quarta-feira, julho 09, 2008

OS BILHETINHOS

OS BILHETINHOS


Calfilho



Ela corria, apressada. O trolley atrasara e estava em cima da hora da primeira aula. Seis e quarenta e oito da manhã. O uniforme azul e branco contrastava maravilhosamente com sua pele cor de canela, o último botão da blusa branca aberto, a gravata escura pendendo displicentemente no pescoço.
Tinha orgulho daquele uniforme. Usara-o durante seis anos e meio, aquele era o sétimo e último de sua passagem pelo Liceu. Ginasial e científico, tudo no mesmo colégio que, como dizia o hino de dona Edith Pinho “era a razão da própria vida...”.
O ano estava por terminar. Último, do científico. Iria colar grau em dezembro, faltavam apenas dois meses. Estava fatigada de tanto estudar: pela manhã, o Liceu, com suas onze matérias. À tarde, das duas às sete, o intensivo do Pasteur, lá na Marquês do Paraná, para o vestibular de medicina.
Finalmente, chegou a condução. Entrou no trolley pela porta de trás, deu ao trocador o passe cor de rosa, que dava direito a um desconto para os estudantes, sentou-se num dos bancos.
Enquanto o veículo trafegava lentamente pela Praia de Icaraí, parando em todos os pontos para apanhar passageiros, Soninha deixava sua mente passear no tempo. Lembrava-se dos seus primeiros anos de Liceu, quando ali ingressara há sete anos, após passar com louvor no exame de admissão. Estava toda radiante em seu primeiro dia de aula, o uniforme impecável, como sua mãe sempre fizera questão de mantê-lo, limpo e passado. Mas, o medo do trote, do qual tanto ouvira falar, não lhe saía do pensamento. Contaram-lhe mil e uma coisas, que os veteranos humilhavam os calouros, fazendo-os passar pelas mais terríveis provações.
Ela, novinha, cara de assustada, passou pelo grande portão lateral, que dava acesso às dependências do melhor colégio de Niterói. Ainda bem que logo divisou Maria Clara, sua colega de primário no Raul Vidal, lá perto da Ponta d’Areia. Abraçaram-se e sentiram uma espécie de alívio. Pelo menos, não estariam sozinhas.
Entrando no enorme pátio onde todos os alunos das três primeiras séries do ginasial aguardavam a sirene para a primeira aula, parecia que todos olhavam para as duas. Maria Clara não estava uniformizada e reclamou com Soninha:
-- Poxa, Soninha, por que você veio de uniforme? Todo mundo já sabe que você é caloura, com essa única divisa na tua blusa...
-- É mesmo, fiz besteira -- reconheceu.
Entraram em sala, sem serem molestadas. Os mais antigos pareciam que aguardavam a hora certa para dar o bote.
Procurou saber onde sua turma iria formar, antes da entrada em sala. O pessoal conversava alegremente, os veteranos olhando para os calouros com um sorriso debochado nos lábios, como se escolhessem suas futuras presas.
Veio o recreio. A sirene tocou forte, o som semelhante ao que os bombeiros faziam. Os alunos correram alegremente para o pátio, a maioria já abrindo suas lancheiras.
Aí, começou o suplício para Soninha. Ela, conversando distraidamente com Maria Clara, foi pega pelo braço por três veteranos. Tentou resistir, mas foi empurrada em direção a um dos bancos de cimento, que ficavam em volta do pátio.
Deram-lhe um palito de fósforo e mandaram-na medir o banco. Ela, vermelha como um camarão, encabulada, não sabia onde esconder o rosto. Se pudesse, enterrava-o no chão de tanta vergonha.
Os três veteranos riam dela, atrapalhavam-na na contagem que fazia com o palito. Mandavam que repetisse tudo, desde o início. Ela estava nervosa, doida para sair dali. Maria Clara, ao seu lado, petrificada, nada fazia, só olhava, aterrorizada, esperando que sua hora também chegasse.
Mais veteranos chegaram, agora trazendo um calouro. Menino gordinho, cara também de apavorado, vestindo o dólmã tradicional daqueles tempos de Liceu. Como Soninha, devia ter uns onze anos.
Mandaram que ele se ajoelhasse e fizesse uma declaração de amor para Maria Clara. O pobre do garoto ajoelhou-se, tentou falar, mas não conseguia. Gaguejava, as palavras não lhe saiam da boca. Começou a chorar.
Soninha, também, estava a pique de chorar.
Nisso, chegou um rapaz mais velho, do terceiro ginasial, e mandou que os outros veteranos parassem com aquilo. Eles, como eram do segundo ano, mais novos, portanto, ficaram com medo e obedeceram. Ainda mais que ele fazia parte da diretoria do Grêmio...
Os rapazes se afastaram e aquele que as “salvou”, perguntou:
-- Tudo bem com vocês?
Maria Clara, refeita do susto, ainda corada de emoção, conseguiu responder, com dificuldade:
-- Tudo bem, obrigada.
Ele não tirava os olhos de Soninha. Parecia encantado com o porte da menina, com a beleza da cor de sua pele, com a limpidez dos seus olhos castanhos claros.
Ela nem conseguiu olhar para ele. Estava com os olhos enterrados no chão, não saíra ainda do estado de choque que o trote lhe causara.
Ele se afastou, dizendo:
-- Bem, se precisarem de alguma coisa, me procurem na sala do Grêmio.
Nem ao menos disse seu nome.
Maria Clara comentou com Soninha:
-- Que rapaz legal, Soninha. Acho que gostou de você...
Era já o despontar de uma atração pelo outro sexo, na inocência dos seus onze anos de idade...
x.x.x.x.x.x.x.



