O JUIZ, ESSE...
Calfilho
Argemiro abriu os olhos vagarosamente...
As pálpebras pesavam-lhe como chumbo, a cabeça doía-lhe terrivelmente.
Sentia um formigamento no rosto, o pescoço parecia que estava torto, a testa sofria enorme pressão externa, como se estivesse sendo apertada por um gigantesco torniquete. Uma dor aguda na nuca, que ia e vinha em intervalos de segundos, às vezes minutos, dava-lhe a certeza de que ainda estava vivo...
Fechou os olhos por alguns segundos... Abriu-os novamente, devagar, sentindo tremer-lhe as pálpebras pesadas... Procurou olhar em volta, tentando reconhecer o lugar onde estava... O teto era cinza, também as paredes. Estava deitado sobre uma cama, um lençol cobria-lhe o corpo...
Sozinho, não havia ninguém com ele...
Tentou mover-se na cama... Nada, o corpo não obedecia ao impulso que sua mente enviava... Perna direita, não conseguiu levantá-la... Olhou para a esquerda, tentou virá-la de lado... Inútil, nenhum movimento... Braço esquerdo, a mesma coisa...
Conseguiu mexer somente os dedos da mão direita, trêmulos, inseguros... Apertou-os fortemente uns contra os outros, sentindo-os bem longe, débeis, como se estivessem fora do corpo. O braço direito também conseguiu movê-lo, tendo feito um enorme esforço para levantá-lo lentamente, com dificuldade, a uma altura de vinte centímetros da cama.
Agora, já conseguia fixar melhor os objetos à sua volta. Viu uma agulha espetada em um de seus braços, ligada a um tubo que ia dar num frasco de soro, preso num suporte junto à cama. No outro braço, mais uma agulha espetada... uma máscara de oxigênio tapava-lhe o nariz e a boca. Outros fios estavam presos ao tórax, ligados a diversos aparelhos colocados do lado esquerdo da cama.
Seu cérebro começou a processar o que via. Sem dúvida, concluiu, estava num quarto de hospital... Como fora parar ali? Por que motivo?
Esforçou-se para se concentrar, mas a cabeça continuava a doer-lhe terrivelmente... A não ser o débil movimento que fazia com a mão direita, a única coisa que sentia em seu corpo era aquela forte pressão na cabeça... Tinha que pensar, procurar lembrar-se do que ocorrera, reviver seus últimos momentos de consciência... Lutou contra a terrível dor que lhe martelava o crânio, imagens vindo-lhe ao pensamento confusas, entrecortadas, atropelando-se umas sobre as outras, como um sonho agradável que, repentinamente, transforma-se em pesadelo tenebroso...
Naquele momento, entretanto, estava consciente, inteiramente lúcido, o cérebro trabalhando febrilmente.
Lembrava-se perfeitamente de quem era, seu nome, sua profissão, seu endereço, sua família...
Tratava-se aquela triste figura imobilizada sobre uma cama do Doutor Argemiro Rodrigues Ventoni, desembargador aposentado, residente no Rio Comprido, bairro residencial situado entre as Zonas Norte e Sul da cidade do Rio de Janeiro, casado com dona dona Marilda da Silva Ventoni há mais de 46 anos, pai de dois filhos, avô de três netos... Estas informações estavam bem nítidas em sua mente, não havia qualquer dúvida sobre elas... Felizmente, não perdera a memória.
Mas, o que acontecera? Por que estava naquele hospital? Por quanto tempo estivera inconsciente? Onde estavam sua mulher, seus filhos?
Uma sensação de pânico invadiu-lhe a alma... Será se fora apanhado na rua como indigente, que ninguém de sua família soubera o que lhe acontecera?
Procurou acalmar-se, raciocinar com objetividade. De nada adiantaria desesperar-se, deixar que a ansiedade o dominasse...
Não, é claro que eles já sabiam... Sempre andava com seus documentos, quem o levou para o hospital teria comunicado o Tribunal e alguém teria avisado Marilda... É claro...
Lembrava-se pouco a pouco, vagamente, de algumas cenas... Ia atravessar a rua para ir ao banco, do outro lado de onde ficava o Fórum. Lá estivera anteriormente visitando alguns colegas desembargadores. Iria pegar um talão de cheques, sacar algum dinheiro, pagar umas contas. Depois, retornaria para casa, lá no Rio Comprido.
