburão chegou, trazendo-a e à sua turminha de babacas. Todos alcoolizados.
Quando o viu, ela pareceu ter um choque. Controlou-se, fingindo não o reconhecer, virando o rosto com desprezo. Seus colegas, ao vê-lo, embriagados, comentaram, em tom de deboche:
- Olha ali o fujão. Tem ido cedo p'ra caminha, babaca?
Ele nada respondeu. Ficara perturbado ao vê-la naquele estado. Completamente bêbada, transtornada, fora de si, numa Delegacia de Polícia...
O Delegado mandou recolhê-los. Depois que saíram, perguntou a Luís:
- São seus conhecidos?
- Sim, conheço eles. O que é que fizeram?
- Nada de sério. Bebedeira, arruaça num bar...
- Se o senhor quiser, eu me responsabilizo por eles. Pode soltá-los...
Depois de um tremendo esporro do Delegado, foram mandados embora. Menos Shirley... Ao saber que Luís intercedera por eles, recusou-se a sair. Preferiu ficar detida...
Disse ao Delegado, com desprezo e insolência:
- Por favor, avise meus pais. Eles vêm me soltar. Não preciso que nenhum babaca faça nada por mim...
E dormiu na cadeia...
* * *
Alguns meses mais tarde, ao sair da redação do jornal, foi abordado por André, que o fez parar.
- Como é que vai?
Luís fitou-o de alto a baixo. Respondeu, um pouco aborrecido:
- Tudo bem. Alguma novidade?
André estava alegre. Sorria muito, mostrando os dentes, naquele cinismo que o caracterizava.
- Novidade? Nenhuma... Por que você sumiu?
Luís voltou a olhá-lo de cima a baixo, procurando adivinhar porque ele fora procurá-lo, já que, evidentemente, aquele encontro não era casual. Respondeu secamente:
- Você deve saber melhor que eu...
André sorriu novamente. Bateu-lhe no ombro, num gesto amistoso.
- Deixa isso p'ra lá, meu amigo. Aquilo realmente foi uma besteira, mas já passou.
- Olhe, Rose vai dar uma festa na casa dela, no sábado. Por que você não aparece? Só p'ra bater um papo com o pessoal...
Luís ficou em silêncio por um instante. Depois, respondeu, procurando demonstrar indiferença:
- Vamos ver. Vou pensar...
Estava doido para perguntar por Shirley, mas se conteve...
* * *
Na noite de sábado, em seu velho Austin, rodava a esmo por Ipanema, que naquele janeiro de 1960 era bem diferente do que é atualmente. Menos edifícios, mais casas, inclusive na beira da praia, hoje praticamente inexistentes. Menos gente nas ruas, movimento tranqüilo das pessoas, sem o corre-corre dos dias de hoje; uns saíam da sessão de cinema, na Praça Nossa Senhora da Paz; outros tomavam um sorvetinho, aproveitando a brisa gostosa que vinha da praia.
Luís pensava se decidia ir ou não à casa de Rose. Será se "ela" estaria lá? Deveria estar. Tinha quase certeza de que havia sido ela quem mandou André procurá-lo com aquela conversa mole.
Depois de rodar muito, indeciso, resolveu ir. Deu a volta por trás da casa e estacionou o carro. Ficou dentro dele por algum tempo. Começou a chover forte. Fora do carro, via o céu sendo riscado a todo instante por um sem-número de relâmpagos. Acendeu um cigarro, ligou o rádio e ficou olhando para a casa. Então a viu. Em pé, junto a uma janela do sobrado, lá estava ela. Aquela silhueta tão familiar realçava-se na moldura da janela, cada vez que o céu se iluminava. Esperava-o, tinha certeza. Espiava a todo instante para ver se ele vinha, pensou... Ela,.entretanto, não o vira, nem sabia que ele a observava. Permanecia ali, em pé, qual um espectro noturno, olhando para a rua, em seu posto de vigília.
Acabado o cigarro, ajeitou melhor a gravata, penteou-se frente ao retrovisor, fechou as janelas do carro e saiu.
Entrou na casa. André, já meio "tocado", recebeu-o de copo na mão. Sorria, como sempre...
- Quer dizer que você se dignou a se misturar com a plebe... Venha, vamos entrar...
Luís cumprimentou-o friamente, estendendo-lhe a mão com indiferença. Shirley, que já devia tê-lo visto entrar, dançava agarradinha com um rapaz. Ao vê-lo no salão, apertou-se mais ainda ao par, fingindo não havê-lo notado.
A luz do recinto era tênue, a vitrola tocava em seu volume máximo um long-play de Ray Coniff, todos já pareciam um pouco alegres demais. Rose, ao vê-lo, veio bamboleando, toda risonha.
- Luís, que agradável surpresa. Como foi bom você ter vindo, Temos tanta coisa p'ra te dizer. E, a gente te deve mil desculpas pelo modo como te tratamos...
Tomou-lhe o braço e o levou até uma janela. Ali, ficaram conversando, olhando para fora, para a chuva que caía, copiosa, respingando forte nos vidros e nas poças formadas no chão.
Chuva de verão... Vinha e ia logo embora... Só para refrescar...
Rose, falando muito pelo efeito da bebida, achegou-se mais a Luís, apertando seu corpo contra o dele. Disse-lhe, em voz baixa:
- Olhe, não ligue p'ro que eu estou fazendo. Mas, é que eu quero dar uma lição na Shirley. Ela jurou que você não vinha, que isso pouco lhe importava, você sabe como ela é... No entanto, não dançou com ninguém antes que você chegasse, ficando grudada naquela janela, bebendo como um gambá, espreitando se você vinha ou não... E. agora, se agarra com qualquer um, só p'ra te fazer ciúmes...
Fez uma pausa. Luís deixava-a falar.
- Ela te ama, Luís... Mas, não quer dar o braço a torcer. Quer que você se humilhe a ela, fique de joelhos, para, então, se sentindo a dominadora, aí se entregar ao amor de vocês dois... - Mas, eu sei que você não vai entrar no jogo dela, por isso me deixa te ajudar, já que vocês parecem duas crianças. Daqui a pouco você me beija escandalosamente, aqui mesmo, na frente de todo o mundo, e vamos ver qual será a reação dela... Ou te dá um bom tapa na cara ou cai chorando nos teus braços...
Ele achou aquilo tudo muito estranho. Não sabia se o que ela dizia era sincero, ou se não passava do efeito do porre em que ela se encontrava... Ou, talvez, mais um de seus caprichos, fazer ciuminho na amiga de farra... Deixou-se levar, curioso...
- Tá legal, disse sorrindo. Mas, não pense que faço isso por ela. Ela não me interessa mais. Faço por você...
Rose sorriu maliciosamente. Disse, com ironia:
- Pode deixar que eu acredito...
Continuavam de costas para o salão. Daí a três minutos, os dois já abraçados, Rose puxou o braço dele.
- Agora, Luís, está perto. Vire-se e me beije.
Luís virou-se para o pessoal que dançava e deu de cara com Shirley, ali, pertinho dele.
Seus olhares se cruzaram, e ela, vendo que ele a olhava fixamente, agarrou-se mais ao seu par, beijando-o no rosto..Luís, puxando Rose para junto de seu peito, deu uma sonora gargalhada e beijou-a na boca, com sofreguidão. Reparou que Shirley, a dois passos dele, pareceu ficar surpresa, depois a raiva fuzilou-lhe os olhos. Abandonou seu par no salão e saiu dali correndo, o belo vestido branco esvoaçando no ar...
Luís empurrou Rose para o lado e atravessou com dificuldade aquela multidão de gente dançando. Não a via mais. Ela saíra do salão... Transpôs a porta de entrada da casa e a viu entrar, muito nervosa, num Volks azul. Gritou:
- Shirley... Shirley, me espera. Quero falar com você...
Ela ligou o carro e se afastou velozmente, batendo de leve, ao arrancar, em outro automóvel estacionado. Luís correu para o Austin e o ligou, nervoso. Suava frio, as mãos tremiam... Engrenou a primeira e saiu atrás dela. As luzes traseiras do fusca brilhavam na frente, a uns cem metros de distância... O velocímetro do Austin já estava em 90, ela parecia cada vez se distanciar mais... Pisou o acelerador até o fim. O velho carro parecia que ia desintegrar-se, tal o esforço que fazia... 95, 100... E ela, cada vez mais longe. Ainda bem que, àquela hora, quase duas da madrugada, o tráfego era fraco. O Volks, já em Copacabana, cantou os pneus ao dobrar na Av. Atlântica (que ainda não havia sido duplicada). Ela sabia que ele o seguia... Copacabana foi-se num instante. Atravessaram o Túnel Novo, entrando em Botafogo. No morro da Viúva, ao fazer a curva, parecia que os carros iriam parar no mar... Entraram nas pistas do Aterro do Flamengo. Então, com mais velocidade, aproveitando a falta total de movimento, aconteceu...
Luís viu de longe o Volks bater num dos postes de iluminação, rodar em volta de si mesmo por toda a extensão da pista, capotar três vezes, ficando de rodas para o ar...
Dirigiu-se para o local rapidamente. Ali, saltou correndo do Austin e, entre aquele monte de ferro amassado que sobrou do fusca, do cheiro de gasolina e de borracha de pneus queimada, divisou, estendido no chão, ao lado do carro, o corpo inanimado de Shirley. O rosto, uma máscara de sangue. Sua perna direita deixava à mostra a tíbia fraturada... O braço, também o direito, quebrado, pendia inerte... Sua cabeça parecia rachada, com o sangue correndo em abundância por uma fresta aberta... O cabelo, empapado de sangue, caía-lhe no rosto... Ajeitou-a com cuidado... Os lindos olhinhos verdes permaneciam fechados, como se ela dormisse. Num gesto de torpor momentâneo, beijou-lhe os lábios molhados de sangue. Voltando à realidade, colocou-a nos braços, ajeitando-a com cuidado no banco traseiro do Austin. Dali, quase voou para o hospital.
* * *
Desde as três da manhã estava naquela sala de espera... E nada, nenhuma notícia...
A enfermeira dissera que iriam operar. Meu Deus, ela tinha que ficar boa. Viveria só para ela.
Compreendia, então, o quanto a amava.
Tinha o corpo cansado. A noite em claro fazia, agora, sentir seus efeitos. A cabeça começava a doer-lhe, um torpor tomava conta de si. Os pulmões lhe ardiam, castigados pela fumaça ininterrupta dos cigarros consumidos. Sentia uma sensação de vácuo no estômago, sem ter fome nem sede... As pálpebras tornavam-se pesadas, sentia dificuldade em manter os olhos abertos..Virou-se, ao ouvir abrirem a porta. Era o médico. Estava ainda de avental, e um gorro branco encimava-lhe a fronte. Tinha a fisionomia cansada, mas os traços de seu rosto eram duros, firmes, dando-lhe uma expressão de austeridade.
Luís caminhou para ele, ansioso. Hesitou no meio do caminho, parou... O médico olhou-o de cima a baixo, examinando-o num só relance.
- Foi o senhor quem trouxe a moça?
- Sim, fui eu - respondeu gaguejando. - E, então, doutor, como é que ela está?
O médico olhou para ele. Depois, disse, em tom rápido, com uma certa aspereza na voz:
- Infelizmente, ela faleceu na mesa de operações...
Luís sentiu-se estremecer. Fez um grande esforço para controlar-se, mas suas mãos tremiam nervosamente. Apertou-as com força, uma contra a outra. Procurou dizer alguma coisa, perguntar algo... Nada. Ficou em silêncio.
Depois de algum tempo, passada a paralisia causada pelo choque da notícia, perguntou, com voz sumida:
- Ela... ela disse alguma coisa?
- Não, ela não saiu do "coma".
O médico, tirando um pequeno saco plástico do bolso do avental, passou-o a Luís.
- Tome, isto estava com ela. Devia gostar muito do senhor, pois trazia isto por dentro do soutien, junto ao seio esquerdo. Era sua esposa?
Luís apanhou o saco plástico. Como um autômato. Viu que havia alguma coisa em seu interior. Abriu-o e, ao ver o que era, estremeceu fortemente, suas mãos quase perdendo a sensibilidade. Não, não... não podia ser verdade. Aquilo... A fotografia que tiraram juntos em Copacabana. Então, ela não tinha jogado fora o papel do estúdio... Apenas o amassara, guardando-o consigo... E, depois, apanhara o retrato. Guardava-o junto do coração. Lá estava ela, sorrindo maravilhosamente, a cabeça apoiada em seu ombro, os lindos olhinhos verdes faiscando qual duas estrelas no firmamento...
Seus olhos começaram a se encher de água. Afastou-se em passadas rápidas, deixando o médico no meio da sala... Dirigiu-se ao banheiro. Lá, encostou a cabeça na parede, dando vazão à dor que lhe dilacerava a alma. Chorava, soluçando, mordendo os lábios com raiva... Se um homem não costuma chorar, naquele momento ele era uma exceção à regra...
* * *
Meia hora depois, estava em Copacabana, na Av. Atlântica. Andava pelo calçadão, do lado da praia. O sol apontava, majestoso, no horizonte ao longe, refletindo seus primeiros raios sobre o morro do Leme e o Pão de Açúcar, ao fundo. Os pombos, em bando, esvoaçavam em busca de comida. Cinco e quarenta. A praia ainda estava deserta. Apanhou o retrato do bolso do paletó. Deu-lhe uma última olhada, depois o rasgou em pedacinhos, atirando-os para o ar, atrás de si. Deu-lhes as costas e afastou-se vagarosamente, cabeça baixa, mãos no bolso, gravata frouxa no pescoço, paletó nas costas....A brisa que soprava naquela manhã, que prometia ser de uma luminosidade maravilhosa, levantava no ar, afastando para longe e distribuindo-os pela areia, pela calçada e pela rua, os pequenos fragmentos da fotografia rasgada...
* * *
A FORÇA DO ESTÍMULO
Cláudio acendeu mais um cigarro. Colocou o palito de fósforo no cinzeiro, sobre a mesinha de cabeceira, ao lado de sua cama. Inalou profundamente a fumaça, deixando-a percorrer todas as entranhas de seu corpo. Fitava o teto. Aproveitava o silêncio que agora dominava seu quarto. Todos esses dias, os de sua convalescença, foram repletos de visitas, não deixando, praticamente, para ele, um só momento de calma, de reflexão. Já fazia treze dias que estava no hospital, amanhã teria alta.
Nesse período de recuperação, recebera a assistência moral constante, tanto de sua família, como de seus amigos. Atendia a todos com delicadeza, sorrindo sempre e agradecendo as palavras de conforto que lhe transmitiam. Mas, ansiava por um momento de solidão, em que pudesse raciocinar e analisar com calma e discernimento, a extensão de seus atos até então.
Continuava a fitar o teto... Sua mulher e filhos tinham acabado de deixá-lo. Sua mulher... Renata era um verdadeiro anjo. Sem ela, talvez já tivesse sucumbido há muito. Durante todas as fases em que seu desespero e frustração chegaram ao auge, ela sempre ali estava para apoiá-lo, confortá-lo e incentivá-lo. Sempre lhe dizia que, para ela, só valia o que ele pensava e que seu valor teria que ser reconhecido. E, após mais uma desilusão, lá ia ele novamente cheio de esperanças, reencorajado para uma nova tentativa.
Sim, havia sido um boêmio incorrigível, talvez mesmo irresponsável. Seu espírito alegre, sempre brincalhão, enamorado da madrugada, fez com que sua mocidade fosse inteiramente desregrada. Mas, agora tinha 28 anos e era pai de três filhos. É certo que, de vez em quando, ainda tomava seus porres com os amigos, mas ninguém poderia acusá-lo de irresponsável, pois nunca faltou nada à sua família. Se ainda persistia em participar de algumas noitadas, era devido ao seu imutável temperamento alegre e descontraído, que coisa alguma nesse mundo iria conseguir modificar...
Era o melhor empregado da Companhia. Sabia disso, e todos que com ele trabalhavam também sabiam. Principalmente, a cúpula, os diretores... Mas, sempre o trataram com desdém, achando que ele não poderia arcar com o peso de um cargo de responsabilidade. Lógico, consideravam-no um irresponsável. Mas, por que, meu Deus, não faziam uma tentativa, não lhe davam uma chance? Provaria a todos o quanto tinha consciência de seus deveres, que qualquer cargo, por mais difícil que fosse, não lhe pesaria nos ombros... A implicância era com o seu comportamento fora do trabalho, com a bebida, com seu estilo de vida... O que uma coisa tinha a ver com a outra?
Seus superiores, entretanto, sempre o preteriram quando se tratava de escolher um elemento para algum cargo de projeção na firma. Queriam, para seus postos de comando, pessoas de vida regrada, metódica, mesmo que não possuíssem as qualidades funcionais que o lugar exigia.
Amassou o cigarro no cinzeiro e acendeu outro. Mexeu-se um pouco nervosamente na cama. Seu peito, enrolado por grossas ataduras, impedia-o de respirar normalmente. Voltou a fitar o teto do quarto e seus pensamentos retomaram o curso interrompido...
Pensara por várias vezes em largar o emprego. Mas, já tinha quase nove anos de casa, e havia mulher e filhos que dependiam do seu trabalho. Por isso, a cada nova desilusão, bebia durante dois dias inteiros, descarregando, assim, toda sua raiva interior. Depois, confortado por Renata e pelo carinho dos filhos, colocava a cabeça no lugar e se conformava em voltar ao trabalho rotineiro que lhe era atribuído. Com o correr do tempo, ao surgir nova oportunidade para preenchimento do cargo que almejava, suas esperanças renasciam, fortaleciam-se e ele procurava dar tudo de si durante o período de trabalho para que, afinal, reconhecessem seu valor. Mas, tudo em vão. Na hora, o escolhido era outro. Entretanto, nada faria com que ele mudasse seu modo de agir, pois tinha consciência de sua capacidade profissional e uma personalidade firme, difícil de ser controlada.