Só viram o rapaz umas duas ou três vezes mais, naquele primeiro ano de colégio das duas. Nos dias que se seguiram, os demais veteranos delas não se aproximavam, talvez alertados de que elas eram protegidas de “um cara do Grêmio, da terceira série”. Davam trotes em outros alunos e alunas, mas nelas nunca mais.
Nas vezes em que passaram por ele, tentaram cumprimentá-lo, mas ele estava sempre cercado de muita gente, rapazes e moças de séries mais adiantadas, e pareceu não notar-lhes a presença.
Por isso, aquele primeiro ano das duas foi-se embora e não tiveram mais oportunidade de falar com ele.
No ano seguinte, ele passou a cursar a quarta série, que era no turno da manhã, enquanto elas continuavam no turno da tarde, agora no segunda.
Praticamente não se viram mais, nem nos poucos instantes em que o turno da manhã saía e entrava o da tarde, por volta do meio-dia. Com o passar do tempo, Soninha acabou por esquecer do seu “salvador”.
Mas, a mão do destino entrou em ação...
Quando ela já estava na terceira série e ele na primeira do científico, as meninas do turno da tarde passaram a ter a mania de deixar bilhetinhos debaixo das carteiras, na tentativa de aproximação com os rapazes mais velhos do turno da manhã.
Maria Clara, ainda colega de sala de Soninha, disse:
-- Escreve você também, Soninha. É divertido, e, quem sabe, a gente consegue arranjar um namorado?
-- Não, isso é bobagem. E eu não quero arranjar namorado nenhum. Tenho mais é que me concentrar nos estudos, se não acabo perdendo o ano.
Realmente, só pegaram professores tidos como “carne-de-pescoço”: Carias, em Matemática e Jacira, em Português, isso só para falar nos dois piores.
Mas, Maria Clara tanto que insistiu, que ela acabou concordando. Deixou um bilhetinho debaixo da carteira, em sua letra ainda quase infantil, dizendo-se interessada em conhecer quem sentava naquele lugar no turno da manhã.
-- E, se for uma moça? – perguntou Soninha.
-- Ué, se for, você deu azar e ficam elas por elas. Mas, você não perdeu nada, não é mesmo? – retrucou Maria Clara.
Acabou concordando.
Na tarde do dia seguinte, já esquecida daquilo tudo, entrou em sala e sentou-se em sua cadeira. Maria Clara, com curiosidade, logo procurou debaixo de sua carteira se havia algum bilhete. Nada...
-- Vê em baixo da tua – disse para Soninha.
Essa, meio displicentemente, sem dar muita importância, meteu a mão debaixo de sua própria carteira. Achou algo, trazendo-o para fora.
Era um pedaço de papel dobrado. Maria Clara, curiosa, pediu:
-- Abre, abre logo.
Ela abriu vagarosamente o bilhete e ali estava escrito que o signatário do mesmo também teria muito prazer em conhecer a pessoa que lhe enviara um outro no dia anterior. Pedia detalhes sobre a série em que estudava, a descrição do seu tipo físico, cor dos cabelos, dos olhos, etc., etc...
Ela enrubesceu na hora. Não esperava resposta ao bilhete que mandara despretensiosamente no dia anterior. Tinha levado na brincadeira a sugestão de Maria Clara e só escrevera para fazer-lhe a vontade.
Maria Clara quis ler e ela não teve como recusar. Passou-lhe o blhete..
-- Responde, responde – insistiu a colega.
Ela, com receio:
-- Não sei, não sei. Não estou a fim, Maria Clara, responde você.
-- Nada disso, foi para você que ele escreveu, não pra mim. Você é que tem que responder.
-- Mas, ele nem sabe quem sou eu. Como estou sentada aqui nesta carteira, poderia ser você...
-- Nada disso, é você que tem que responder – insistiu Maria Clara.
Ela acabou fazendo-lhe mais uma vez a vontade. Rabiscou uma resposta curta, sintética, falando o mínimo possível sobre ela, suas características físicas e suas predileções.