Era essa, atualmente, sua rotina de dois dias na semana. Saía de casa por volta de onze da manhã, vestindo terno e gravata, como fazia habitualmente todos os dias, na época em que estava na ativa. Agora, pouco mais de um ano que se aposentara, não conseguia perder o hábito de ir ao Fórum, almoçar com alguns colegas, bater papo com outros, saber das novidades do Judiciário. Assim, mantinha-se atualizado com o Direito, acompanhava as decisões mais recentes dos Tribunais... Pelo menos, em dois dias de semana... Religiosamente, às terças e quintas.
Era dura a aposentadoria compulsória para o magistrado que chega aos 70 anos de idade... Sentia-se em pleno vigor físico e mental e era obrigado a parar de trabalhar, viver o resto de seus dias na ociosidade...
Logo ele, forte como um touro, físico de atleta espalhado por seu corpo de um metro e oitenta e cinco centímetros de altura... É certo que estava quase calvo, os raros cabelos nas têmporas e na nuca já embranquecidos... Mas, sentia-se na plenitude de seu vigor físico, andando diariamente quase quatro quilômetros, procurando manter a forma, como nos velhos tempos de remador do Regatas Icaraí e, depois, do Guanabara...
Quanto à mente, esta permanecia inalterada, ágil e inteligente como sempre fora, sem o menor sinal de demência ou senilidade. Até o último dia de trabalho proferira seus votos na Câmara onde estava lotado, sempre elogiado por todos, colegas, promotores e advogados...
Recentemente, autografara o último livro que publicara, “Reflexões sobre o Direito Ambiental”, recebido com fartos elogios pela crítica especializada, como acontecera com os anteriores...
E, agora, em pleno gozo de sua aposentadoria não desejada, para a qual fora mandado para casa descansar, ali estava imóvel, impotente, estirado sobre uma cama de hospital, impossibilitado de mover um só músculo (correção: mexia os dedos da mão direita e o respectivo braço).
Triste destino: enquanto trabalhava a todo vapor, nada sentia, nada o incomodava. Agora, quando deveria estar aproveitando a vida, sem nada a preocupá-lo, ali estava deitado, inválido...
***
Ia atravessar a Antônio Carlos.
Aguardou que o sinal luminoso, na esquina com a Erasmo Braga, fechasse para os carros e ônibus. Várias pessoas, ao seu lado, também aguardavam que o sinal lhes ficasse favorável... Conversava com o desembargador Monteiro, também aposentado e que fora seu colega de Câmara. A tarde estava quente, abafada, como costumavam ser as tardes de novembro no Rio de Janeiro, calor de 36 graus, mormaço sufocante a fazer todo mundo transpirar por todos os poros... Os dois velhos desembargadores, no meio da multidão, encerrados no paletó e gravata que não deixavam de usar, ou por hábito ou para manter a aparência de austeridade, adquirida e depois cultivada por toda a vida judiciária...
Conversavam sobre futilidades, enquanto os veículos passavam velozmente diante deles, em direção à Primeiro de Março.
A dor aumentava na cabeça de Argemiro.
As lembranças novamente tornavam-se confusas, enevoadas... Procurou respirar profundamente, exercício que costumava fazer regularmente para acalmar-se, sempre que se sentia agitado. O aparelho de oxigênio, enfiado em seu nariz, dificultava-lhe a respiração... Queria retirá-lo, nervoso, mas não conseguia mover o braço até alcançá-lo.
– Merda – praguejou mentalmente (os juízes também diziam palavrões). – Não vem ninguém me ver. Me largam aqui sozinho, monte de carne velha e inútil...
Conseguiu acalmar-se, passados alguns minutos... O oxigênio chegava-lhe ao cérebro vagarosamente, irrigando-lhe as células maltratadas pelo ataque.
Mas, afinal, o que tivera? Derrame? Enfarte? Um simples desmaio?
Olhou para as pernas, não conseguia vê-las, cobertas pelo lençol. O ombro esquerdo, entretanto, aparentava estar imobilizado. Pelo menos, foi isso que conseguiu ver ao tentar mover o pescoço...
Teria sido atropelado? Seria por isso a imobilização no ombro?