Enquanto isso, dava verdadeiros "shows" de conhecimento do serviço. Sabia de trás p'ra frente o mecanismo de todas seções da firma. Quando surgia alguma dúvida, sempre recorriam a ele, inclusive os próprios diretores...
Prometera a si mesmo, da última vez em que viu frustradas suas esperanças de promoção, que não pensaria mais naquilo. Cumpriria, daí por diante, apenas a sua obrigação, sem se importar com o movimento em sua volta. Infelizmente, precisava daquele ordenado, senão já teria largado tudo e começado em outro lugar. Mas, hesitava em trocar o certo pelo incerto. E ia ficando por ali mesmo...
* * *
Até agora não conseguia compreender porque fizera aquilo...
A cena voltou-lhe rapidamente ao pensamento, em cores claras, nítidas, como se a estivesse realmente revivendo.
Era mais um dia de trabalho. Comum, como todos os outros. Quatro horas da tarde.
O movimento de pessoas, dentro da loja, chegava ao seu clímax...
No escritório, no segundo andar, uns quinze empregados trabalhavam. Ele, sentado em frente à sua mesa, recebia a féria do dia, vinda dos diversos setores do magazine. O cofre estava aberto, e ele esperava, tão somente, receber o montante de mais duas seções, para encerrar a escrituração do dia. Era sexta-feira, dia de recolher ao banco o grosso da féria da semana.
Contava maquinalmente o dinheiro espalhado à sua frente, sobre a mesa... Pensava consigo mesmo porque seus patrões o escolhiam sempre para aquele serviço... Ele, somente ele, dentro da firma, tinha capacidade suficiente para contar e escriturar o movimento semanal em apenas duas horas, a tempo de efetuar o depósito no banco. Isto, durante sete anos a fio, sem ter havido erro uma única vez...
Mantinha a atenção presa ao dinheiro, passando-o rapidamente entre seus dedos ágeis... Só reparou quando viu que tudo em sua volta ficou subitamente em silêncio... Àquela hora, dentro do escritório, isso era impossível. Levantou os olhos e, então, compreendeu... Três.indivíduos de chapéu, tendo um lenço preto tapando-lhe os rostos, como os bandidos do antigo "far-west" norte-americano, imobilizavam, pela ameaça dos revólveres que empunhavam, todos os funcionários que estavam no recinto. Um deles fechou a porta do escritório, postando-se diante dela. Os outros dois dirigiram-se para a sua mesa. O da porta disse, em tom alto de voz, com grande calma:
- Vocês todos, quietinhos em seus lugares. Não se mexam e ninguém sairá machucado.
Cláudio, refeito da surpresa inicial, olhou em volta da sala. Todos os funcionários estavam com as duas mãos levantadas, apesar de ninguém tê-los mandado fazer aquilo. Parece que se compenetraram da condição de vítimas de um roubo e, instintivamente colocaram as mãos para cima, como costumavam ver nos filmes americanos. "Porra, pensou Cláudio, será que até na hora de um assalto o brasileiro tinha que imitar o americano, não podia ser original?" Riu consigo mesmo de seu pensamento naquela hora.
Os outros dois mascarados chegaram até a mesa de Cláudio, onde grande parte do dinheiro da féria estava espalhada. Um deles disse, em tom ríspido:
- Você aí... Vai colocando o dinheiro dentro dessa mala.
Jogou uma valise sobre a mesa, em frente ao seu peito. Ele, já mais calmo, encarou fixamente os assaltantes. Nada conseguiu ver, pois as máscaras só deixavam os olhos e a testa de fora.
O outro gritou:
- Anda, vamos rápido, ou eu te estouro os miolos...
Começou a pegar o dinheiro e colocá-lo na mala. Continuava a encarar os dois. "Ora bolas, para que se preocupar? Era só obedecer ao que ordenavam. Ninguém poderia acusá-lo de nada, estava sob a mira de dois revólveres". Além do mais, era bem-feito, a firma não merecia dele qualquer sacrifício. Sempre o trataram com indiferença, iria tratá-los agora da mesma forma.
Continuou a encher a valise. Não ligava para mais nada... Estava era doido para que aquilo acabasse logo, queria tomar um trago. "Para que se arriscar a fazer alguma coisa? E, se morresse, como ficariam Renata e seus filhos? Não, não valia a pena tentar bancar o herói... Não mexeria um dedo...".
Quando acabou de jogar dentro da mala o último maço de cédulas que estava sobre a mesa, olhou calmamente para os dois mascarados. Um, fazendo-lhe um gesto com a arma, disse rápido:
- Levanta. Esvazia o cofre...
Cláudio obedeceu. Notou que o mascarado estava bem nervoso, suava abundantemente na testa. Apanhou a valise sobre a mesa e dirigiu-se para o cofre. O "nervoso" o acompanhou, apontando-lhe a arma. Foi tirando o dinheiro das prateleiras, jogando-o dentro da mala. Ali estava toda a féria da semana. Quase trinta milhões. "Uma boa soma", pensou ele...
Mas, o que é que poderia fazer? O revólver estava quase encostado em sua nuca...
Acabou de esvaziar o cofre. Fechou a mala, mantendo-a segura pelas alças. O mascarado do lado de fora gritou para o do lado de dentro:
- Como é, porra, isso é p'ra hoje? Anda logo com esse "treco"...
Cláudio percebeu o nervosismo de todos eles. Continuava com a valise nas mãos.
Olhou para o mascarado:
- Pronto, o dinheiro tá todo aqui. E agora?
O outro estendeu a mão, dizendo-lhe rudemente:
- Passa p'ra cá. Rápido...
Cláudio notou que, ao fazer esse gesto, o indivíduo desviou, por uma fração de segundo, a atenção que tinha sobre a arma. Fez que ia entregar-lhe a mala, estendendo-lhe o braço. Mas, no último instante, até agora ainda não sabe por que, atirou-a com violência na direção do rosto do outro. Este, tomado de surpresa, cambaleou para trás, caindo para fora do cofre. Cláudio jogou-se rapidamente sobre ele: no entanto, não pode fazer muita coisa, pois seu peito explodiu na mesma hora, parecendo-lhe que estava sendo dilacerado. Não perdeu a consciência, mas sentiu que fora atingido por duas vezes. Ainda se lembrava do barulho dos tiros.
Ficou prostrado no chão, sem poder se mexer, enquanto os assaltantes, apavorados, esqueciam o dinheiro e punham-se a fugir porta afora. Cláudio viu, então, um tanto vagamente, que se formava uma roda de gente à sua volta. Estava estirado, costas no chão, os olhos voltados para cima. Seu peito doía-lhe agora terrivelmente, mas mantinha um leve sorriso nos lábios. Seu queixo e sua boca estavam tintos de vermelho, pois toda vez que expirava, uma golfada de sangue jorrava-lhe pelos lábios. Ouviu ao longe um de seus colegas dizer-lhe que a ambulância já estava a caminho.
Com muito esforço, pediu um cigarro. Colocaram-lhe um nos lábios molhados de sangue e a primeira tragada produziu-lhe uma agradável sensação de alívio interior. Não mais prestava atenção à agitação à sua volta. Olhava apenas para a fumaça do cigarro a se esvair no ar. Viu, então, ainda ao longe, como se estivesse fora daquilo tudo, que o presidente da Companhia estava ali, perto dele, procurando confortá-lo. Ouviu dele essas palavras:
- Cláudio, meu bom amigo, o que você fez é digno dos maiores elogios... Os ladrões já foram presos, graças ao seu ato heróico... Pode ficar tranqüilo, saberemos recompensá-lo... Logo que ficar bom, será o nosso gerente, você bem merece...
Ele nem ao menos lhe dirigiu o olhar. Continuava a fitar a fumaça do cigarro. Até que enfim reconheciam o seu valor... Precisou levar dois tiros p'ra isso... Bem, p'ra que se preocupar com isso? Amanhã, quando saísse do hospital, seria o novo gerente, cargo pelo qual lutara tanto tempo.
Durante o período da convalescença, sempre recebera o conforto e o apoio moral de todos. Seus amigos e sua família... Foram todos muito atenciosos com ele.
Mas, não sabia explicar, sentia-se inquieto, insatisfeito... Uma espécie de nojo, asco por tudo e por todos. Procurava, entretanto tirar aqueles pensamentos maus da cabeça, imaginando-se o gerente da firma...
Essa, sua luta íntima...
No dia seguinte, a primeira coisa que fez ao deixar o hospital, foi entregar seu pedido de demissão ao presidente da Companhia...
* * *
E N C U R R A L A D O
Rabecão despertou assustado... Seus ouvidos, já acostumados a perceber o menor ruído, alertaram-no dos movimentos que faziam fora da casa. Levantou-se silenciosamente, arrastando-se pelo chão até a janela. Com cuidado, correu com os olhos as cercanias do local em que se encontrava. Lá estavam eles, mexendo-se com cautela, fechando o cerco em volta da choupana, fazendo o possível para que ele não os ouvisse, pois esperavam pegá-lo desprevenido.
Tinha de ser assim, porque só em pensar em enfrentá-lo frente a frente, tremiam de medo.
Covardes... Mais de vinte homens, todos armados até os dentes, e tremiam... tremiam diante dele... Arrastou-se até a outra janela e, dali, viu que eles também já se deslocavam por aquele lado.
Cercado... Sentou-se calmamente no meio do compartimento (a casa só possuía aquele) e começou a enrolar um cigarro. Acendeu-o, enquanto seu cérebro trabalhava febrilmente, com uma rapidez espantosa. Eliminava mentalmente os modos que imaginava em poder fugir dali... Dessa vez, parecia que estava "frito". Mas, se o levassem, seria somente morto... Sabia muito bem, mesmo que se entregasse, eles o matariam, não lhe dariam a mínima chance... Desde que fugira da penitenciária, há três anos trás, já acabara com dois deles, e, morte de polícia tem que ser paga com a vida... Esse era o lema deles... Para aquelas mentalidades ignorantes e vingativas, só a morte do criminoso saciaria a sede da sua "justiça"...
A erva começava a fazer efeito. Sua mente tornava-se turva, enevoada, o grau de excitação de seu organismo aumentava rapidamente. Estava tenso, músculos e sentidos prontos a reagir ao primeiro estímulo exterior. Puxou outra tragada profunda: seus olhos ficaram mais vermelhos, ardiam mais... Permanecia num silêncio absoluto. Esgueirou-se lentamente até junto de sua cama. Levantou o colchão de crina e apanhou os dois "45". Conferiu suas cargas e os enfiou por dentro da calça. Arrastou-se de novo até a janela. Viu que conversavam agora em voz baixa, acertando os últimos detalhes para o ataque. Respeitavam-no, e, por isso, queriam ter certeza de que não teria a menor possibilidade de reação. Só então investiriam...
Sentou-se no chão, encostando-se na parede e estirando as pernas para a frente. Relembrava, a poucos instantes do fim que se aproximava, o que fora sua vida... Moleque criado na favela, o pai morto quando ele ainda não tinha dois anos de idade; a mãe, passando a semana toda fora, trabalhando em casa de família, na Zona Sul. Viveu sua infância jogado aqui e ali, aprendendo a ter que se "virar" por si próprio para sobreviver. Assim, com 13 anos já roubava e, aos 14, estava internado numa casa de recuperação de menores... Bem, chamavam-na de recuperação, mas foi ali onde verdadeiramente aprendeu todas as artimanhas e truques do crime..Ali, foi espancado pelos "inspetores de disciplina", foi enrabado por um dos rapazes mais velhos, seguro por outros dois... Depois, matou os três... Mentes jovens já impregnadas de revolta, de ódio. Revoltados até pelo simples fato de terem nascido. O que poderia esperar daquela promiscuidade? As portas do crime lhe foram abertas. Logo reconheceu que ninguém de fora lhe estenderia a mão, aquele é que era o seu mundo, teria que se acostumar com ele... Mas, aquela convivência maléfica, talvez, é que acabou por perdê-lo... Fugindo dali, continuou a assaltar, passando a ser conhecido como um dos terrores das favelas... Aos 17 anos, já tinha cinco mortes nas costas... Daí em diante, sua vida foi uma sucessão de prisões e fugas. Aos 23, já inteiramente constituída sua forma humana, era um tremendo "crioulão" de quase dois metros de altura, forte como um touro. Sempre roubando, matando quem quer que lhe ousasse barrar os passos. Brigas por dinheiro, brigas por mulheres, brigas com a polícia... Matando sempre, agora friamente, sem qualquer emoção...
A sociedade tinha que bani-lo de seu convívio. Ela, que se preocupou tanto com sua infância, procurando encaminhá-lo para o estudo, dando-lhe uma vida decente, longe daquele morro infecto. Aquela mesma sociedade que sempre se preocupou com a pobreza, com a miséria, com o menor desamparado. Sentia nojo de todos eles... Tinham mais é que morrer...
Sempre fora um pária. Nascera marginalizado, vivera marginalizado e morreria como marginal... Escorraçado pelo mundo que lhe negou o direito de viver honestamente, apenas porque nasceu pobre...
Já agora, decorridos três anos de sua última fuga, era considerado o "inimigo público nº 1", sucessor de "Mineirinho", "Lucio Flávio", "Fernando C. O." e outros tantos que, antes dele, atemorizaram a cidade, a polícia, a sociedade... As famílias, quando sabiam que ele estava por perto, tremiam de medo, fechavam portas e janelas, refugiavam-se em suas casas. Seu nome era notícia obrigatória das primeiras páginas dos jornais. A perseguição sobre ele estava implacável.
A polícia vasculhava noite e dia todas as favelas, todos os morros da região. Sempre escapara por pouco, fugindo milagrosamente no último momento.
E, em suas escaramuças com a polícia, liquidara dois deles. Por isso, sabia que não lhe dariam a menor chance.
Vivera esses últimos meses se escondendo, fugindo, cada dia em um lugar diferente.
Sabia que, mais cedo ou mais tarde, eles o apanhariam. Mas, lutaria até o fim, não ia deixar barato não. Já vira a morte de perto várias vezes, acostumando-se a tê-la ao seu lado.
Nisso, a porta da frente foi empurrada violentamente, uma rajada de metralhadora varreu o recinto. Rabecão levantou-se de um só salto, colando-se à parede, junto à porta. O silêncio que se fez não deixava perceber nem o ruído da respiração de quem ali estava. A noite, escura como o breu, nada deixava ver no interior da casa.
Após aqueles momentos de tensão absoluta, quem estava lá fora gritou alto:
- Venham. Ou ele já fugiu ou eu acabei com o bicho. Tá tudo quieto por aqui...
O sujeito acendeu uma lanterna, iluminando o compartimento através da porta aberta.
Foi avançando lentamente. Rabecão coseu-se mais à parede, parando de respirar. Tirou a arma da cintura, já engatilhada, e apontou-a para a porta.
O outro avançava com cuidado. Primeiro, apareceu a ponta de sua metralhadora, feroz, ameaçadora. Depois, seu perfil vislumbrou-se junto à porta. Parou por um instante.
Levantou o cano da arma e gritou:
- Rabecão, você tá aí dentro? Sai de mãos p'ra cima...
O bandido deu um salto para frente. Voltando-se rapidamente, o outro disparou a metralhadora. Acertou apenas a parede, pois Rabecão deu-lhe dois tiros no peito. O camarada deu um grito e caiu pesadamente de cara no chão, no lugar da porta aberta..Aquilo, então, transformou-se num inferno.
Lá fora, parecia que estavam em guerra, visando um único alvo: a choupana. O compartimento foi varrido por balas de todas as armas possíveis de imaginar. Só faltou mesmo canhão...
Rabecão sentiu que fora atingido, jogando-se rapidamente ao chão. De seu ombro direito, quase junto ao pescoço, o sangue jorrava em abundância. Arrastou-se até a janela e, dali, passou a revidar. Os homens lá fora gritavam como doidos, histéricos:
- Vamos, acabem logo com esse miserável...
A dor em seu ombro era terrível. Perdia sangue cada vez mais. Sentia-se fraco, já meio tonto, as forças deixando-lhe o corpo. Era o fim que se aproximava. Sentou-se no chão, parando de responder aos tiros. Encostou-se na parede, estirando mais uma vez as pernas.
Procurou a "erva" em seu bolso e começou a enrolar um cigarro. Talvez fosse seu último. Depois de pronto, acendeu-o e puxou profundamente uma tragada. O efeito foi instantâneo. Seu corpo entrou numa espécie de dormência, fazendo-o esquecer a dor insuportável que sentia. O sangue, entretanto, continuava a esguichar. Já começava a se sentir fora daquilo tudo. Seu pensamento voltava à infância, à favela onde fora criado...
Lá fora, vendo que ele parara de atirar, também pararam. Após um silêncio de mais ou menos dois minutos, gritaram:
- Rabecão, sai de mãos p'ra cima, que não vamos te fazer nada. Você será julgado com justiça, eu te prometo...
Era o Delegado Silva Dantas quem falava. Ele, que já prendera Rabecão várias vezes anteriormente, que já o espancara e humilhara. Homem violento, frio, adorava matar bandidos em nome da lei. Rabecão pensava: "A única diferença entre ele e eu é que ele estudou e eu não... No fundo, os dois somos matadores..."
"Justiça... Conhecia bem a justiça deles". Suava abundantemente. Sua camisa, aberta no peito, estava colada ao corpo, empapada de sangue. O suor escorria-lhe pela testa, pela face, pelo pescoço. Seus olhos lacrimejavam pela ação do "fuminho"...
Num último esforço, sentindo-se quase desfalecer, levantou-se de súbito, as duas "45" nas mãos, e saiu porta afora. Tropeçou no cadáver à sua frente, reequilibrou-se... Do lado de fora, em pé, vomitou fogo por seus revólveres, gritando e chorando como um possesso:
- Venham, seus putos, cambada de covardes... Venham me apanhar se forem homens... Venham... Venham...
As balas choveram sobre ele. Seu rosto contraiu-se no último gesto de dor, o corpo virando uma peneira, os buracos esguichando sangue em todas as direções... Tremeu um pouco e caiu pesadamente. Caiu para a frente, a cara enterrando-se no solo úmido...