Mas, na tarde seguinte, outro bilhete. O “moço encantado”, como passou a chamá-lo Maria Clara, respondeu num outro bilhete repleto de palavras carinhosas e de admiração. Ela, ao lê-lo, ficou mais uma vez encabulada. Mas, agora, também ficara interessada.
Respondeu aquele com mais entusiasmo, mais empolgação.
Os bilhetes foram ficando mais íntimos, mais quentes, mais apaixonados.
Soninha já estava impregnada da empolgação de Maria Clara e também ansiosa por conhecer o autor dos bilhetes. Ao menos, saber quem era...
Pena que não podia entrar no colégio antes que terminassem as aulas do turno da manhã. Se não, iria até a porta da sala do primeiro científico, que ficava na ala que dava para a ruazinha atrás do Liceu, onde ficava o Jardim de Infância, e facilmente identificaria seu galã apaixonado.
Mas, como tinha que esperar tocar a sirene e aguardar sair todo o turno da manhã, continuava ficando sem saber…
Esse chove-não-molha durou quase todo o ano...
Um dia, já não agüentando mais de curiosidade, foi de manhã ao colégio, sem uniforme, na hora do recreio do turno da manhã. Pretextando ter que ir à secretaria, tendo Maria Clara ao seu lado, subiu as escadas que levavam ao segundo andar. Chegando em frente à secretaria, dobraram à direita e foram dar numa outra escada lateral, que as fazia voltar ao primeiro andar, já agora junto a saída que dava acesso ao pátio. Atravessaram todo o terreno que margeava o local de recreio dos liceístas, passaram pela cantina da dona Cremilda, subiram aquele pequeno lance de três degraus de escadas e novamente entraram no corredor lateral, aquele que dava para a pequena rua atrás do colégio. A primeira sala, à direita, era a do primeiro científico no turno da manhã, terceira série do ginasial, à tarde.
As duas meninas procuraram olhar disfarçadamente para o interior da sala, onde os alunos tinham aula de química com o professor Saleme. Encostaram-se na parede e esticaram o pescoço, tentando enxergar quem estava no interior do recinto.
Eram vários os alunos, a sala estava cheia. Aproximadamente uns trinta e cinco. Uns prestavam atenção na aula, outros olhavam distraidamente para os lados.
Foi então, que os olhares de Soninha e de seu correspondente misterioso se cruzaram. Ele olhou distraidamente para a porta e viu aquele rosto moreninho, olhos brilhantes, cheios de vida e de curiosidade, olhando fixamente para ele. Firmou o olhar, curioso, sem conseguir estabelecer a ligação entre a menina que o fitava com insistência e aquela com quem trocava os bilhetinhos apaixonados.
Ela, um pouco encabulada, desviou logo o olhar. Puxou a mão de Maria Clara, procurando sair rapidamente dali.
Maria Clara indagou, curiosa:
-- O que foi? Não conseguiu descobrir quem é? Eu não pude visualizar direito sua carteira...
Ela, ainda com o rosto vermelho, tentando se recompor, conseguiu finalmente dizer:
-- Vi sim, sei quem é...
-- Quem é? Quem é? – perguntou Maria Clara, ardendo de curiosidade.
Ela respirou fundo. Já voltando ao seu estado normal, enquanto se afastavam dali, disse:
-- É aquele rapaz que nos salvou do trote, quando entramos pro Liceu.
Maria Clara não conseguiu esconder a surpresa.
-- É mesmo? Verdade? Mas, que coincidência... – comentou, com um sorriso enigmático nos lábios.
Soninha, só na rua, já na pracinha em frente, na parada do trolley, conseguiu finalmente recuperar a calma.
-- Meu Deus, como é possível... No meio de tanta gente, logo com ele fui me corresponder.
Mas, com um sorriso no canto da boca, não pode disfarçar o contentamento que sentia com a feliz coincidência...