As perguntas sucediam-se e amontoavam-se em seus pensamentos. Quisera logo saber as respostas... Quanto tempo ficaria naquela espera? Quando viriam vê-lo?
O sinal fechara para os veículos.
A multidão começou a atravessar a primeira pista da Antonio Carlos, Argemiro e Monteiro perdidos no meio dela, conversando animadamente sobre os problemas do Judiciário.
Quando já iam no meio da segunda pista, Argemiro ainda viu um ônibus que se aproximava velozmente pela esquerda, depois levou a mão à cabeça e ...
Não se lembrava de mais nada. Daí em diante, tudo se tornava escuro, sombrio, sem definição. Por mais que se concentrasse, de nada mais recordava...
Até aquele instante em que atravessava a rua, tudo estava claro, bem nítido em sua mente. Dali para frente, só escuridão, trevas...
Deve ter sido naquele momento que perdera a consciência.
O que lhe acontecera?
***
Procurou desviar o pensamento para outras coisas, inúteis que foram suas tentativas de esclarecer a razão de sua presença naquele quarto de hospital.
Sua mente divagava... As lembranças de outros tempos brotavam-lhe rapidamente, povoando seus pensamentos de recordações felizes de quarenta e poucos anos atrás...
Devia ter, na época, quase 30 anos de idade... Apesar de trabalhar seis horas por dia, como funcionário burocrático da PANAIR DO BRASIL, ainda encontrava tempo para advogar e estudar para o concurso de juiz de Direito. Formara-se há mais de cinco anos e, sem deixar o emprego na PANAIR, que lhe garantia o sustento da família, conseguia conciliar o tempo livre com sua banca de advocacia, que mantinha em sociedade com um colega de faculdade.
Nos fins de tarde, encerrada a maratona de audiências nas diversas varas do Fórum, ainda estudava até oito, nove horas da noite no escritório, com outros candidatos ao concurso. Só retornava para casa por volta das 22 horas, cansado, esgotado do dia cheio que tivera... Era só tomar um banho, comer qualquer coisa leve e dormir. No dia seguinte, a mesma rotina: às sete da manhã já estava batendo o ponto na PANAIR.
Casara-se há quatro anos com Marilda, já tinham um filho com dois. A incerteza quanto ao futuro, sem definição em relação à estabilidade no emprego, no qual já trabalhava há sete anos, bem como à consolidação ou não de sua banca de advocacia, fizeram-no decidir em tentar o concurso para juiz. Apesar de não se achar suficientemente maduro para a carreira, nem preparado o bastante para as difíceis provas, decidiu tentar. Se, por acaso, fosse aprovado, estaria com o futuro garantido.
“Quem não arrisca, não petisca”, costumava dizer-lhe a mãe, quando garoto.
Recordava, com satisfação, das noites de estudo em grupo, no escritório, quando ele e mais quatro candidatos discutiam e debatiam os mais controvertidos temas de Direito, programa do concurso na frente deles. Eram horas e mais horas de estudo duro, debates acalorados, discussões profundas. Argemiro, por já ser advogado com intensa militância, era o mais experiente do grupo, conduzindo os debates. Os outros, sem sua prática forense, mas com razoável conhecimento teórico, traziam à discussão subsídios de doutrina e jurisprudência, com real proveito para todos.
Os sábados e domingos, Argemiro passava-os em casa, recolhido ao quarto, mergulhado em seus livros. Privava a esposa e filho de sua companhia, deixando-os sem o lazer tão necessário após uma semana de trabalho e rotina doméstica. Sabia que aquilo não estava certo. Aquela fase de sua vida não retornaria jamais. Estava sacrificando-se, deixando de acompanhar o crescimento do filho e de dar assistência à mulher, mas tinha que fazê-lo. A segurança financeira da família era mais importante. Depois, colheria os frutos. Não podia era viver naquela insegurança, sem saber se amanhã estaria empregado ou não. E o aluguel? A alimentação? As roupas? O colégio do filho? Quem iria pagá-los?
Certamente, não seria sua banca de advocacia, que, apesar de estar indo muito bem, deslanchando mesmo, era sempre incerta, clientes que não pagavam honorários, causas que não apareciam com regularidade.
Sempre dera duro na vida.