No dia seguinte, os jornais estampavam na primeira página a fotografia do Delegado Silva Dantas, vitorioso, transformado em herói, metralhadora na mão, ao lado do cadáver do bandido, sua presa afinal conseguida caçar.
As manchetes estampavam, em letras garrafais:
"ELIMINADO RABECÃO.
A sociedade já pode respirar tranqüila "
A justiça, mais uma vez, se fizera...
* * *
A D E U S ...
É uma sensação estranha, não resta dúvida, a de saber-se condenado à morte... E, pior ainda, com prazo certo. Sérgio sorriu consigo mesmo. Apertou displicentemente o botão do elevador, com o pensamento ainda preso ao passado próximo, de há poucos minutos atrás.
Acendeu um cigarro e ajeitou-se melhor dentro do paletó. Aí, então é que reparou como estava magro. Sorriu novamente, um sorriso amarelo, um pouco sem graça. Encostou-se lá no fundo, apagando o cigarro com o salto do sapato, ante o olhar de censura do ascensorista. De andar em andar, aquele cubículo foi-se enchendo de gente, até completar sua lotação. As pessoas que ali estavam continuavam a viver suas vidas, alheias ao drama que lhe ia na alma Umas conversavam alegremente, outras continuavam a discussão sobre negócios iniciada no escritório, outras apenas esperavam com impaciência a chegada ao térreo. Sérgio olhava no mostrador os andares se sucederem rapidamente nas luzinhas vermelhas, numa descida do infinito para o nada... Pareciam representar a contagem regressiva de seus dias de vida...
Sentia-se um pouco abafado, mas, surpreendentemente, estava num estado de calma em que nunca estivera antes... Finalmente, chegaram... Abriram-se as portas e aquele pessoal precipitou-se rapidamente para fora, com uma pressa incomum. Sérgio ficou vagando a esmo, sem ter a plena consciência do que estava fazendo. Esbarrava, de quando em vez, em um ou outro transeunte que passava, pedia desculpas, seguia caminhando. As calçadas, àquela hora da manhã, quase nove, fervilhavam de gente. Os homens procuravam ansiosamente os locais de trabalho. As mulheres começavam a fazer suas compras, exibindo, com elegância, as últimas novidades da moda...
Recordou-se de como o médico lhe dera a notícia... Meio sem jeito, com cuidado...
Perguntou-lhe se tinha esposa, filhos... Era um dos maiores especialistas do Brasil naquele tipo de doença e, por isso, foi procurá-lo... Vários exames, depois a consulta, agora o diagnóstico...
Esposa, filhos... Bem que poderia ter tido. Mas, namoradas firmes só tivera duas... E, quando o namoro começou a ficar perigoso, encaminhando-se para o inevitável casamento, tirara o corpo fora... Não queria se prender a ninguém. Ou tinha medo? Bem, vamos dizer que preferia a liberdade...
O médico procurava as palavras com cuidado para dar-lhe o diagnóstico. Sérgio logo percebeu que a coisa era grave. Abortou os rodeios do médico, pedindo-lhe que fosse direto e franco, por pior que fosse a notícia..Ele, então, foi cruel... Disse-lhe, as palavras atingindo Sérgio como uma chicotada, que ele estava com câncer no estômago... No último grau... Três meses de vida, mesmo assim, com boa vontade...
Operação? Inútil...
As dores que sentia ultimamente tinham sua razão de ser...
Relembrou seu passado. Trabalho normal, que lhe permitira comprar e mobiliar seu apartamento e ter uma vida financeira estável, sem maiores problemas. Não ficara rico, nem deixaria nada quando se fosse. Também, deixar p'ra quem?
Seu apartamento de solteiro... Se aquelas paredes falassem, passariam uma eternidade contando histórias da carochinha... Histórias de amor e ternura, de copos tilintando à meia-luz, com o fundo de uma música de Ray Coniff em surdina na alta-fidelidade...
Bárbara, sua primeira namorada... Sua figura veio-lhe claramente ao pensamento, como se já não houvessem transcorrido onze anos que a deixara. Tinha ele dezoito naquela época, ansiava por conhecer a vida. Gostava muito de Bárbara, até que ela fez a bobagem. Depois de apenas dois meses de namoro, convidou-o a conhecer seus pais e passar a falar com ela em casa...
Ora, namoro em casa era prenúncio de noivado e ele achou muito cedo para assumir um compromisso... Afinal, ela não era bem o seu tipo...
Esqueceu-se logo da primeira "gamação" nos braços de Mônica... Depois, vieram Sylvia, Sônia e Suely, a trindade dos "S" de sua vida. Amara a todas com o mesmo carinho, com a mesma ternura, sem distinção de uma para outra. O amor, para ele, era constituído de momentos, pouco importando se continuasse ou não. E, os momentos de amor que tivera, soubera aproveitá-los ao máximo...
Pensou de novo na morte. Era tão triste ir embora, quando havia ainda tanta coisa a tirar da vida. O estômago pareceu-lhe pesado, um calafrio percorreu-lhe a espinha... Seria essa a sensação da morte?
Continuava a vagar pelas ruas sem rumo, sem direção, como um autômato. Não via o que se passava à sua volta, esbarrando, agora, mais amiúde, em tudo e em todos...
Lembrava-se de Regina, Marlene, Nilza, Célia e também das passageiras, daquelas de um fim-de-noite qualquer. Sentiu-se um pouco frustrado. Por quê? Talvez por não ter encontrado aquela que o completasse, que o fizesse esquecer a vida boêmia para formar um lar e viver só para ele... Aquela que, se lhe fossem dadas mil vidas mais, queria só uma guardar para vivê-la toda sempre ao lado dela... Era sua deusa sonhada... Talvez loura? Talvez... Talvez morena? Poderia ser... Quem sabe ruiva? Não importava... O que realmente era importante é que seria a "sua", e por ela viveria e morreria...
Sorriu novamente... Sinceramente, achava que não daria certo naquele tipo de vida. A monotonia da felicidade conjugal acabaria por entediá-lo. E ele acabaria voltando para os botequins, para os puteiros, para a noite que tanto amava... Acabaria por fazer a infelicidade de sua mulher, impedindo que ela encontrasse um outro que a compreendesse, que quisesse viver uma vida rotineira, do dia-a-dia comum, enfim, uma vida normal, igual a de todo mundo... Isso era algo que absolutamente não conseguiria fazer... Preferia, assim, viver como um lobo solitário, aproveitando na sofreguidão de um momento de amor, a beleza que a liberdade lhe dava... Sem satisfações, sem cobranças, sem amanhã... Dono do seu nariz, dos seus atos, das suas noites de lua cheia... Quantas noitadas alegres passara em companhia de seus amigos e amigas, daqueles que a sociedade chamava de irresponsáveis... Esses momentos, dele ninguém poderia tirar...
Fez as contas: três meses mais e já estaria dentro da primavera. Ótimo, já era um consolo. Primavera que, para ele, com as flores começando a desabrochar, com os pássaros chilreando alegremente na copa das árvores, seria a estação do adeus... O crepúsculo de uma vida que muitos considerariam inútil... "Morreu, coitado... Também, não fez nada que prestasse... Só sabia cair na farra...", diriam os puritanos, donos da verdade.
Continuava a andar, tão absorto em seus pensamentos que, ao atravessar a rua, não viu o enorme ônibus que avançava velozmente, a fim de preencher o espaço por ele ocupado no mundo, naquela fração de segundo do tempo...
* * *
F A B I A N A
Tinha eu onze anos de idade...
Ela, acho que devia ter uns dezoito...
Deixem-me descrevê-la: morena, bem morena, cabelos lisos pretos, escorridos nas costas... O corpo: bem, deixa p'ra lá, eu só tinha onze anos...
Mas, as pernas... deixa p'ra lá... Mais uma vez, ficou p'ra lá... eu nem pensava nessas coisas...
Eu era o líder dos garotos da rua... Todos na faixa entre 9 e l2 anos...
Futebol todo dia... cafifas empinadas... praia... jogo contra... viajar no estribo do bonde...
E, ela, lá longe... na casa de cima da rua... Cobiçada, desejada pelos mais velhos que eu... Soube até que uns se masturbavam pensando nas suas pernas, nos seus seios...
Nossa rua tinha duas divisões: a turma de cima e a de baixo, atravessada ao meio pela Presidente Pedreira, lá no bairro do Ingá...
Quanto aos menores, sem problemas, eu comandava todos... Mas, quanto aos maiores, era outro mundo...
E ela, vaidosa, ficava as tardes na janela de sua casa, para ser cortejada, admirada...
Quanto a mim, ela nem sabia que eu existia...
Uma vez, meu tio veio passar uns tempos conosco... Tinha vinte e quatro anos...
Quando a viu, ficou imediatamente apaixonado... E, passou a repetir seu nome, em todo canto, em todo lugar: Fabiana... Fabiana...
Eu não entendia nada... Queria era jogar bola, curtir meus onze anos de idade...
Mudei dali... Aliás, com saudades... Foi uma das melhores fases da minha vida...
Acho que ela também dali se foi... Nunca mais a vi, mesmo quando, mais tarde, eu sempre voltava à rua, para rever os amigos que ali deixara...
* * *
Vinte e sete anos depois, voltei a vê-la...
Fabiana... Pele morena, cabelos pretos, escorridos nas costas...
Reconheci-a de imediato, numa manhã de sol junto à piscina do clube...
Menina travessa...
Começou a flertar comigo... Ela, com quarenta e cinco, eu, tão garotinho, só com trinta e oito... Sentada numa mesa em frente à minha, olhava p'ra mim e sorria, tendo os filhos, já bem crescidos, ao seu lado...
Eu, da minha mesa, com os meus filhos também ao meu lado, disse-lhe baixinho, quase num sussurro:
- Pára com isso, você me viu de calças curtas...
Acho que ela não entendeu, pois continuou a sorrir para mim...
* * *
O 484 ...
Silvinha chorava... Choro sentido, sofrido, remoído... Duas pequenas lágrimas, somente duas, rolaram por seu rosto... Procurou controlar-se... Pegou o lenço YES, enxugou o arranhão na maquiagem e foi em frente...
A Nossa Senhora de Copacabana estava cheia, gente às pampas andando de um lado p'ro outro, de cima para baixo e vice-versa... Era pouco mais de meio-dia...
Fez sinal para o 484, o COPACABANA - OLARIA. Passava na Praça XV, ali ela ia descer para encontrar-se com Sérgio, seu noivo.
Ainda bem que o ônibus não estava muito cheio... Detestava viajar em pé... Pagou a passagem, sentou-se num dos primeiros bancos...
Pouco tempo depois, sentou-se ao seu lado um elemento não muito simpático, até mal encarado... Sentou-se e foi logo abrindo as pernas, encostando a dele na dela, que usava uma mini-saia.
Silvinha retraiu-se e começou a ler aquela revistinha de sempre (a que usualmente carregava em sua bolsa), evitando olhar para o elemento. Este, olhos vermelhos, mas, ao mesmo tempo, com cara de sono, fingia dormir. Abria e fechava os olhos, a cabeça cambaleava, procurava encostar-se cada vez mais junto a Silvinha...
Ela afastou-se, chegou mais p'ro canto... Já estava cansada, passara a noite em claro, tinha chorado muito, tudo o que tinha direito, já havia ressecado suas lágrimas...
- "Cara chato", pensou...
Sua mente divagava, tudo para ela estava tão longe... Perdera a pessoa de quem mais gostava, Joaquim, seu irmão... Morrera tão depressa, tão frágil, sem avisar, sem mandar notícias...
Só soubera de sua morte pelo telegrama... Três simples palavras... "SEU IRMÃO MORREU...".
Aí, para ela, tudo desabou... Sempre foram tão amigos... Quanto ela sofreu, desde que seu pai e sua mãe morreram naquele maldito desastre, em l975... Joaquim e ela, ele três anos mais velho, os dois sozinhos no mundo, combinaram não recorrer a ninguém, a qualquer parente...
Largaram todos eles de lado, deram-se os dois as mãos e foram à luta... Ele, o grande "play-boy", o aproveitador da vida... Quem diria...
Os dois decidiram que cada um iria levar a sua vida, mas sempre comunicando um ao outro o que iriam fazer... Um sabendo os passos que o outro iria dar....Foram treze anos... Joaquim foi para Roma, Silvinha continuou no Rio. Mas, sempre se telefonavam, se falavam, se curtiam...
O elemento arregalou os olhos. Encostou-se mais junto a ela... O 484 já trafegava pelo Aterro...
Silvinha deu-lhe um empurrão... O elemento, doidão, acreditou que ela correspondera ao seu "encostão"... O ônibus, em velocidade, fez uma curva em que quase derrapou... Silvinha acabou encostando sua perna na do elemento... Ele teve a certeza de que ela gostou e se empolgou... Apertou a mão, com força, na perna de Silvinha... Levantou-se rapidamente, os olhos esbugalhados, saliva escorrendo pela boca, já com o "trezoitão" na mão direita...
- Isto é um assalto - gritou...
Todos olhavam para ele... Olhos injetados, suor pingando pela face, a respiração apressada, o "38" numa das mãos, expressão alucinada no rosto...
Ordenou a Silvinha:
- Vai logo... pega tudo desses babacas...
Apontou-lhe o revólver, ante sua hesitação:
- Vai logo, senão eu te mato...
Ela, até então desligada de tudo aquilo, não entendendo direito o que se passava, voltou à realidade... Olhou para o elemento, ainda ao seu lado, em pé, com o revólver ameaçando todo mundo...
O motorista não sabia o que fazer... Diminuiu a velocidade, estavam em frente ao EBONY'S... O trocador, apavorado, apanhou todo o dinheiro que havia na caixa, mostrou-o ao elemento e gritou, lá do fundo do ônibus:
- Toma, toma, pega logo, é todo seu...
Todos estavam apavorados, quase em pânico, apesar de ser aquela uma cena quase diária, atualmente, no Rio de Janeiro...
Silvinha continuava onde estava. sentada, enquanto o elemento da arma na mão estava ao seu lado, em pé, junto à porta do ônibus, ainda espumando, nervoso...
Ele deu-lhe um tapa no rosto...
- Vai, sua piranha, me ajuda, pega logo o dinheiro desses babacas...
Ela ainda pensava em Joaquim, na sua morte sem sentido... Seu corpo agora estava dentro de um caixão, numa capela do Caju... Viera de Roma, embalsamado, pronto para ser enterrado no jazigo da família... Grande família... Aquela que nunca ela teve... E Joaquim, seu irmão, por que fora morrer longe dela?
Olhou para o elemento, os olhos verdinhos e cintilantes, duas outras lágrimas escorrendo-lhe pela face... Lágrimas de raiva...
- Deixa de ser idiota, seu imbecil... Tu não vê que eu tenho mais problemas que você?
- 'MEU IRMÃO MORREU, SABIA?"- gritou... ' VÊ SE NÃO ENCHE O MEU SACO...".
O elemento olhou para ela, espantado, cara abobalhada, os olhos ainda esbugalhados...
Todos no ônibus, aterrorizados, olhavam para os dois...
Ele, ainda em transe, olhava para ela, tentando encarar o seu olhar... Não conseguia...
Ela, olhos de fera, encarava-o firmemente, rangendo os dentes... Todo o seu corpo tremia... O dele, também... Pobre coitado, 28 anos, preto, sem infância, sem pai e mãe conhecidos, rememorou rapidamente o que fora sua vida até ali... Favela, rua sem dono, início, meio e fim no.crime... Prisão, rua, prisão, Delegacia de Polícia... Um "ganho" aqui, outro ali, um prato de comida... Bandidinho vagabundo, nada mais que isso, é o que ele fora durante toda sua vida...
Não agüentava mais aquele olhar dela, tenso, agressivo... Não suportava todo no mundo no ônibus olhando para ele, olhares de medo, mas também de censura...
Abaixou a cabeça e chorou... Chorou com a arma na mão...
Olhou novamente para ela, olhar agora gelado, sem expressão...
Deu-lhe dois tiros, bem no meio da testa...
Depois, levou a arma à cabeça e fez um único disparo...
* * *
O 484 parou na rua Santa Luzia, esquina com Graça Aranha, 3ª DP...
Saiu do seu itinerário, não passou pela Praça XV...
Ali, Sérgio, nervoso, esfregando as mãos, esperava por Silvinha...
* * *
E DAÍ ...
O nome dela: Jane.
O dele: Márcio.
Nenhum dos dois tinha certidão de nascimento... Não foram registrados, não conheceram direito o pai e a mãe... Deles, somente restaram lembranças vagas, imprecisas, de uma infância miserável, faminta, maltratada...
Chamavam-se por esses nomes quando se conheceram, apenas para ter algum nome para um se dirigir ao outro... Dormiam nas calçadas, em Araruama, lá no interior do Estado do Rio...
Ele, com quinze anos; ela, com treze...
Chegaram à Tonelero, em Copacabana... Pediam uma coisa aqui, outra ali...
Sobreviviam...
Era tão bonito quando eles pediam alguma coisa e você dava... Um pedaço de pão, uma roupa velha, até uma oração...
" Crianças, isto é o que eu posso fazer por vocês...".
Eles... tão distantes, tão descrentes de tudo e de todos... Olhares tristes, sem esperança, sem presente, sem futuro... Araruama, bem longe... Nada a ver com Copacabana, aonde vieram parar pensando conseguir algo melhor... Onde viemos parar?
Deixaram rolar as coisas... Uma migalha aqui, outra ali... A vida, tão difícil em Copacabana, decidiram voltar para Araruama... Pediram a você dinheiro emprestado para a passagem, você deu...
Araruama, pior ainda... Fome. Frio. Sede... Sem ninguém para lhes dar a mão, para ajudar... Preconceito contra a pobreza, pior que no Rio... Nem ao menos as migalhas de Copacabana...
Voltaram... A pé, de carona... Tonelero, outra vez...