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Bem, acabaram se encontrando pessoalmente, começaram timidamente um namoro que pensavam não teria maiores conseqüências, mas hoje, passados mais de três anos, ele na faculdade de engenharia, ela prestes a terminar o terceiro científico, não podiam ficar mais de algumas horas longe um do outro.
Todo mundo no Liceu acompanhou de perto aquele namoro de adolescentes. Quando começou, ele tinha dezessete, ela treze anos de idade. Só viviam de mãos dadas nas horas de recreio, antes e depois das aulas. Em festinhas em casas de alunos ou nos clubes da cidade, sempre estavam juntos. Ela foi sua madrinha na festa de formatura dele, no baile do Regatas Icaraí. Dançaram a valsa, quando ela se formou no ginasial.
Finalmente, o trolley chegou ao seu ponto final, em frente aos Correios, junto à Praça Araribóia. Soninha despertou do seu devaneio, voltou à realidade daqueles dias de 1962.
Foi andando para o Liceu, subindo toda a Amaral Peixoto, como costumeiramente fazia. Ansiava por chegar a hora do término de suas aulas da manhã, quando, como fazia todos os dias, seu amado a estaria esperando na porta do colégio, para, juntos, pegarem o trolley até sua casa. Durante a semana, era um dos poucos momentos em que podiam estar juntos. Ela tinha aula a tarde toda no cursinho e ele, além das aulas da manhã, tinha as da tarde, na faculdade. Só conseguiam ver um ao outro à noite, por volta das oito horas, quando ficavam namorando até as dez.
Quase chegando ao colégio, depois de atravessar a Amaral Peixoto, pegando a calçada da esquerda, Soninha chegava ao Liceu. O portão lateral já estava fechado. Estava atrasada, já sabia. Entrou pela porta principal, desculpando-se com “seu” Borges pelo atraso...
O que o futuro reservaria para ela e seu namorado?
Como estariam dali a quarenta anos? Teriam filhos? Quantos seriam? E netos? Estariam rodeados deles? O que o destino lhes reservaria?
Perdida em seus pensamentos, nem prestava atenção ao que o professor de geografia tentava ensinar à turma...


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2 comentários:

Mikail disse...

Gostei muito! Quanta sensibilidade e riqueza de detalhes, você
consegue envolver a gente! Parabéns colega!
Pedrita Zita

Unknown disse...

Querido Carlinhos:

Quem lhe escreve é uma emocionada Soninha,
que, assim como VC, tem uma imensa saudade dos nossos velhos tempos.
Não poderia deixar passar em branco as perguntas, que VC faz , no final da estória; até porque tenho todas as respostas...
Meu namoro, com o famoso Diretor do Grêmio, não vingou.
Trilhamos, como você sabe, caminhos distintos .
Hoje, depois de 40 anos, com famílias constituídas,
filhos, netos, reencontramo-nos, na Internet, através
de um querido e comum amigo daqueles tempos.
Que alegria !...
Conversamos, trocamos nossas experiências,
e relembramos o nosso "denominador comum",
que é o Liceu.
Agradeço a VC por ter lembrado de mim, e encaro
este conto como uma linda homenagem que recebo, nesta altura da minha vida.
E peço vênia para dedicar parte dela ao meu amigo, Diretor do Grêmio, que foi meu companheiro de história.
Beijocas da Soninha