Nascido em Nova Friburgo, pequena e bela cidade serrana do Estado do Rio de Janeiro, filho de pai e mãe operários da fábrica de tecidos que ali existia (hoje está fechada, após a falência, em 1975), desde cedo decidira estudar muito, fazer-se por si próprio, ter um futuro melhor. O pai, imigrante italiano, não se importava muito com a dedicação do filho aos livros. Para ele, talvez, fosse melhor que Argemiro, quando completasse 14 anos, arranjasse uma colocação de aprendiz na fábrica. Assim, começaria a trabalhar desde cedo, valorizando a importância de receber seu próprio dinheiro.
Tivera uma infância e adolescência normais a qualquer criança de Friburgo. Viviam modestamente, mas nunca lhe faltara o que comer e vestir. Fizera o primário numa escola pública e o ginasial e científico no Colégio Anchieta.
Tinha um irmão mais velho, Aristides, que, diferente dele, não era muito amigo dos livros. Este sim, cumprira o destino que o pai lhe reservara: já trabalhava como tecelão desde os doze anos.
Sua mãe, camponesa da zona rural de Friburgo (Conselheiro Paulino), após o casamento passou a trabalhar na fábrica, colocação arranjada pelo marido. Era a única da família a incentivá-lo a estudar cada vez mais. Comprava-lhe livros, conseguiu-lhe uma bolsa num curso de inglês.
Assim, Argemiro viu passar os primeiros dezoito anos de sua vida. Concluído o curso científico, decidiu fazer vestibular para Direito em Niterói, então a capital do Estado do Rio de Janeiro.
Foi aprovado em terceiro lugar, prêmio à sua dedicação aos estudos.
Aí, até o pai entusiasmou-se com seu sucesso, arranjando-lhe uma pensão em Niterói, onde pudesse ficar durante o curso universitário. Era perto da faculdade, no bairro do Ingá.
E lá se foi Argemiro para a antiga capital fluminense, igual a muitos jovens de classe média que saem do interior para as capitais em busca de progresso nos estudos e na vida. Em três meses, logo arranjou um emprego como balconista em uma farmácia, com cujo salário pagava a pensão. Daí para frente, as coisas se sucederam rapidamente. Freqüentava à noite a faculdade, trabalhava durante o dia, aproveitava qualquer tempo livre para estudar. Ah!... ainda acordava às cinco da manhã para remar durante uma hora no Regatas Icaraí. Era a única atividade de lazer que se permitia.
Já não dependia mais do dinheiro do pai para suas despesas, pagando-as com o próprio trabalho. Aquilo lhe dava uma sensação de liberdade, de confiança, de autoestima. Afinal, já era um homem feito. Independente, autossustentável...
Os quatro primeiros anos da faculdade passaram rapidamente, Argemiro sempre aprendendo coisas novas, interessando-se a cada dia pela beleza do Direito, ciência que o fascinava.
Quando já tinha vinte e dois anos, conseguiu o emprego da PANAIR, arranjado por um amigo dos tempos do Colégio Anchieta, que ali já trabalhava. Os escritórios eram no Rio e, passados, alguns meses, Argemiro mudou-se para uma pensão no Catete, continuando a cursar o último ano de faculdade em Niterói.
A vida, para ele, corria tranquila. Um emprego razoável, e, agora, terminando o curso de Direito, já conseguira estágio em alguns escritórios, onde ensaiava os primeiros passos na futura carreira.
Conheceu Marilda num baile da faculdade, irmã de um colega de turma. Namoraram pouco mais de dois anos. Casaram-se, ele com quase vinte e seis, ela com vinte e dois anos. Gabriel nasceu dois anos depois. Moravam agora num apartamento alugado, no Rio Comprido.
Suas divagações foram interrompidas. Uma jovem loura, em trajes de enfermeira, entrou no quarto. Ao vê-lo com os olhos abertos, abriu um largo sorriso e, emocionada, saiu para o corredor, gritando alto:
– Ele acordou, ele acordou!
***
O quarto logo se encheu de gente.
Médicos, enfermeiras, serventes, todos riam, contentes, comemorando o retorno da consciência de Argemiro. Havia muita gente em volta da cama, tomavam-lhe a pressão, a temperatura. Afinal de contas, era um paciente importante...
Um homem, vestindo roupa de médico, aproximou-se da cama e o fitou fixamente dentro dos olhos. Aparentava ter uns cinqüenta anos, era alto, cabelos começando a embranquecer, um fino bigode sobre o lábio superior.