Juntaram-se a um outro grupo de abandonados, da mesma idade que eles, que já tinham tomado conta de seu antigo ponto na calçada, debaixo da marquise daquele edifício, quase esquina com Santa Clara...
Quatro meninos e duas meninas, todos sujos, maltrapilhos e subnutridos...
Durante o dia, perambulavam pelas ruas, pediam aqui e ali, comiam o que conseguiam arranjar... Um pão duro, um café com leite, quando tinham alguma sorte...
À noite, reuniam-se todos embaixo da marquise, dividiam entre si oito cobertores velhos, aqueciam-se nas madrugadas frias dormindo encostados uns nos outros, os corpos sujos e magros embolados, gozando inconscientemente, até sem perceberem....Jane engravidou... O pai, talvez não fosse o Márcio, não sabia em quem encostara... E daí?
Márcio morreu... assassinado por um segurança de um cara rico, todo poderoso, grande industrial, morador da Tonelero, que nem sabia onde ficava Araruama... Márcio pediu uma esmola ao segurança, este não gostou, Márcio respondeu com um palavrão... No dia seguinte, pela manhã, seu corpo estava estirado no chão, junto ao túnel da Pompeu Loureiro, com duas balas na cabeça...
E daí?
Jane, hoje continua embaixo de uma marquise, morando em uma calçada... Arranjou um novo companheiro, Reginaldo... Está com uma barriga de sete meses...
Tonelero jamais, distância dela...
Ali mataram o Márcio...
Santa Clara, agora...
E daí?
* * *
COISAS DE GÊNIO
Era o maior time da época... Talvez, do mundo todo, só o Santos de Pelé conseguia enfrentá-lo de igual para igual... Manga, Cacá, Zé Maria, Nilton Santos e Rildo; Pampolini e Didi; Garrincha, Amarildo, Quarentinha e Zagalo... (alguns nomes podem estar errados, mas esse era o time-base).
O ano era 1962... O Brasil se sagrara, recentemente, bicampeão do mundo no Chile...
E, a maior estrela da seleção pertencia ao Botafogo... MANÉ GARRINCHA... Fez gol de cabeça, de falta, entortou todo mundo, chegou até a ser expulso... Ele, logo ele, que não ofendia ninguém, que não brigava em campo, que apanhava dos medíocres laterais esquerdos sem reclamar, sem revidar... Mas, com a contusão de Pelé, logo no segundo jogo da Copa, chamou ele para si a responsabilidade de conduzir a seleção... E isso, numa equipe que tinha Gilmar, Djalma Santos, o monstro Nilton Santos, o maestro Didi, o guerreiro Zito e outros inesquecíveis bicampeões...
Garrincha fez de tudo... Foi craque, gênio, moleque, responsável e também não... E, no Brasil, todos comemoramos o bicampeonato mundial...
Voltou ele à rotina do seu Botafogo... O time, que já havia sido campeão em 1961, estava embalado na luta pelo bi... Garrincha, "acabando" a cada jogo... Era o maior jogador brasileiro da época, apesar de Pelé, com seus apenas 21 anos...
As torcidas iam aos campos só para vê-lo jogar... Todas as torcidas, não só a do Botafogo... Tarde de domingo, Garrincha em campo, os pais preferiam levar os filhos aos estádios do que ao cinema, ao circo, ao Jardim Zoológico, ou a qualquer outro divertimento... O "show" de bola que ele dava nos gramados suplantava, de longe, qualquer outro espetáculo... Foi por causa dele que a torcida do Botafogo cresceu tanto... Os meninos que acompanhavam os pais para ver Garrincha jogar, são os botafoguenses fanáticos dos dias de hoje...
Todos os torcedores, todos os jogadores sabiam o que ele ia fazer quando tinha a bola dominada em seus pés... O drible rápido para a direita, a corrida fulminante que ninguém conseguia parar, o cruzamento certeiro para o meio da área... Ali, quase sempre, Quarentinha ou Amarildo conferiam... Às vezes, até, era irreverente... Não contente com o primeiro drible, o lateral esquerdo já batido, ultrapassado, ele parava no meio do pique para o gol, dominava a bola com delicadeza e chamava o adversário para um novo drible (Coronel, do Vasco, que o diga...).
Em novembro de 1962, o Botafogo foi a Teixeira de Castro enfrentar o Bonsucesso, pelo Campeonato Carioca. Estadinho pequeno, lotado, torcida praticamente dentro do campo, um frágil alambrado a separar as arquibancadas da linha lateral... Os torcedores, a maioria botafoguenses, mas também em grande número, a torcida do Bonsucesso, clube de prestígio na época...
* * *
VESTIÁRIO DO BOTAFOGO: acanhado, sem conforto, o time, já uniformizado, fazia o aquecimento... Nilton Santos comandava o polichinelo... Todos já transpiravam, prontos para o jogo...
Menos Garrincha... Sozinho, sentado num banco de madeira, sem camisa, colocava as meias... Assobiava, fora daquilo tudo... Pegou uma das chuteiras, bateu com as travas no chão, olhou distraidamente para todo aquele movimento... Seus companheiros continuavam com o polichinelo, gritando em voz alta: "um, dois, três, quatro, cinco, seis, o Bonsuça é "freguês"... Os dirigentes, eufóricos com a campanha da equipe, davam entrevistas às estações de rádio, distribuíam tapinhas nas costas dos jogadores...
- "Vamos lá, vamos lá, é p'ra ganhar...".
- "Não pode perder, perder p'ra ninguém...", cantavam outros o trechinho do hino do clube...
Garrincha, sério no seu canto, sem parar de assobiar, calçava agora suas chuteiras...
Vestiu a camisa nº 7, a gloriosa... Nilton Santos, seu compadre, que já conhecia bem suas manhas, chamou:
- Anda Mané, vem logo, "esquenta" um pouquinho...
Ele, que não gostava de fazer exercícios físicos, bateu com as chuteiras no chão e fez um aceno com a mão direita:
- Já vou, espera aí, essa chuteira tá apertada...
Nilton sorriu, sabia que ele iria "enrolar"...
* * *
Entraram no vestiário vários dirigentes do Bonsucesso. O Presidente, o Diretor de Futebol, o técnico e outros mais... Dirigiram-se aos colegas botafoguenses... Enquanto conversavam em voz baixa, olhavam todos para Garrincha, que, em seu canto, urinava tranqüilamente... Pareciam ter algum receio de se dirigir a ele... Olhavam-no com respeito, para o maior jogador de futebol do mundo, que, humildemente, mijava num vestiário de quinta categoria, de um pequeno clube de subúrbio carioca... Ah! se Garrincha estivesse jogando na Europa...
Os dirigentes do Botafogo chegaram até perto dele. Um deles falou:
- Mané, o pessoal do Bonsucesso veio pedir p'ra gente falar com você não forçar muito em cima do lateral esquerdo deles...
Garrincha olhou para eles, coçou a orelha e perguntou:
- Ué, por quê? O que é que eu faço?
Um dos dirigentes respondeu:
- É que esse lateral a gente tá pensando em contratar, já que o Rildo vai p'ro Santos... -- E, eles estão doidos p'ra vender... Ele tem 19 anos e promete muito...
Mané olhou novamente, já agora desconfiado... O dirigente logo emendou, temeroso de sua reação, inclusive se ele fosse comentar com Nilton Santos, indiscutivelmente o grande líder da equipe, com total ascendência sobre os outros jogadores:
- Finge que você sentiu alguma coisa, passa a mão no joelho, cai no chão, mas não parte p'ra cima dele... Como eu te disse, ele promete e o preço do passe não vai custar caro... Garrincha coçou novamente a orelha direita... Perguntou, sério:
- O resto do time sabe disso? Olha o bicampeonato...
- Não, ninguém vai saber. Além do mais, o jogo é fácil...
- Bem, se valer a pena p'ro Botafogo... tudo bem - completou, fazendo um aquecimento de mentirinha...
* * *
Os times entraram em campo... O estadinho quase veio abaixo... A torcida do Bonsucesso, fanática, provocava a do Botafogo... Antigamente, antes da maldição da caixa d'água que desabou sobre o futebol carioca, os jogos dos times pequenos contra os grandes, nos estádios daqueles, eram uma verdadeira festa... Não havia clube pequeno sem torcida... Bonsucesso, Madureira, Canto do Rio de Niterói, Olaria, São Cristóvão... Hoje, o deserto, os estádios vazios, os clubes falidos...
Garrincha é vaiado logo ao sair do vestiário, próximo à torcida leopoldinense... Todos torciam pela nova estrela do Bonsuça... Rápido, ágil, um crioulinho atrevido, todos confiavam que ele iria parar Mané... Jordan, Altair, Coronel, grandes laterais esquerdos, até com passagem pela seleção, esses não conseguiram, mas a cria da casa conseguiria... Até onde ia o fanatismo das torcidas...
Foguetes, torcida empolgada, todos felizes da vida, afinal de contas éramos bicampeões do mundo... O centro mundial do futebol era aqui... Todos tinham que se render à evidência maior...
O jogo começa... Didi lança Garrincha... A bola sai pela lateral... Cacá aprofunda, procurando Mané (estava tão acostumado, fazia aquilo de olhos fechados)... O lateral do Bonsucesso, revelação do ano, domina a bola, passa por ele e sai jogando... O gênio parecia desligado, fora do jogo... Terceira, quarta, vigésima jogada e ele se deixa dominar...
Praticamente, não tocou na bola... Ela, mágica, enfeitiçada, caprichosa, parecia fugir dos seus pés... Procurava, apenas, a jovem revelação...
O lateral se empolgou... Era a maior figura em campo... Ao final do primeiro tempo, outra bola lançada para Garrincha, procurando por ele... O gênio, esquivo, fugindo dela, não vai...
O lateral domina no peito, faz dois balõezinhos e joga por cima dele, apanhando-a do outro lado...
Termina o primeiro tempo... Zero a zero... A torcida do Bonsucesso, em delírio, aplaude seus atletas, principalmente o lateral... Gritam alguns:
- Garrincha, tu não é de nada...
Voltam para os vestiários. Garrincha e o lateral se cruzam no caminho, a torcida do Bonsucesso provocando o craque, ele bem longe daquilo tudo...
O lateral, olhos de menino, sorriso de deboche, ofegante, diz p'ra ele:
- Você já acabou, mascarado... Vou te enfiar uma bola debaixo das pernas no segundo tempo...
Mané, ainda desligado, mas sério, baixou o olhar na sua timidez característica (talvez procurasse uma pipa perdida, ou uma bola de gude)... O coro da torcida contrária gritava alto contra ele... As vaias eram intensas... Levantou os olhos...
Disse para o lateral, quase num sussurro:
- Eu acho que você não quer jogar no Botafogo não...
O menino ficou surpreso, não entendeu... Voltou para o vestiário meio abobalhado, sem ter compreendido direito o que o gênio lhe dissera... Ficou matutando, enquanto tomava o banho do intervalo...
* * *
No segundo tempo, ele compreendeu...
Humilhado, driblado, caído, sentado no chão, após levar mais uma bola por entre as penas, no auge dos seus 19 anos, só tinha tempo para olhar para trás, vendo o gênio, bola escrava entre os pés, quase junto à linha de fundo, mais uma vez levantar o braço esquerdo e com os dedos indicar a Amarildo ou a Quarentinha onde o centro da direita iria parar...
BOTAFOGO 5 X 0...
É, gente boa, o lateral acabou sendo contratado pelo Glorioso... A pedido de Garrincha...
* * *
A M O R I N F E L I Z ...
Sílvio mais uma vez delirava...
Era essa sua rotina atual... Trancava-se em seu apartamento, abria uma garrafa de whisky (Teacher's, era a marca) e, depois da quinta dose, deitado na cama, começava a delirar...
Sua mente vagava por outras paisagens, por outras épocas...
Lembrava-se dos primeiros dias... Vinte anos atrás... Tudo felicidade, tudo cor-de-rosa...
Liliane era, realmente, a mulher de sua vida... Namoro bastante difícil, devido à resistência dos pais de ambos... Os dela, pessoas da alta sociedade carioca, achando que ele, advogado recém-formado, filho de família de classe média, sem nada de sólido ou estável a oferecer, estaria dando o golpe do baú... Os dele, pais de filho único, enciumados pela possibilidade dele deixar-lhes a companhia, à qual estavam tão acostumados e até mesmo, inconscientemente, dela dependiam... Afinal, com seus 30 anos de idade, era ele, Sílvio, quem resolvia todos os problemas da casa... Fazia pagamentos, comparecia às reuniões do condomínio (onde mantinha discussões que fizeram história com os demais condôminos, estando todas elas registradas nas atas das assembléias), levava ambos, pai e mãe, ao médico, ao dentista, ao barbeiro, à manicure... Talvez, por essa inconsciente dependência, à qual se habituaram, seus pais tinham medo do seu casamento, medo de perdê-lo...
Sílvio preparou outra dose, ainda deitado. Riu um pouco, riso nervoso, quase histérico... Analisava o seu relacionamento com o pai... "Seu" Silvano era um coroa simpático...
Fechado, sisudo, dava-lhe broncas homéricas... Nunca disse para ninguém, mas Sílvio já descobrira com um amigo mais velho, que ele já fora um dos maiores e mais respeitados boêmios da Copacabana dos anos 30/40... E, agora, depois de aposentado, cabelos grisalhos, próximo dos 65 anos de idade, não queria perder a pose dos tempos antigos... Isso mesmo, não queria perder a pose... Por isso, quando Sílvio, sentindo que o pai já se esquecia de alguma coisa, deixava de pagar esta ou aquela conta de luz ou gás, ele tomava a frente de tudo, resolvia as coisas, e aí surgiam as broncas...
- Você pensa que eu sou algum irresponsável? Quem é que você pensa que é?
Virou mais um gole duplo (puro, sem gelo)...
Com os pais de Liliane, o relacionamento era frio, distante, desconfiado... Ela, a mais nova das três filhas, era tratada a pão e mel. Toda mimada, toda cheia de cuidados... Mas, engraçado, ela, pessoalmente, não dava muito valor àqueles paparicos... Era franca, independente, às vezes até grossa demais....Apaixonaram-se loucamente... Colegas de faculdade, sentiram-se atraídos um pelo outro depois de alguns encontros casuais que tiveram no barzinho onde os alunos costumavam reunir-se. Iniciaram o namoro e, já quando Sílvio foi pela primeira vez à casa dela, sentiu a hostilidade de seus pais.
Era 1968, época em que ainda o namorado tinha que ser apresentado aos pais da namorada e obter o consentimento para o namoro. Tinha ela 19 anos e ele 23 (atrasou-se um pouco nos estudos, malandro de praia que fora). A apresentação foi formal, seca, para não dizer ridícula...
O pai dela, político importante da época, amigo íntimo de vários militares que então governavam o país, olhou-o de alto a baixo, examinando-o cuidadosamente, expressão no rosto misto de curiosidade e já de reprovação antecipada. Estendeu-lhe a mão com displicência:
- Muito prazer, senhor Sílvio (enfatizou o "senhor", como se quisesse manter distância). Então o senhor é o amigo de quem Liliane tanto fala...
Sílvio cumprimentou-o, reverenciosamente.
Apresentou-lhe a mulher, enchendo a boca:
- Esta é minha "esposa" (enfatizou a palavra), mãe de Liliane.
Sílvio riu interiormente. Achava "esposa" uma das palavras mais escrotas do nosso vocabulário...
Mas, educado, beijou a mão da "esposa"...
É claro que não se sentiu à vontade, completamente fora do seu ambiente. As poucas palavras que lhe dirigiram durante o jantar foram "o senhor é de qual família?", "quem são seus pais?", "o senhor trabalha onde?"...
Daí para frente, cada vez que ia à casa dela, sentia-se constrangido. A mesma frieza, as mesmas indagações, algumas indiretas disfarçadas, a mesma desconfiança... Mesmo assim, ia...
E, por isso, ele, que a amava loucamente (e tinha certeza de que era correspondido), teve que agüentar dos pais dela, quanto a um casamento para breve:
- É melhor vocês se formarem antes...
- Acho que, depois da formatura, vocês estarão mais maduros, terão refletido mais...
- Senhor Sílvio, o senhor já está trabalhando?
E ele agüentou... Porque a adorava...
Foi securitário, bancário, agente de viagens... Nenhum desses empregos conseguiu convencê-los... Queriam o melhor para a filha (até insinuavam com outros pretendentes, com melhor posição social e financeira)...
Concluíram o curso... Ele, primeiro que ela, que teve uma hepatite e foi obrigada a trancar a matrícula.
Agora, de diploma na mão, finalmente tomou coragem de pedi-la em casamento (também, às vezes, ele se achava meio covarde, meio devagar... Por que não a comeu logo?... Oportunidades não faltaram...).
E, mesmo com o diploma, ainda encontrou resistências... Ele, já 29 anos, ela com 25...
Finalmente, os respectivos pais decidiram e acabaram aceitando o casamento...
* * *
A festa foi linda (não para o seu gosto)... Riquíssima, cheia de convidados importantes, numa das igrejas mais badaladas do Rio de Janeiro... A recepção, então nem se fala...
Saiu em todas as colunas sociais... Afinal, noiva parenta de Governador não se encontra todo dia...
Mesmo que fosse do MDB, para dar uma aparência de escolha democrática, apesar de ter sido ele indicado pelos militares (a época era 1974, lembrem-se bem).
Felizes, tudo cor-de-rosa... Lua de mel em São Pedro d'Aldeia, os dois sozinhos, um mês só deles...
"Mais um whiskynho, que eu não sou de ferro", pensou em voz alta...
Duplo, sem gelo...
* * *
Um ano depois, nasceu Silvana... Nome difícil de ser escolhido... Ela não gostou, a princípio... Ele insistiu, bateu pé...
Ela ainda argumentou:
- É o nome daquele cientista maluco do Capitão Marvel... Doutor Silvana...
Ele retrucou:
- É também o nome do meu pai.
Ele não cedeu, sendo bastante egoísta, reconheceu depois. Mas, queria colocar na filha um nome que tivesse algo dele e de seu pai.
A família dela chiou... "Que nome feio..." Ele irritou-se, pela primeira vez rebelou-se...
Era aquele e pronto... Ficou sendo Silvana...
* * *
Foi nesse episódio que percebeu o primeiro momento em que Liliane, ao surgir uma desavença entre ele e os pais dela, ficou do lado dos pais.
Daí para frente, começou o seu martírio.
Liliane disse-lhe um dia, resoluta:
- Não quero mais ter filhos.
Ele:
.- Por quê? Eu quero três ou quatro...
Ela:
- Não vou engordar, ficar cheia de filhos p'ra criar... Uma só e basta...
Tudo degenerou... Da loucura, da adoração recíproca, começaram as brigas, as discussões. Motivos: nenhum, ou sem importância alguma... Tudo era pretexto para iniciarem uma batalha... Ofensas, xingamentos, baixaria...
Silvana crescendo... Sílvio, prendendo-se cada vez mais a ela, como a única tábua de apoio para a sua angústia de vida, para a sua solidão interior...
Enquanto isso, sua vida profissional deslanchava... Seu talento indiscutível começou então a aflorar. Rápido, em velocidade supersônica, o sucesso veio-lhe as mãos.
Com três anos de formado, já era considerado um dos melhores advogados do Rio, sendo chefe de um dos mais conceituados escritórios da cidade e ocupando cargo de maior relevância na administração estadual (obtido por concurso)...
Fez-se fácil, fácil, amigo de Promotores e Juízes. Privava da intimidade e do relacionamento pessoal com vários deles... Com eles debatia altas teses jurídicas, quer profissionalmente, dentro dos autos, quer socialmente, acompanhando-os no chope do "Chamego do Papai" ou nas extensões noite adentro que aquelas conversas proporcionavam...
Era respeitado e querido...
Nada daquilo, entretanto, o satisfazia...
Saía correndo do trabalho para ver Silvana, com ela brincar, sentir sua infância desabrochar a cada momento, a cada instante...
Oito anos durou o casamento... As brigas tornaram-se mais sérias, as ofensas mais graves, até porrada recíproca ocorreu...
Separaram-se... "amigavelmente"...
No dia da audiência, quando o juiz perguntou como seria feita a divisão de bens, Sílvio, de porre, respondeu:
- Eu não quero coisa nenhuma. Fica tudo p'ra elas (e já tinham apartamento próprio, casa em São Pedro, dinheiro na poupança, etc...).
Liliane, coitada, tinha feito o rol de todos os bens para a divisão. Até pregador de roupa ela relacionou... Olhou, frustrada, para o seu advogado, com a lista dos bens nas mãos... O advogado, que se preparara arduamente para uma verdadeira batalha jurídica, também frustrado, guardou na pasta de executivo, a brilhante sustentação que iria fazer...
Sílvio, embriagado, falava com voz arrastada, as palavras escorrendo-lhe pela boca. O juiz, seu conhecido, compreendeu. Sabia que Sílvio era bastante sensível e que adorava a mulher e a filha. Confidenciara-lhe esse amor pelas duas numa das inúmeras conversas de fim-de-noite no "Chamego"... Sabia que ele não iria, de cara limpa, admitir separar-se de Silvana e ficar discutindo bobagens sobre divisão de bens. Mesmo assim, ainda perguntou-lhe:
- O senhor tem certeza de que é isso mesmo que o senhor quer fazer? Vai abrir mão de todos os seus bens? O senhor sabe, como advogado que é, que tem direito à metade...
Sílvio respondeu rápido, a voz pastosa arrastando-se pela sala:
- É isso mesmo, meritíssimo. Fica tudo p'ra elas. Eu não quero nada.
O juiz ainda fez uma última tentativa:
- E o senhor vai viver de quê? Vai morar aonde?
- Eu me arranjo - respondeu com ar de triunfo, o rosto vermelho como um camarão, o cheiro de whisky exalando por todos os seus poros, tomando conta do ambiente e fazendo com que Liliane, a toda hora, levasse a mão ao nariz, procurando dele escapar. Detestava cheiro de bebida...
* * *
Daí em diante, para Sílvio começou o sofrimento...
Bebia todo dia, a toda hora, a qualquer momento... Afastou-se de tudo e de todos...
Trancava-se no quarto e, sozinho, procurava estancar o sangue que jorrava das feridas de sua imensa dor... "Silvana"... "Silvana, minha filhinha, quero você...".
Delirava, delirava, rolava na cama, tinha alucinações...
* * *
"O tempo é o único e melhor remédio para curar o sofrimento da alma", como já dizia minha avó...
E o tempo começou a curá-lo...
Devagar, bem lentamente. Uma ferida que secava aqui, mas reabria mais adiante, até fechar definitivamente... Uma cicatriz ali, outra acolá...
Pouco a pouco começou a absorver a dor da separação de Silvana. Absorver, talvez não fosse a palavra correta: administrar, cairia melhor... Via-a uma vez por semana, de quinze em quinze dias, às vezes... Os pais de Liliane, sentindo-se donos da situação, tomaram conta de tudo e, sempre que podiam, procuravam atormentar-lhe a vida... Criavam obstáculos, faziam insinuações, tentavam jogar Silvana contra ele...
Mas, ele melhorava... Resistia, não se entregava...
Voltou para o trabalho (pulou de repartição em repartição, é certo, dado o seu temperamento difícil, brigando sempre com chefes e superiores, discutindo e não aceitando cumprir ordens imbecis). Retomou seu lugar no escritório, investindo, agora, numa advocacia interestadual (São Paulo, Espírito Santo, Rio Grande do Sul). Passou a viajar com freqüência.
Reativou suas amizades no Judiciário. Dr. Caulo, velho amigo, juiz do cível. Dr. Marlos, juiz do Tribunal do Júri. Inscreveu-se como jurado, tendo funcionado efetivamente durante dois anos (l986 e l987). Fez novas amizades, principalmente com os jurados. Funcionou como vogal em apurações nas eleições de l982 e l986, sendo esta última em Nova Iguaçu, quando auxiliou o Dr. Marlos. Nesta, inclusive, transportou em seu carro várias escrutinadoras que moravam no Rio, todas elas com mais de 50 anos de idade. Daí porque seu carro foi apelidado de "O Comboio da Saudade". Divertia-se muito com esse apelido...
Mais uma dose, sorvida vagarosamente...
Engraçado, sentia-se bem quando estava com seus amigos. Fazia questão de organizar almoços, de programar reuniões e saídas noturnas, enfim, de conviver com as pessoas que lhe eram queridas. Definitivamente, não era uma pessoa amarga, daquelas consideradas de mal com a vida. Era prestativo, solidário, leal àqueles de quem gostava...
Certa vez acompanhou o Dr. Marlos a um casamento de um advogado militante do Júri, filho de um Procurador de Justiça. Ao final da festa, solidário como sempre, fez questão de levar o juiz seu amigo até Jacarepaguá, onde este residia. O juiz ainda ponderou que não fosse, pois sentiu que ele estava meio sonolento, meio de pilequinho. Ele insistiu, fez questão... Na volta, dirigindo, tonto de sono, deu uma senhora porrada com o carro, fraturando o nariz e outras coisas mais... Só mesmo ele...
* * *
Sorria novamente...
Lembrava-se de Silvana, em seus primeiros dias de vida... Como gostava de curti-la...
Trazia em sua carteira várias fotos dela, nas diversas fases de sua vida... Tinha, agora, doze anos de idade...
Mostrava aqueles retratos a todo mundo, a toda hora, sob qualquer pretexto...
Notava nela, atualmente, alguma diferença no tratamento que lhe dispensava... Um pouco mais fria, talvez mais distante... Será se ela estava passando por algum problema? Não, devia ser coisa de adolescente... De qualquer forma, iria conversar com ela amanhã, quando fosse vê-la, aproveitando o feriado de segunda-feira.
Iria a São Pedro, onde ela estava com a mãe e a levaria para passear e conversar. Já poderiam ter uma conversa mais adulta...
* * *
Passara quinze dias em São Paulo, onde fora resolver alguns problemas do escritório.
Mas, também fora refrescar a cabeça.
Nas suas últimas idas e vindas à capital paulista, fizera um novo grupo de amigos, que o faziam esquecer um pouco de suas amarguras no Rio.
Chegara de volta cerca das três da tarde. Ligou a secretária eletrônica. Vários recados.
Deu alguns telefonemas, conversou com vários amigos, tomou um banho e abriu a garrafa de whisky. Deitou-se na cama e pôs-se a divagar.
Tomou seus cinco comprimidos da tarde, aos quais já se habituara a ingerir por conta própria, três vezes ao dia. Vitaminas, desintoxicantes para o fígado, tranqüilizantes leves... Abriu seu terceiro maço de cigarros do dia. Queria parar de fumar (estava tossindo muito), mas adiava sempre o momento da decisão...
Em meio às suas divagações, ora sorria ao lembrar dos momentos bons de sua vida, ora as lágrimas escorriam-lhe pelo rosto, ao recordar-se dos maus. Chorava convulsivamente quando a imagem de Silvana vinha-lhe à mente.
Às 10 da noite, levantou-se, meio cambaleante, meio de pileque. Decidiu sair para jantar.
Costumava fazê-lo numa churrascaria de Copacabana, no posto 5, onde já conhecia todo mundo, do dono ao cozinheiro. Uma vez, meio de porre, acompanhado de uma dama da noite, quis ali jantar, à meia-noite, vestindo uma bermuda. Ponderaram com ele que o traje não era adequado para a noite. Ele insistiu e, como era conhecido de todo mundo, acabou entrando.
"Assim era ele", pensava consigo mesmo. Ganhava todo mundo na simpatia.
* * *
Chegou, cumprimento o garçom, sentou-se à mesa de sempre.
Picanha com fritas e farofa...
Comia devagar...
Divagava mais uma vez...
Tomou mais um gole do seu chope...
A dor veio forte, rasgando-lhe as entranhas.
Levou a mão ao peito, apertando-o com força...
Sorriu... Sentiu que era a hora...
A imagem de Silvana veio-lhe mais uma vez à mente... Forte, nítida, em todo o seu esplendor...
A cabeça, já sem vida, tombou sobre a mesa...
* * *
A SABIDINHA ...
Considerava-se a dona da verdade...
Da vida, sabia tudo...
Trabalhava, ganhava bem, morava sozinha, dirigia seu próprio carro...
Era auto-suficiente, moderninha... Não dependia de ninguém, nem da família ou dos amigos...
Desde cedo, saíra de casa, ainda com 17 anos... Fez concurso para o Banco Central, fora aprovada em terceiro lugar... Formou-se depois em Direito, entrou para o corpo jurídico do banco... Falava inglês e espanhol, arranhava francês e alemão... Escolhia suas amizades, não dava bola p'ra ninguém... Amores na vida, nenhum... Uma trepadinha aqui, outra ali, fins-de-noite passageiros que se perdiam no esquecimento do dia seguinte... Tudo sem compromisso, descartável, só p'ra gozar...
Decidira passar as férias daquele ano em Salvador... Tudo planejado, bem programado... Reserva no hotel, uma parada em Vitória... Iria de carro, ela mesmo dirigindo...
Só, sem ninguém ao seu lado para chateá-la... Antes só que mal acompanhada...
Falaram-lhe maravilhas da capital da Bahia, a dourada cidade das praias mágicas, das igrejas, das mulatas, candomblé, comida de primeira... Por isso, queria curtir a cidade sozinha, conhecer todos os seus cantos e encantos... Poderia, talvez, ter levado sua mãe ou um "noivo"...
Não, preferiu ir sem ninguém...
* * *
Viagem cansativa... Mas, tudo bem, estava valendo a pena... Pernoitara em Vitória, que não conhecia... Deu uma entradinha em Ilhéus, a cidade que a encantara pelas cenas passadas na televisão, quando da exibição da novela "Gabriela".
Chegou a Salvador pouco depois do meio-dia. Foi direto p'ro hotel, no Corredor da Vitória... Perguntou aqui e ali, chegou lá... Deixou o carro na garagem, tomou um banho e dormiu um pouco...
Depois, saiu... Elevador Lacerda, Mercado Modelo, Bonfim, Itapagipe... Tudo no primeiro dia... Foi de táxi, já que não conhecia o trânsito da cidade... No dia seguinte, as praias... Porto da Barra, Farol, Ondina, Amaralina, Rio Vermelho, Boca do Rio, Piatã, Itapoã... Um pulinho até Abaeté... Muito acarajé, caruru, água de coco...
No terceiro dia, passeio de escuna até Itaparica. Deslumbrante... Salvador realmente correspondia a tudo o que dela falavam...
No quarto dia, já mais habituada com a cidade, decidiu sair de carro... Foi até Arembepe, praia linda, ainda primitiva e selvagem, distante quase uma hora de Salvador... A sensação de ouvir o barulho das ondas, o cheiro de maresia, o ambiente de paz, tranqüilidade, realmente a deixaram emocionada...
Já no quinto dia de Bahia, começou a se soltar um pouco mais... Saiu à noite, foi jantar num dos vários restaurantes da Barra, sempre cheios de gente. Adorou a comida baiana...
Experimentou de tudo... Vatapá, siri mole e catado, caranguejo, lambreta, caldo de sururu, abará, feijoada (que lá é feita com feijão manteiga), sarapatel... Um pouquinho de cada coisa, só para provar, como lhe disse o garçom, uma bicha baiana... Tomou uma caipirinha e três chopes.
Numa mesa ao lado, quatro rapazes começaram a reparar nela, sozinha, comendo tudo o que tinha direito, conversando animadamente com "Nega", o garçom... Fizeram sinal, quiseram puxar conversa... Ela, irritada, já que detestava aquele tipo de coisa (porra, será que uma mulher não pode jantar sozinha num restaurante?), pediu a conta, assinou o cheque, despediu-se de "Nega" e deixou o lugar...
Pegou o carro e tomou o caminho do hotel. Subiu a Ladeira da Barra e parou numa sinaleira, próximo à igreja da Vitória... Os quatro chegaram rápido, ela nem percebeu.
Emparelharam com o carro dela, três deles desceram e um foi logo encostando o cano do revólver em sua cabeça...
- Chega p'ra lá, minha sobrinha, isso é um assalto...
Olhou para o cara, surpresa... Obedeceu automaticamente, sem ter tempo para pensar em alguma coisa. Um deles tomou a direção, os outros dois também entraram no seu carro... O outro veículo os seguiu.
Ela perguntou, ainda espantada:
- Mas, o que é que é isso? O que vocês estão fazendo?
Um dos caras perguntou:
- Diga aí, minha irmã, o que é que você tem p'ra dar p'ra gente?
Aí, ela caiu na real...
Tentou conversar:
- Só o carro e isso que eu tenho na bolsa.
Um deles riu. Riso cínico, debochado...
- Só isso? A gente quer mais...
Apontou o revólver para ela. Disse, com o característico sotaque baiano, falando quase cantando:
- Olha, a gente já viu a placa do teu carro. É do Rio, não é? ... A gente sempre ouviu dizer que carioca é doida por uma sacanagem... Você quer dar p'ra gente, não quer?
Ela suou frio, gelou... Pela primeira vez na vida ficou com medo... Não conseguia manter o autocontrole... Logo ela, tão independente, tão confiante, que sabia lidar com todas as situações, por mais difíceis que fossem... Agora, estava apavorada... Nem no Rio, com toda sua violência, ela passara por situação igual... Não, eles deviam estar brincando, não teriam coragem...
Iam levar o carro, sua bolsa e deixá-la em qualquer lugar... Afinal de contas, ela sempre ouvira falar bem da hospitalidade baiana... Foram p'ro alto de Ondina.
Ali, enquanto um a segurava pelos ombros, outro lhe abria as pernas... O terceiro a penetrava, o quarto ria e aplaudia, com uma garrafa de conhaque Dreher na boca (o filho da puta poderia ter melhor gosto)...
Tudo era silêncio... Ninguém ouvia nada... Além do mais, um deles tapava-lhe a boca... Ela tentava reagir, gritar, espernear... Nada... Olhava aterrorizada para os quatro, que se revezavam, na ânsia de possuí-la... Todos eles a tiveram mulher, abertinha, por trás e pela frente, sem que ela nada pudesse fazer...
Desmaiou... Quando acordou, já o dia clareando, viu que fora largada sem carro, sem uma peça de roupa, completamente pelada, lá em cima do morro, com uma deslumbrante vista para a praia lá embaixo...
Conseguiu voltar para o hotel... Como, não se lembra direito...
Chegou, apenas...
Perdera oitenta por cento de sua autoconfiança...
* * *
O H O M EM D O É T E R
Dele, todos zombavam, faziam chacota...
Perambulava pelas ruas de Copacabana, barba crescida, cabelos na altura do ombro... As pernas, sempre trôpegas, exibiam várias feridas, já purulentas... As roupas, simples farrapos...
Carregava sempre nas costas um saco de farinha sujo, já preto por falta de lavagem...
Cheirava fortemente a éter... Era o que mais chamava a atenção das pessoas... Aquele cheiro característico que dele exalava, ao longe...
Era como o chamavam na Santa Clara e adjacências... "O homem do éter...".
Dormia nas calçadas, cheirava o seu éter, mas, engraçado, não perturbava ninguém... Não era indelicado, as feições, mesmo maltratadas, indicavam que não deveria ter mais de trinta e cinco anos...
E, respeitoso...
Certa vez, minha mulher comprava cigarros num botequim da Santa Clara, esquina com Cinco de Julho, e eu, no balcão, pedi um chope. Ela pagava na caixa os maços pedidos e o garçom tirava o meu chope. Ele aproximou-se dela, o cheiro do éter dominando o ambiente...
Fiquei de sobreaviso (será se ele está armado?). Os empregados e fregueses riram dele, fizeram piadinhas...
- Olha o "homem do éter", tá mais p'ra lá que p'ra cá...
Ele, cambaleando, as pernas inchadas, sangrando as feridas, olhou para ela, distraída, de costas para ele, conferindo o troco:
- A senhora pode me ceder um cigarro?
Ela, surpresa, olhou para ele, ficou um pouco nervosa, temerosa ao ver sua aparência. Dirigiu um rápido olhar para mim, já sentado num tamborete, tomando o meu chope. Fiz-lhe um sinal com a cabeça, concordando... Apanhou o cigarro, afastou-se, dizendo apenas:
- Muito obrigado...
Olhou para mim e agradeceu, baixando, imperceptível e reverenciosamente, a cabeça... Como se dissesse: "Ele pensa que eu não o vi...".
As pessoas no botequim riram mais uma vez quando ele se afastou...
Alguns até disseram:
- Vai dormir, "cachaça"...
O dono disse para minha mulher:
- A senhora desculpe o incômodo... Mas, ele anda sempre por aqui... A gente não pode fazer nada...
Um outro freguês, sentado ao meu lado, disse para mim:
- Cara folgado... Você não devia ter deixado que ela desse o cigarro...
E, com ar de filósofo de botequim:
- É isso que acostuma mal essa gente...
Eu, virando o último gole do meu chope:
- Tá tudo bem...
* * *
Dez anos antes, num hospital público do Rio de Janeiro...
Plantão de sábado para domingo... Movimento intenso de feridos, mortos, baleados, acidentados...
Só um médico de serviço... Três enfermeiras, dois serventes... Uma loucura total... Um corre p'ra cá, outro p'ra lá, esbarrando-se nos corredores estreitos, empurrando macas, carregando frascos de soro...
Na sala de cirurgia, mal iluminada, sem refrigeração, calor de mais de quarenta graus, o jovem médico fazia uma operação delicada... A barriga da vítima de disparo de arma de fogo já estava aberta, tripas à mostra... A enfermeira, nervosa, suando em bicas, tinha dificuldade em achar o instrumento cirúrgico solicitado... Um tumulto total, gente entrando e saindo a todo o momento, parentes de vítimas chorando pelos corredores, outros discutindo em voz alta, críticas ao governo, lamentações, desespero...
O servente, sandália de dedo nos pés, vassoura nas mãos, coçava o nariz, tirava uma meleca que o incomodava, e, encostado na porta, assistia à cirurgia....O médico começava a extrair o projétil... Cuidadoso, mãos hábeis e sensíveis, procurava-o com extrema precisão... Suava abundantemente... Mal ou bem, mesmo diante de todas aquelas dificuldades do local, fazia-se silêncio no interior da sala... Uma incisão mais profunda, uma artéria pinçada...
Entra na sala, esbaforida, uma das outras enfermeiras de plantão...
- Doutor, doutor, urgente, um outro caso de cirurgia...
Ele olha para ela, ainda com o bisturi na mão, o suor escorrendo-lhe pela testa...
- Bota na fila, não tá vendo que eu ainda não acabei com este...
Ela, já sem a máscara na boca, nervosa:
- Mas, doutor, é urgente...
Já descontrolado, por não ter conseguido estancar uma pequena hemorragia do baleado de barriga aberta, ele reponde, aos berros:
- Porra, vê se não enche o meu saco... Eu sou um só... Será que é só o seu caso que é urgente? Esse aqui também não é?
A enfermeira afastou-se, cabeça baixa. Deixou a sala, os olhos vermelhos, as lágrimas escorrendo-lhe pela face...
Não teve coragem de dizer-lhe...
O outro caso, o "urgente", era o filho dele, que agonizava na sala de espera da cirurgia... Sofrera um acidente de automóvel momentos antes... Três anos de idade... A mãe morrera no local... Ele acabou morrendo no hospital, coitado...
Tinha ido buscar o pai no trabalho para fazer-lhe uma surpresa...
* * *
O jovem cirurgião largou a profissão... Procurou refúgio no éter...
* * *
AS DUAS PATETAS
Três horas da tarde de sexta-feira... Sol escaldante, calor asfixiante... Copacabana fervia naquele início de verão... As ruas, cheias de gente... Turistas e nativos... As praias, lotadas... O comércio, o legalizado e o clandestino, vendendo de tudo...
Saí com as duas, Ana Lúcia e Nícia Maria... A primeira, minha mulher; a segunda, menina de Lambari, interior de Minas, pouco mais de vinte anos, que viera ao Rio acompanhando Ana Lúcia para comprar parte de seu enxoval de casamento...
Passamos antes numa farmácia da Santa Clara, onde comprei algumas coisas... Peguei o dinheiro que estava na pequena bolsa que Ana Lúcia trazia consigo a tiracolo, já que eu estava de bermuda e camisa sem bolsos...
Paguei, e já íamos voltar para casa, quando Ana Lúcia disse:
- Vamos dar uma volta pela Galeria Menescal, p'ra Nícia Maria ver as lojas?
Concordei, apesar de não estar passando muito bem. Estava doido p'ra tomar os remédios que acabara de comprar, p'ra ver se melhorava da dor de cabeça e da ardência que sentia no estômago e no fígado...
Atravessamos lentamente a galeria, depois de nela entrar pela Barata Ribeiro. Eu, mais à frente, as duas atrás, de braços dados, parando deslumbradas diante de todas as vitrines...
Nícia Maria, que vinha pela primeira vez ao Rio, olhava tudo com uma expressão misto de espanto, admiração e uma ponta de desconfiança, de um certo receio, atitude própria de mineiro, ainda mais do interior... Nunca vira tanta gente junta, tantos carros na rua... Acostumada à tranqüilidade da pequena Lambari, a cidade das águas virtuosas, onde não havia sinal de trânsito, elevador, um montão de ônibus cortando uns os outros loucamente em alta velocidade. Lá, onde fazia tudo a pé, onde as pessoas costumavam cumprimentar-se umas às outras, para ela, tudo aquilo era novidade...
Chegamos ao fim da galeria, depois de quase meia-hora. Esperei as duas e, quando chegaram, perguntei-lhes:
- Vocês querem voltar por onde? Pela galeria ou pela av. Copacabana?
Ana Lúcia respondeu:
- Pela Nossa Senhora... Vamos ver as novidades dos camelôs...
A avenida estava apinhada de gente... Pessoas que se moviam com dificuldade pelas calçadas, tomadas de um lado e de outro, junto ao meio-fio e a entrada das lojas, pelas barracas dos camelôs, coladas umas nas outras...
A multidão transitava lentamente através do corredor formado pelas barracas, arrastando-se passo a passo, esbarrando-se as pessoas umas nas outras, as que subiam com aquelas que desciam....As duas, ainda de braços dados, andavam a passo de tartaruga, parando em cada barraca, examinando as mercadorias, perguntando o preço...
As pessoas continuavam no seu interminável ir e vir, empurrando-se e empurrando-me...
Eu, com o saco de remédios numa das mãos, a cabeça me doendo, o estômago e o fígado me ardendo, sentia-me sufocar... Segui mais à frente, tentando desvencilhar-me da multidão...
Quase perto da esquina de Santa Clara, onde diminuiu a intensidade do movimento de pedestres, parei e fiquei aguardando as duas...
Vinham elas bem lá atrás... Ana Lúcia mostrando a Nícia Maria as novidades dos camelôs... Brincos, pulseiras, prendedor de cabelo, um creme que dizia ser importado e outras bugigangas mais... Nícia Maria olhava tudo com cara de deslumbrada, tudo queria comprar...
Passavam em frente à Casa Mattos, onde era mais intensa a aglomeração do povaréu...
Alguns alunos saíam de um curso que ali existe ao lado, fazendo algazarra na calçada... As pessoas se espremiam, procurando um lugar livre no chão onde pudessem colocar os pés...
Ana Lúcia, bolsa a tiracolo, braço dado com Nícia Maria, procurava me localizar mais à frente...
Um elemento abriu os braços diante dela... Assustou-se, tentou recuar, não conseguiu... Atrás delas, havia um montão de gente que a empurrava para frente, naquela maré humana que se arrastava pela calçada...
Conseguiram sair daquele nó de corpos que se espremiam, daquele cheiro pouco agradável de suor humano vespertino...
Foi então que ela se lembrou da bolsa a tiracolo... Sentiu-a mais leve, um calafrio percorreu-lhe a espinha... Estava aberta... Enfiou a mão... Vazia, ou melhor, só restava uma nota de cem... Seus documentos (carteira funcional do Tribunal de Justiça e carteira de motorista), bem como o cartão magnético do BANERJ, e aproximadamente oitocentos cruzeiros, haviam sumido...
Estourando de raiva, ela me divisou ao longe, parado em frente a uma loja, quase na esquina. Fez sinal com a mão. Aguardei...
- Fui roubada - disse nervosa, exibindo a bolsa vazia...
Olhei para ela, surpreso.
- Como foi isso? - perguntei.
- Sei lá, eu não vi. Deve ter sido agora, quando passei naquele monte de gente lá atrás...
As duas tinham o ar de duas patetas... Nícia Maria, espantada com tudo aquilo... Em Lambari não tem disso não, uai... Ana Lúcia, apesar de estar acostumada com a violência da cidade e de ver bandidos perigosos de perto (trabalhava numa Vara Criminal do Rio de Janeiro), estava "fula" da vida por ter "entrado naquela".
Ela insistiu em voltar ao lugar onde achava que o fato ocorrera. Tinha esperança, ao menos, de encontrar seus documentos no chão, talvez jogados fora pelo ladrão...
Eu lhe disse:
- Isso é besteira... Você não vai achar nada, no meio dessa gente toda...
Ela insistiu e voltou lá com Nícia Maria...
* * *
.Em casa, meia hora depois, ela ainda tentando conter a revolta, analisamos com mais calma a situação. O irmão mais velho também ali estava, tinha ido visitá-la e não sabia de nada...
Bem, o cartão magnético do banco não poderia ser usado... Não tinha sua assinatura e só funcionava quando digitada a senha, que só ela sabia... Em todo caso, era bom telefonar p'ro banco, comunicando o acontecido.
Ana Lúcia, volta e meia, desabafava. Criou idéia fixa de que iria pegar o cocô de sua cachorra, colocá-lo dentro da bolsa e, no dia seguinte, voltar ao lugar do furto, para que o ladrão, ao abrir novamente sua bolsa, enfiasse a mão na merda canina... Tentei demovê-la da idéia, dizendo-lhe que o dia seguinte era um sábado, e os ladrões não costumavam trabalhar aos sábados, já que são adeptos da semana inglesa...
O dinheiro subtraído, em torno de oitocentos cruzeiros reais (denominação horrível para a nossa moeda), era mixaria, não iria fazer grande falta... Não adiantava esquentar a cabeça por causa dele...
O que preocupava eram os documentos... A carteira funcional, além do retrato, tinha sua assinatura... Seria fácil uma cúmplice do ladrão ir até uma loja, exibir a carteira do Tribunal de Justiça, abrir um crediário e falsificar sua assinatura... Vendedor nenhum iria duvidar da autenticidade de uma carteira da Justiça...
A habilitação para dirigir, também... Apesar de vencida há quase um ano, ela não tinha cópia da mesma e não sabia o número do prontuário para providenciar a renovação...
Ainda pensei em recriminar sua falta de cuidado. Quantas vezes já lhe dissera, quando saíamos juntos pelas ruas de Copacabana ou do Centro da cidade (até mesmo em Buenos Aires, Amsterdam ou Paris):
- Cuidado com essa bolsa. Não fica dando bobeira. Aqui não é Lambari...
E ela, sempre autoconfiante:
- Pode deixar. Eu me garanto.
Tinha uma dose de razão. Quem foi criada e vivia no Rio de Janeiro, tem que aprender a se defender. Talvez seja a população mais prevenida do mundo.
Mas, mesmo assim, nunca era demais tomar certos cuidados. Bolsa, sempre com fecho-éclair, com alça atravessada no peito (para as mulheres). Para os homens, carregar pouco dinheiro, sempre dividido entre os bolsos da calça, da camisa, do paletó. Nada de usar carteira...
Naquela tarde, ela carregava a bolsa presa pela alça em um dos ombros... E, pior, uma bolsa fácil de abrir, um simples fecho, sem o zíper... Foi muito moleza para os larápios...
Enquanto um abria os braços à sua frente, assustando-a, o outro, por trás, abria-lhe a bolsa com destreza e surrupiava-lhe o conteúdo... "Entrara"...
Decidi não criticar, compreendendo o seu estado de espírito.
Ela, entretanto, voltou a bater na mesma tecla:
- Amanhã, eu boto o cocô da Kate na bolsa e volto lá... Aquele miserável vai sujar a mão toda...
* * *
Telefonou p'ro banco, foi até a l2ª Delegacia, onde registrou a ocorrência... Lá, outros vários fatos idênticos estavam sendo registrados... O policial de plantão disse-lhe que a média de furtos semelhantes era de vinte por dia, só naquele trecho, entre Siqueira Campos e Santa Clara... Orientou-a a procurar a COMLURB e os Correios... Se alguém achasse os documentos talvez fizesse a boa ação de encaminhá-los a um daqueles órgãos...
* * *
Passaram-se o sábado e o domingo.
Na segunda, elas foram até o posto da COMLURB em Copacabana e ao l9º Batalhão da Polícia Militar, na esperança de que os documentos tivessem sido encontrados... Nada...
Avisaram a alguns garis da COMLURB que varriam as ruas próximas, bem como aos guardas de trânsito das cercanias do local do evento... Talvez o ladrão, apoderando-se do dinheiro, não viu qualquer valia nos documentos, e os tivesse atirado fora, num bueiro qualquer ou numa cesta de lixo...
Terça-feira, feriado, sem notícias...
Quarta-feira, ela iria ao Tribunal providenciar a 2ª via da carteira funcional. A renovação da habilitação para dirigir era bobagem providenciar agora: o DETRAN estava demorando mais de seis meses para entregar a nova carteira.
Ia ser uma chateação. Tirar retrato, pegar a certidão da ocorrência na Delegacia, ir ao Tribunal dar mil explicações, esperar um tempo enorme, ficar sem documentos...
O que mais lhe dava raiva era saber que o ladrão tinha tudo dela nas mãos: nome, filiação, nº do CPF, retrato, assinatura, podendo fazer o que quisesse daquele documento...
Imagina se ele assalta alguém e é preso com sua carteira funcional... Será se iam pensar que ela era sua cúmplice?
Bem, não adiantava ficar preocupada por antecipação. Talvez ele não assaltasse ninguém... Talvez fosse esperto demais para ser preso... Ah! mas ela ia se vingar... Ia colocar o cocô da cachorra na bolsa e ia voltar ao local do furto... O criminoso não volta sempre ao lugar do crime?
* * *
Quarta-feira, pela manhã...
Vesti-me para ir à cidade. Tinha dentista às onze horas... Ana Lúcia e Nícia Maria também se aprontaram para ir ao Tribunal.
Desci antes delas... Conversava com o porteiro, apanhava a conta do telefone para pagá-la no Centro... Quando já ia subindo de volta, dois garis chegaram no portão de ferro, perguntando pela moradora do 201. O porteiro me chamou, já junto da porta do elevador...
Fui ver o que era.
- O senhor é parente da moradora do 201, dona Ana Lúcia?
- Sim - respondi. Sou o marido dela.
- É que ela nos avisou que roubaram seus documentos...
Fez uma pausa. Continuou:
- Nós achamos eles dentro de uma cesta de lixo...
E me entregou um saco plástico...
Abri-o rapidamente, exultando de satisfação. Lá estava tudo: carteira funcional, habilitação e o cartão magnético, quebrado ao meio... Tudo, menos o dinheiro, é claro...
Não consegui disfarçar o meu contentamento. Procurei nos bolsos algum dinheiro para gratificá-los... Estavam vazios... Pedi que aguardassem... Fui até o apartamento e peguei dois mil cruzeiros (reais)... Dei mil a cada um, agradecendo-lhes calorosamente.
Voltei ao apartamento...
Ela, bem como Nícia Maria, não escondiam a satisfação...
Mesmo assim, ela reclamou:
- Mas, você deu muito p'ra eles... Quinhentos para cada um estava muito bom... Eu só vou dar mil p'ros dois... Você deu mais mil porque quis.
E eu, sem ter nada a ver com aquilo tudo, acabei "entrando" em mil cruzeiros (reais)...
Dentro do saco plástico, a fina ironia... Junto com os documentos, o meliante ainda teve a consideração de juntar um pequeno folheto impresso com a oração de "SÃO DIMAS - O BOM LADRÃO...".
* * *
Ficou ele, como produto do furto, com oitocentos cruzeiros (reais)... Os garis, que nada furtaram, ficaram com mais que ele, mil cruzeiros (reais)... E eu, com menos mil cruzeiros (reais)...
Essa, a aritmética do crime...
Ainda bem que ela desistiu de colocar o cocô da cachorra na bolsa...
* * *
O A S S A L T O
Onze horas da noite...
Era a última mesa, no Chamego...
Ambiente descontraído, todos bebiam, conversavam... Dez pessoas...
Penguinho, Espanta Neném, Meio-Quilo, Mais Unzinho, Mão Branca, Capão, Jovem Criança, Boca de Lama, Homem Aranha, a Virgem da Estrada, a única mulher...
Todos profissionais do Direito... Juízes, Promotores, Defensores Públicos, Serventuários, Advogados...
Relaxavam, após um dia cansativo de trabalho... Mas, a conversa, apesar de tudo, ainda girava em torno do Direito... Altas teses, grandes discussões...
Tudo se falava, tudo se discutia, nada se guardava... No dia seguinte, ninguém se lembraria de mais nada...
Os garçons bocejavam, doidos para irem embora, não entendiam nada daquele papo... E, o pessoal daquela mesa não ia embora... Não deixavam fechar o restaurante...
Chegaram eles... Todos de arma nas mãos... Disseram:
- Fica todo mundo aí mesmo... Onde estão... Quietinhos...
Silêncio total... O chope gelado tinha ficado engasgado na garganta... Pararam de conversar, atentos...
Os bandidos, com as armas apontadas, somente disseram:
- Fica todo mundo quietinho, ninguém vai querer nada de vocês...
Um pouco nervosos, dirigiram-se a um dos garçons, logo quem, João Rafael, pensando que se dirigiam a todos eles:
- Vocês também, não façam nada, só queremos o dinheiro do caixa...
João Rafael, a princípio temeroso, depois mais calmo, exibiu aquele sorriso cínico, calejado em noites e noites de botequim... Indicou o caminho do caixa aos ladrões...
Eram cinco... Dois deles ficaram nas duas portas... Dois outros exibiam suas armas...
O quinto é quem falava...
O pessoal da mesa, depois do momento inicial, voltou a beber seu chope... Em respeitoso silêncio... Os olhos, entretanto, atentos ao movimento...
Os ladrões foram até a caixa, deram um tapa na mulher que ali estava, abriram a registradora, arrancaram todo o dinheiro...
Já iam embora... O ladrão falante, vendo que tudo estava muito calmo, ordenou, apontando para João Rafael:
- Serve uma rodada de chope p'ro pessoal da mesa... Tudo gente boa...
João Rafael olhou para a caixa, mostrando-lhe o revólver que o bandido lhe apontava...
Tinha um pequeno sorriso nos lábios... Como se dissesse: "O que é que eu posso fazer?".
Serviu a rodada...
Penguinho, um dos fregueses habituais, empolgado, depois de beber um gole do chope oferecido, subiu numa das cadeiras e iniciou um discurso:
- Voltem sempre... serão bem-vindos, amigos...
Foi interrompido pela Virgem da Estrada, que, levantando-se, dirigiu-se até o ladrão falante, que ainda tinha a arma nas mãos... Sapecou-lhe dois beijinhos, um de cada lado do rosto e disse-lhe, voz já meio arrastada:
- Vocês são tão legais... Sentem-se junto da gente p'ra tomar a saideira...
O assaltante, cara de babaca, baixou o revólver.
Disse para os companheiros:
- Anda logo, vamos logo embora... Aqui só tem gente doida...
O assalto durara exatamente três minutos...
O papo alegre foi retomado na mesa, como se nada tivesse acontecido...
* * *
FUGA PARA O NADA...
A viagem foi de arrasar...
Quase seis dias amontoados na carroceria daquele caminhão velho, que se arrastava, gemendo, cortando a paisagem seca e poeirenta do sertão nordestino...
Saíram do interior do Ceará, da pequena e esquecida Irauçuba... Sete famílias, cada uma com oito pessoas, em média... Homens, mulheres e crianças, todos desgraçados, prematuramente envelhecidos pela fome, pela sede e pelo sol inclemente do sertão, que lhes ressecava e crestava as peles sofridas... Subnutridos, cor amarela, ossos à mostra naqueles corpos quase descarnados, olhos embaçados, rostos tristes, sem expressão, cabeças baixas, conformismo, resignação... Filhos da seca...
Entregaram o restante de suas minguadas economias ao dono do caminhão... Apesar de várias opiniões em contrário, de vários exemplos anteriores que acabaram em fracasso, decidiram tentar a sorte em um centro maior, na cidade grande...
O caminhão resfolegava pelas estradas empoeiradas, às vezes pegava um trecho de asfalto... O famoso "pau-de-arara...".
Na carroceria, os "passageiros" se comprimiam, sofriam com o sol escaldante ou com a chuva torrencial quando se aproximavam do litoral... Até o gado, quando era conduzido para o matadouro, viajava em melhores condições...
Só paravam uma vez por dia, para irem ao banheiro num posto de estrada e comerem alguma coisa: uma média de café com leite aguado e um pedaço de pão dormido...
Maria Jacinta de nada reclamava... Sair da roça, daquela seca desgraçada, da fome, da miséria, da falta de futuro para ela e para os filhos, era o que mais queria... Nenhum outro lugar do mundo poderia ser pior do que aquele buraco esquecido do sertão...
Quando recebeu a carta de Severino, mandando que vendesse tudo e viajasse para o Rio com as crianças, sorriu de alegria... Se é que ainda tinha ânimo para ficar alegre com alguma coisa...
Casara-se com Severino há quinze anos atrás... Tiveram nove filhos, quase um a cada ano... Morreram cinco, três deles com menos de um ano de idade... Fome, doenças banais, desnutrição... A morte, para ela, já não tinha qualquer significado, qualquer relevância... Talvez fosse melhor mesmo que as crianças não tivessem vingado, pois iriam sofrer tudo aquilo que os sobreviventes estavam sofrendo agora... Além disso, eram mais bocas para alimentar... Deus levou os cinco, paciência, o jeito era conformar-se... Intimamente, entretanto, sentia um pouco de alívio, certa de que não teria como alimentá-los....Vendeu os trastes, a mobília velha, as panelas encardidas, a posse sobre a casa em ruínas e o pedaço de terra estorricada... Deu quase tudo para o dono do caminhão, reservou um pouco para comerem alguma coisa na viagem...
Arrumou a roupinha pobre, a sua e a das crianças, numa mala grande e velha, juntou os quatro filhos que restaram e entraram, ou melhor, subiram na boléia do caminhão... Adeus seca, adeus sertão... Tudo aquilo ia ficar para trás...
* * *
Os filhos sobreviventes: Pedrinho, com quase doze anos; Raimundo, com dez; Maria, com seis e Jacinta, com quatro.
Severino já estava no Rio há quase dois anos. Era peão numa construção na Barra da Tijuca... Inicialmente, morou com um irmão, no Vidigal... Depois, passou a dormir na obra...
Mais tarde, conseguiu construir um barraco de madeira, também lá no Vidigal e achava que já tinha condições de mandar vir a mulher e os filhos.
Fora isso o que lhe escrevera na última carta, que ela pediu que alguém lesse para ela...
A viagem, que deveria durar três dias, demorou quase seis... De vez em quando, o caminhão enguiçava e todo mundo descia para empurrar... O conserto sempre demorava... Maria Jacinta começou a ficar preocupada... Severino ficou de esperá-la na estação da Leopoldina, onde o caminhão deixaria os retirantes... Só que não contava com o atraso... Será se ele estaria lá quando chegasse? Nunca fora ao Rio, não conhecia nada da cidade... Tinha medo de se perder, de ficar sem orientação...
As outras seis famílias que também faziam a viagem tinham também as mesmas esperanças de Jacinta... Cidade grande, emprego, sonho com dias melhores, distância da fome e da miséria... Principalmente, distância da seca...
E o caminhão rasgava o interior árido e ressecado do Brasil... Ceará, Paraíba, Pernambuco, Bahia, Minas, finalmente o Estado do Rio de Janeiro...
Chegaram à capital, a esperada Cidade Maravilhosa, da qual tanto ouviram falar, por volta das três da madrugada... Final de julho de 1991, uma terça-feira...
Foram despejados pelo dono do caminhão e seu ajudante, em frente à estação da Leopoldina, bem junto ao canal do Mangue, na Francisco Bicalho... Tinham eles pressa em se desfazer daquela carga incômoda, que tinha aparência de humana, mas que parecia ser de animais irracionais, que eram conduzidos, tangidos como bois em direção ao curral...
Somente três famílias tinham parentes a esperá-los... Maria Jacinta e os filhos e as outras pessoas restantes, não sabiam o que fazer... Ela tinha o número do telefone do trabalho do cunhado José Anastácio, irmão de Severino, mas não adiantava telefonar àquela hora... Ele só trabalhava durante o dia...
Decidiram esperar o dia clarear...
Passada uma hora, vieram buscar uma outra família... Meia hora depois, mais outra...
Ficaram só Maria Jacinta, os filhos e sete pessoas da família restante...
Procuraram abrigar-se no interior da estação... Fazia muito frio do lado de fora... Maria Jacinta encostou a mala numa parede e mandou as crianças se acomodarem no chão, descansarem um pouco... A outra família também se acomodou perto deles...
Aproximaram-se dois elementos. Um deles dirigiu-se ao chefe da outra família, o único homem adulto do grupo:
- Vocês estão chegando de viagem agora?
Ante a resposta afirmativa, continuou:
- Estão esperando alguém vir buscar vocês, não é?
Outra resposta afirmativa. O elemento prosseguiu:
- É bom ter cuidado com os ladrões... Aqui tá cheio deles...
O retirante olhou para Maria Jacinta, olhar cheio de preocupação. O elemento deu a palavra final:
- Olha, se vocês quiserem, nós guardamos as malas de vocês no cofre da estação... A gente trabalha aqui...
Exibiu, muito rapidamente, uma carteira com um distintivo dourado, dessas que se compram em qualquer camelô da cidade.
Maria Jacinta e seu companheiro de viagem se entreolharam outra vez. Olhar de dúvida, desconfiança...
Como se tivessem decidido ao mesmo tempo, baixaram a cabeça afirmativamente...
Entregaram as malas aos dois elementos, que rabiscaram alguma coisa em dois pedaços de papel, entregando um deles a Maria Jacinta e o outro ao retirante.
- Esses são os recibos do depósito das malas. Na hora em que vocês forem embora é só apanhar lá no guarda-volumes - disse ele, apontando para um balcão ao longe.
Maria Jacinta e o retirante agradeceram humildemente a gentileza os dois homens, que se afastaram carregando as malas, sorriso nos lábios...
* * *
Como o dia custou a clarear... Maria Jacinta, encostada na parede, não pregava o olho... Os filhos, deitados no chão, rodeavam-na, qual pintinhos em torno da galinha-mãe... O ambiente, na estação, era o pior possível... Elementos mal-encarados passavam p'ra lá e p'ra cá, olhavam p'ra eles com curiosidade...
"Mais gente faminta p'ra aumentar a pobreza do Rio", deviam pensar...
Num bar que havia lá dentro, homens e mulheres bebiam, falavam em voz alta, riam, às vezes discutiam...
Maria Jacinta tinha medo, nunca estivera na cidade grande... Vivera toda sua vida naquela roça miserável... Só fora a Irauçuba, a sede do município, três vezes na vida... Tudo o que via agora, o dia clareando, as pessoas indo para o trabalho apressadas, os ônibus e carros começando a trafegar na rua lá fora, nunca imaginara ver... Nada seria pior, entretanto, que a vida miserável que levavam no sertão....Às seis da manhã, chegou um parente do pessoal da outra família... Despediram-se de Maria Jacinta e, todos satisfeitos, foram até o guichê do porta-volumes apanhar suas malas...
Pouco depois voltavam, expressão de espanto e surpresa no rosto...
- Fômo roubado, Jacinta - disse o homem, chefe da família, as palavras atropelando-se na boca... - Nossas malas num tão lá não...
Jacinta sentiu um calafrio percorrer-lhe todo o corpo... Todas suas roupas estavam nas malas... Eram velhas, é verdade, mas eram as únicas que tinham... Também a imagem de Padinho Cícero estava na mala... Logo ele, seu protetor...
- Mas... mas, e o recibo que eles deram p'ra gente? - gaguejou ela...
- O moço disse que aquilo num vale nada... Também, a gente num sabe ler - respondeu o retirante, desanimado.
Foram embora, deixando Maria Jacinta e os filhos na estação, só com a roupa do corpo...
* * *
Finalmente, às oito horas, decidiu telefonar para o cunhado José Anastácio...
Trabalhava como porteiro, num prédio de luxo, em Ipanema... Aliás, era comum os homens que vinham do Norte e Nordeste trabalharem como porteiros de prédios na Zona Sul do Rio...
Porteiros, aqueles que sabiam ler e escrever... Ajudantes de pedreiros, os peões, aqueles que eram analfabetos...
Perguntou no bar da estação como fazer para telefonar... Tinha o número anotado num pedaço de papel, mas não sabia fazer a ligação...
O homem, atrás do balcão, movimento relativamente pequeno àquela hora, numa rara ocasião de bom-humor, ficou com pena dela e decidiu ajudá-la... Vendeu-lhe uma ficha, que ela pagou com os últimos trocados, conduzindo-a depois até um orelhão. Fez a ligação e ficou aguardando chamarem Zé Anastácio... Finalmente, quase dois minutos depois, ele atendeu:
- Zé Anastácio, aqui é Jacinta... A gente chegou de madrugada... Tamo aqui na estação do trem...
- Puxa, cunhada... O mano foi aí, ontem e anteontem esperar vocês... Que foi que aconteceu?
- O caminhão enguiçou uma porção de vez... Atrasou...
Prosearam por algum tempo... A ligação caiu e Maria Jacinta ficou sem saber a que hora o marido ou o cunhado viriam buscá-los...
O dinheiro acabou... Ela ficou com vergonha de pedir uma outra ficha ao dono do bar... Começou a entrar em pânico... Sozinha, numa cidade estranha, sem um tostão com ela..Procurou controlar-se, não deixar que as crianças percebessem sua aflição... Decidiu esperar, era só o que lhe restava fazer... Pelo menos, Zé Anastácio já sabia que eles tinham chegado e onde estavam...
* * *
Zé Anastácio não sabia o que fazer... Não podia deixar a portaria do prédio e nem tinha como avisar Severino, que, àquela hora, já deveria estar trabalhando na Barra, lá na obra...
E, nem teve tempo de dizer isso tudo à cunhada, já que a ficha do orelhão deve ter acabado e a ligação caiu...
O jeito era esperar até o meio-dia, a hora do almoço... Então, iria buscá-los.
Mas, por volta das 10 horas, Severino, já apavorado com a falta de notícias da mulher e dos filhos, telefonou-lhe... Zé Anastácio deu-lhe o recado, já tinham chegado de madrugada, todos bem, estavam na estação da Leopoldina...
Severino conseguiu ser dispensado do trabalho e se mandou da Barra para buscar a família no Mangue.
* * *
Ficou triste com o que viu. Jacinta e os filhos, mal vestidos, a roupa miserável cobrindo os corpos magros, encostados num canto da estação... A imagem cruel dos retirantes brasileiros...
Já não os via há quase dois anos. A alegria do reencontro superou a tristeza do quadro miserável da pobreza... Abraçou-os com força, beijou-os demoradamente, um a um, as lágrimas escorrendo-lhes pelos rostos...
As duas meninas, as mais novas, Mariazinha e Jacintinha, não se lembravam direito do pai... Eram muito novinhas quando ele veio para o Rio... Quatro e dois anos, respectivamente.
Os meninos, sim, já crescidos, dele se lembravam com clareza... Também não conseguiam conter o choro...
Pegaram um ônibus, depois outro, foram para o Vidigal...
Jacinta olhava tudo com espanto e curiosidade, até com medo. Nunca andara antes de ônibus, ainda mais aqueles... Como corriam, como ultrapassavam os outros a toda hora, parecendo que iam bater a cada instante... Contou a Severino sobre o furto das malas e ele fez-lhe logo várias recomendações sobre os perigos do Rio... Furtos, assaltos, arrastão, trânsito louco... Jacinta ouvia tudo, cabeça e olhos baixos, medo da cidade grande... Será se iria sobreviver?
* * *.
Depois de subirem o morro por quase meia hora, chegaram ao barraco, que Severino exibiu com orgulho... Passaram por ruas esburacadas, ruelas, caminhos, becos escondidos, o esgoto correndo a céu aberto, sempre subindo...
Quando chegaram ao alto do morro, bem lá em cima, Jacinta ofegava... Severino, já acostumado, ria do cansaço da mulher:
- Com o tempo, você acostuma... Eu também estranhei muito no começo...
O barraco, literalmente dependurado numa encosta, ali fixado não se sabe como, era uma simples construção de madeira velha, remendada aqui e ali com pedaços de bambu e de sapé... O teto, folhas de zinco... Entraram...
O interior era um compartimento só, onde havia uma cama, uma mesa e quatro cadeiras, um fogão e uma geladeira velha. O banheiro era uma casinha fora do barraco, onde havia uma privada e um cano, de onde caía a água do banho... Ainda do lado de fora, um tanque, que seria o instrumento de trabalho de Jacinta nos próximos meses...
O chão do barraco era de terra batida... Do teto, pendia uma lâmpada...
Severino contou para a mulher:
- Foi o Zé Anastácio quem arranjou esse lugarzinho p'ra gente... No início, como eu já te disse nas cartas, eu fiquei na casa dele... Depois, passei a morar nas obras em que trabalhei...
Foi então, coisa de meses, que ele achou esse lugar aqui e me emprestou o dinheiro p'ra eu comprar ele...
Continuou:
- Fiz uns reparos, consegui botar luz, comprei o fogão, a geladeira e os móveis, tudo de segunda mão... Mas, tá tudo funcionando... O Anastácio tem ajudado muito... Num sei como é que vou pagar ele.
Jacinta achava tudo uma maravilha... Só conseguir sair do sertão, deixar a seca para trás, não poderia existir coisa melhor...
Mas, não pode esconder o medo ao olhar novamente para o barraco, lá no alto do morro, bem no alto, como estivesse grudado na encosta, sem qualquer proteção, sem nenhuma fixação mais sólida na ribanceira...
Perguntou para o marido:
- Mas, Severino, isso aqui não tem perigo não? Num vai cair não?
E, olhando mais para cima:
- E aquelas pedras grandes lá em cima? Num cai em cima da gente não?
- Que nada, mulher... Tem gente que mora aqui faz mais de vinte anos e nunca aconteceu nada... Tão aí vivinho - disse ele, apontando para a imensidão de barracos do morro.
Jacinta se tranqüilizou um pouco... Severino mostrou-lhe a vista deslumbrante que tinham do local... Toda a Zona Sul do Rio a seus pés... À esquerda, o Leblon, Ipanema, Lagoa, o Corcovado, mais ao longe Copacabana, o Pão de Açúcar e a Baía de Guanabara... À direita, São Conrado, Barra, Recreio, Pedra da Gávea, Dois Irmãos...
Jacinta ficou deslumbrada... Não se conteve:
- Eta lugar danado de bonito, gente...
* * *
Arrumaram-se no interior do barraco. Severino e Jacinta ficaram na cama, as crianças dormiriam em esteiras, estendidas no chão da única dependência... Para quem estava acostumado a dormir em rede, até que estava muito bom.
Jacinta preparou alguma coisa para eles comerem com os escassos mantimentos que Severino havia comprado para receber a família... Ovos, verduras, legumes, macarrão, um pouco de carne moída de segunda. A sobremesa seria a rapadura que Jacinta havia trazido do Ceará, guardada com tanto carinho em uma das malas roubadas na Leopoldina.
Depois do almoço, as crianças tomaram banho e foram dormir... Estavam exaustas, depois da longa viagem no "pau-de-arara".
Jacinta e Severino ficaram conversando a tarde toda... Relembraram passagens da vida sofrida no sertão, Jacinta contou como foi a viagem para o Rio, Severino relatou-lhe sua permanência na cidade, a dificuldade inicial para conseguir emprego, o apoio e a ajuda sempre presentes de Zé Anastácio, encorajando-o, incentivando-o, até escrevendo as cartas que ele lhe enviara.
- Ah! Se soubesse ler e escrever como Anastácio - lamentava-se... - Poderia conseguir colocação melhor, até mesmo de porteiro em edifício bacana, como ele... - Mas, estava estudando aos domingos numa escola para adultos que tinha no morro e, em pouco tempo, já estaria alfabetizado - contou, orgulhoso, para a mulher... "Já conseguia assinar o nome...".
Jacinta sorriu e abraçou-se ao marido. Ficaram assim, jogando conversa fora, recordando coisas, fazendo planos para o futuro, durante horas e horas... Nem perceberam a noite chegar, as luzes se acenderem, pequenos e incontáveis pontos de luz piscando em volta deles, a cidade lá em baixo toda iluminada, esplendorosa e deslumbrante...
Jacinta fez um café, tomou um banho. As crianças dormiam agora profundamente.
Ela e Severino foram para a cama, quase dez da noite. Iam tirar o "atraso" de dois anos longe um do outro...
Jacinta, entretanto, levou um susto, quando Severino, na hora em que ia penetrá-la, colocou um negócio de borracha no cacete...
- Que é que é isso, Severino? Que negócio estranho é esse?
Ele começou a rir alto, não se conteve. Colocou delicadamente a mão na boca da mulher e disse-lhe, ainda rindo:
- Fala baixo, mulher, p'ra não acordar as crianças.
Fez uma pausa. Continuou:
- Isso aqui se chama "camisinha". É p'ra num ter mais menino... A gente goza do mesmo jeito, mas o menino num vem...
Concluiu:
- A gente num tem mesmo dinheiro p'ra sustentar outros, num é?
Jacinta concordou, depois de pensar por algum tempo:.- É, você tem razão...
"Tá ficando sabido, esse meu marido", remoeu ela na sua cabeça...
Depois, deixou-se penetrar por aquele negócio de borracha... "Num é a mesma coisa", reclamou ela com seus pensamentos...
Pedrinho e Raimundo, os filhos mais velhos, acordaram com os gemidos do pai e da mãe, com o barulho que fazia a cama velha, rangendo furiosamente... Olharam um para o outro e riram baixinho...
* * *
Os dias, as semanas, os meses seguintes passaram rápido. Entraram na rotina do dia-a-dia.
Severino passava o dia todo fora... Acordava às cinco e meia, céu ainda escuro, às seis deixava o barraco para pegar na obra às sete, lá no final da Barra. Só voltava lá pelas sete e meia da noite.
Jacinta também acordava à mesma hora que o marido... Preparava-lhe um café com pão dormido da véspera, fazia sua marmita e aguardava que ele se fosse... Depois, ia lavar a roupa das freguesas que Zé Anastácio lhe arranjara... Já tinha cinco casas para as quais lavava e passava... O dia clareando, colocava a roupa enxaguada no varal, passava a que já estava seca na parte da manhã e, depois do almoço com as crianças, descia o morro para entregar a trouxa do dia.
Uma no Leblon, outra em Ipanema, duas na Lagoa e a última em Copacabana. Fazia uma entrega a cada tarde.
Logo aprendeu a andar de ônibus, a se locomover rapidamente pelos becos e ruelas do Vidigal. Quem a visse depois de três meses no morro, não poderia imaginar que ela ali estivesse há tão pouco tempo. Já parecia uma veterana da comunidade... Só não perdera, ainda, o inconfundível sotaque nordestino.
Com a lavagem da roupa, conseguia ganhar um bom dinheirinho e ajudar Severino nas despesas da casa...
Mesmo já estando no meio do ano, conseguiu matricular os quatro filhos na escola local. Os dois meninos estudavam na parte da manhã, as meninas, à tarde... Pedrinho, Raimundo e Maria, na alfabetização... Jacintinha, no jardim de infância...
Depois de dois meses, já ambientados, Pedrinho e Raimundo arranjaram alguns biscates na própria favela e também levavam um pouco de dinheiro para casa. Faziam pequenas entregas para os comerciantes locais, pequenas faxinas, ajudavam em algumas obras que todo dia eram iniciadas no morro... A população da favela aumentava imperceptivelmente. A cada dia, um novo barraco começava a ser construído, mais gente para lá se mudava... As construções iam sendo feitas em cada palmo de terra ainda não ocupado, umas coladas nas outras, sem qualquer preocupação com a segurança, saneamento ou higiene... Para aquela gente, pouco importava se havia perigo nas construções precárias e nos locais íngremes em que eram feitas... Se a água que bebiam era ou não poluída... Se o esgoto corria a céu aberto por entre as vielas onde as crianças brincavam, ou se a luz que iluminava seus barracos vinha de inúmeros "gatos" feitos no poste mais próximo, com o risco iminente de curto-circuito e de um incêndio de proporções inimagináveis...
Pobres miseráveis, sem passado e sem presente, que não puderam permanecer na terra em que nasceram, porque a seca os mataria... Vítimas infelizes desse Brasil injusto, onde políticos desonestos desviavam para o próprio bolso as verbas destinadas ao combate à seca, à miséria, à.pobreza... Ali, no morro, buscavam, apenas, um teto para se abrigar, sonhando ter um dia algum futuro... Fechavam os olhos para toda aquela pobreza, aquela falta de segurança dos barracos, o convívio perigoso com traficantes e bandidos, os perigos de uma bala perdida das batidas da Polícia... Apesar de tudo isso, ainda valia a pena fugir da seca, da falta de perspectiva, da morte próxima...
Jacinta estava satisfeita... As crianças já se alimentavam melhor (estavam até engordando), freqüentavam a escola, ela conseguia algum dinheiro com o seu trabalho, estava junto do marido, a família afinal reunida... Para trás, lá longe, ficou a lembrança de tudo aquilo, a miséria, bem pior que aquela que enfrentava agora...
A desesperança...
* * *
Num domingo, em meados de novembro, Severino e Jacinta conversavam, sentados num banco de madeira, do lado de fora do barraco, junto à porta. Disse ele:
- Sabe, Jacinta, tô pensando numa coisa...
Ela olhou para ela, curiosa. Ele continuou:
- Eu tô achando melhor eu dormir lá na obra durante a semana e só vir p'ra casa no sábado à tarde. Assim, eu economizo o dinheiro da passagem, posso acordar mais tarde e dormir mais cedo... Que é que você acha?
Ela ficou em silêncio por algum tempo. Depois, respondeu:
- Num sei não... Você ficar longe da gente tanto tempo... Logo agora que as crianças se acostumaram de estar com você todas as noites.
- Mas, quando eu chego em casa, na maioria dos dias, eles já tão dormindo e, quando eu saio, de madrugada, eles ainda não acordaram...
Fez uma pausa. Prosseguiu:
- Além disso, é muito sacrifício p'ra mim... Acordar de madrugada, pegar condução, trabalhar no pesado o dia inteiro, depois pegar mais condução p'ra chegar aqui, é muito duro... Depois, a gente faz economia do dinheiro da passagem...
Jacinta nada disse. Ele insistiu:
- Então, o que é que você acha?
Ela respondeu, baixinho:
- Se é p'ro teu bem...
* * *
Severino passou a dormir na obra. Aos sábados, chegava no barraco já tarde da noite, cheirando a cachaça. Aos domingos, também passou a beber o dia inteiro...
Maria Jacinta nada dizia. Mas, começou a ficar triste... Severino nunca fora de beber... Por que será que começara? Será se ela tinha feito alguma coisa que o desagradara? Será se era por causa de outra mulher? Talvez aquela que queria que ele usasse aquele negócio de.borracha no peru... Ficava debatendo com ela mesma suas aflições, enquanto esfregava a roupa no tanque...
Depois que começou a beber, Severino foi ficando mais nervoso, irritadiço... Brigava por qualquer coisa, discutia por nada, chegou a bater em Jacintinha...
As crianças pareciam não ligar para a mudança do pai... Os dois meninos passavam o dia na rua, jogando bola, soltando cafifa, freqüentando a praia... As meninas não entendiam direito as coisas de gente grande...
Severino deixou de ir em casa num fim-de-semana... Voltou no outro, cheio de cachaça, disse que fora obrigado a fazer hora extra no domingo anterior, xingou a mulher e os filhos, foi dormir... No dia seguinte, voltou para a obra.
Depois, ficava sempre um fim-de-semana sem ir no barraco... No outro, quando lá chegava, normalmente embriagado, novas discussões, reclamações umas atrás das outras... Não tinha dinheiro para nada, não podia comprar nada que queria, uma televisão usada, camas p'ras crianças, roupa de cama, roupa p'ra vestir... Nada... Ganhava uma miséria e a inflação comia tudo... Depois, já emborcado na cama, chorava, ria, bebia mais ainda...
Jacinta a tudo ouvia, nada ou quase dizia... Silêncio de resignação... A seca e a fome ficaram para trás, mas sua vida com Severino, lá no sertão, talvez fosse melhor... Havia mais compreensão, mais amor, não havia a bebida... Nem a outra mulher, aquela do negócio de borracha...
* * *
Estavam no mês de janeiro.
Severino já não ia ao barraco fazia dois fins-de-semana.
Jacinta continuava em sua rotina... Lavava sua roupa (já estava com doze freguesas), fazia as entregas, subia e descia o morro todo dia.
As crianças agora estavam de férias na escola... Pareciam não sentir muito a ausência do pai... Também, já estavam acostumados, desde quando ele os deixou lá em Irauçuba e veio para o Rio...
Zé Anastácio visitava sempre Jacinta, procurando confortá-la. Ele e a mulher lhe diziam:
- Jacinta, tenha paciência com Severino. É só uma fase difícil de adaptação com a cidade grande... Aqui é fogo, se a gente bobear, ela engole a gente...
Jacinta procurava encontrar forças para suportar a separação do marido e continuar levando sua vida junto com os filhos...
* * *
As chuvas de janeiro caíram forte... Incessantes, dia e noite...
O Jornal Nacional, da TV-Globo, mostrava, naquela noite, a reportagem feita à tarde sobre os estragos causados pela chuva... Ruas inundadas, rios que transbordaram, carros arrastados pela violência das águas, gente e mais gente desabrigada, sem teto, sem ter para onde ir... A cidade era o caos...
A repórter, protegida por uma capa impermeável, capuz na cabeça, microfone na mão, chuva caindo forte à sua volta, relatava um deslizamento de pedras no morro do Vidigal, enquanto a imagem da câmera mostrava a cena. Dizia ela:
- Vejam só o que aquelas pedras fizeram quando rolaram lá de cima do morro. Foram carregando tudo o que encontraram pela frente... Inclusive um barraco, no interior do qual dormiam uma mulher e seus quatro filhos... Dois meninos e duas meninas... O menino mais velho, Pedro Jacinto da Silva, com 12 anos de idade, morreu soterrado...
A imagem, fria e cruel, mostrava o corpo de Pedrinho deitado sobre um monte de pedra e terra. Rosto sereno, faces ainda rosadas, cabelo na testa, expressão tranqüila, olhos abertos... Como se estivesse esperando por aquilo, conformado com o seu destino de pobre...
Ali perto, queixo apoiado nas mãos, tendo a seu lado Raimundo, Maria e Jacintinha, a mãe, sentada num barranco, olhava para o cadáver do filho mais velho...
Olhar distante, olhos secos, sem lágrimas, sofrimento contido no peito... A chuva continuava a cair fortemente, molhando o seu rosto...
A repórter aproximou-se, colocou o microfone junto à sua boca. Perguntou-lhe:
- Como é que aconteceu, minha senhora?
Ela apenas responde, sem olhar para a moça:
- Foi Deus que quis assim...
Ela não via mais nada à sua volta... Olhava apenas para o corpo de Pedrinho, deitado sobre a lama... Pensava em Irauçuba, no sertão, em Severino, no "pau-de-arara"...
Perdera outros cinco filhos por causa da seca... Aquele, perdia-o agora por causa da água...
Fugira para o nada...
* * *
O MAGISTRADO
Era juiz no interior do Estado.
Tinha 56 anos, recusara por várias vezes a promoção para a Capital. Era, há muitos anos, o primeiro na lista de antigüidade, já poderia ser desembargador há muito tempo.
Preferiu ficar em Silvermado, comarca pequena, vida calma, tranqüila e metódica. Ali já estava por mais de 22 anos, sua primeira e única lotação desde que fora promovido a juiz titular.
Homem de rígidos princípios morais e éticos chegava diariamente ao Fórum às onze horas, início do expediente judiciário, conforme constava do Código de Organização da Justiça Estadual. Dali saía exatamente às 5 da tarde, como também determinava o referido Código. Tivesse ou não mais trabalho a fazer (exceto nos julgamentos prolongados do Tribunal do Júri). A população da cidade costumava dizer que os relógios das pessoas eram acertados pela "hora em que o Dr. Mario entra e sai do Fórum".
Vestia-se formalmente, com extrema sobriedade... Terno escuro (cinza ou preto), sempre bem passado colete, gravata discreta e um indefectível relógio, que trazia no bolsinho dianteiro da calça, preso a uma corrente de ouro.
Era casado com Maria há 32 anos, mulher de educação tradicional, feita sob medida para ele... Mario e Maria...
Residiam numa casa bonita, bem no centro da pequena cidade, jardim cheio de bem cuidadas roseiras e outras flores, dois andares, cômodos espaçosos, bem claros e ventilados...
Não tinham filhos (porque assim o decidiram).
Mas, gostavam sinceramente um do outro, passando reciprocamente uma atmosfera de carinho e compreensão pouco vista em outros casais. Se já não se amavam loucamente, com a paixão própria da juventude que já se perdera no tempo, respeitavam-se e se derramavam em atenções mútuas. Espontaneamente, sem afetação, quer estivessem sozinhos ou na presença de estranhos.
Dormiam em quartos separados, no segundo andar ("para preservar a privacidade de cada um").
Mas, religiosamente, a cada quinze dias, Mario ia ao quarto de Maria, onde mantinham conjunção carnal, dever sagrado entre um casal unido pelo matrimônio.
Antes, Mario preparava-se para todo o ritual que antecedia o ato sexual. Tomava um longo banho, perfumava-se discretamente, passava álcool nas mãos com cuidado... Maria, também, sabedora de que era chegado o dia, preparava-se com esmero para receber o marido, colocando um belo roupão cor-de-rosa e soltando os longos cabelos já começando a ficar grisalhos, normalmente presos no alto da cabeça.
Carnaval de 1976.
Mario começou a assistir o desfile das escolas de samba na televisão, na sala da casa, no primeiro andar.
Maria, em seu quarto, após o demorado banho, já vestindo o roupão cor-de-rosa, esperava pelo marido. Era o dia...
Às 9 da noite em ponto, Mario subiu.
A porta do quarto da mulher estava apenas encostada, como costumava acontecer a cada quinze dias (marcados no calendário dependurado na cozinha).
Mario entrou, tirou o pijama, abriu o roupão da mulher com delicadeza e, sem dizerem qualquer palavra, consumaram o ato sexual. "Papai e mamãe", é claro.
Após a satisfação da função biológica, Mario torna a vestir o pijama, dizendo para Maria:
- Até amanhã, Maria, durma bem.
Ela, ainda um pouco ofegante, respondeu:
- Até amanhã. Durma bem você também.
Após Mario sair do quarto, Maria levantou-se, tomou uma rápida chuveirada, trancou a porta e deitou-se outra vez, logo caindo no sono (como habitualmente fazia).
Mario foi até seu quarto, tomou outro banho, vestiu um outro pijama e, sem sono, decidiu descer para continuar assistindo o desfile das escolas.
Ligou a televisão, sentou-se no confortável sofá, pegou um refrigerante e biscoitos.
Desfilou o Salgueiro, depois a Mangueira, veio a Beija-Flor...
Mulatas exuberantes, seios à mostra, praticamente nuas, uma minúscula tanguinha, fingindo cobrir-lhes as partes íntimas, cabelinhos enrolados aparecendo na região pubiana, cheiro de pecado no ar, parecendo querer sair da tela de 20 polegadas...
Mario foi ficando excitado, o pênis começou a enrijecer, o pijama foi ficando molhado por um líquido viscoso saído ninguém sabe de onde.
Não conseguindo conter o desejo que o dominava, incontrolável, sobe as escadas e, voz suplicante, murmura, batendo na porta do quarto de Maria:
- Maria... Maria...
A mulher desperta do sono recém-iniciado. Ainda meio sonolenta, voz arrastada, reconhece a voz do marido. Pergunta, um pouco preocupada:
- Sim, Mario. O que aconteceu? Está precisando de alguma coisa?
Ele, gaguejando, voz meio sem graça, responde, perguntando:
- Maria, você se incomodaria... se incomodaria... de me adiantar uma quinzena?
A mulher pula da cama, e já sem qualquer peça de roupa no corpo, abre prazerosamente a porta do quarto...
Após a noite sem limites que tiveram (ela chegou a ficar de quatro para a penetração por trás), a primeira em tantos anos de vida em comum, na manhã seguinte, o relógio da igreja matriz da cidade, pela primeira vez, deu onze horas antes que o Dr. Mario chegasse ao Fórum...
* * *
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