Perguntou, com voz serena:
– E, então, Dr. Argemiro? Voltou para nós, não é? Já era tempo...
Argemiro tentou responder, fazendo um grande esforço para mover os lábios. Nenhum som. Não conseguia falar. Nervoso, agitado, começou a babar pelo canto da boca. Mexeu agoniado com o braço direito, única parte de seu corpo que conseguia movimentar.
O médico, bastante calmo, avaliou a situação.
Examinou a parafernália de aparelhos computadorizados que estavam em volta da cama, conferiu as medições de temperatura e pressão, verificou a papeleta dependurada no pé do leito. Expediu ordens para enfermeiras, conversou com outros médicos.
Falou pausadamente, voz calma, procurando tranquilizar o paciente imóvel:
– Dr. Argemiro, o senhor entende o que estou falando? Está me escutando?
O desembargador levantou o braço direito, fazendo um sinal de positivo com o polegar direito apontado para o alto.
O médico fez uma expressão de alívio. Continuou:
– Ótimo, já conseguimos um grande avanço.
“Avanço de merda”, pensou Argemiro.
O médico fez uma pequena pausa, olhou novamente para um dos aparelhos ao lado da cama. Voltou-se para Argemiro e prosseguiu:
– Bem, vou tentar resumir o que aconteceu, já que o senhor deve estar ansioso para saber por que motivo está aqui. Eu sou o Dr. Freitas, neurocirurgião do Hospital São Salvador, onde o senhor está internado há dezoito dias. O senhor teve um derrame cerebral ao atravessar a rua, no centro da cidade. Quando caiu, deu azar de bater com a nuca no meio-fio, sofrendo grave traumatismo craniano e uma forte luxação no ombro esquerdo, com deslocamento da clavícula. Foi trazido para cá em coma, onde fomos obrigados a operá-lo em caráter de emergência, para remover um coágulo que pressionava seu cérebro.
Fez outra pausa. Procurava escolher as palavras para transmitir as más notícias. Continuou:
– A operação foi um sucesso, conseguimos remover o coágulo e ficamos aguardando sua reação para sabermos a real extensão do derrame. Infelizmente, o senhor não saiu do coma até hoje. Acompanhamos a evolução do seu estado durante todo esse período e verificamos que seus órgãos vitais funcionam normalmente: pulmões, coração, rins, fígado, estão todos em bom estado. Aliás, o senhor tem uma saúde invejável.
Mais uma pausa. O médico olhava fixamente para Argemiro, tentando adivinhar em sua fisionomia a reação que suas palavras causavam no paciente. Argemiro não mexia um músculo da face, ou porque não podia fazê-lo, ou porque estava despencando mais e mais num abismo que parecia não ter fim.
– Só não temos uma dimensão precisa das lesões causadas ao cérebro – prosseguiu o médico, suas palavras soando como rajadas de metralhadora de encontro ao rosto de Argemiro. – Apesar das anomalias registradas nas tomografias e eletroencefalogramas, não sabemos até que ponto elas são irreversíveis.
Continuou, após um breve silêncio:
– Vamos submetê-lo agora mesmo a uma nova bateria de exames para uma atual avaliação de seu estado. Depois, vamos ver os procedimentos que iremos adotar. Pode deixar, fique tranqüilo, vamos sempre colocá-lo a par de tudo, não iremos esconder nada. Sabemos que este é o seu desejo, sua esposa já nos disse.
Era verdade. Argemiro sempre disse aos familiares e ao seu médico particular que, se algum dia padecesse de alguma doença grave, não lhe escondessem nada. Tinha verdadeiro pavor de morrer de câncer, doença que levara à morte sua mãe, tendo sofrido muito com sua lenta agonia, sem nada poder fazer. Sabendo a verdade, poderia, ao menos, decidir como viveria seus últimos dias.
O médico concluiu seu breve relato:
– Bem, antes dos exames, vamos falar com Dª. Marilda. O senhor deve estar ansioso para conversar com ela, não é? Já mandei chamá-la na cantina do hospital. Ela foi fazer um lanche com seu filho.
Argemiro, olhar perdido, fez um sinal afirmativo com o polegar.
“Bem, então não fora atropelado pelo ônibus", como pensara. A iminência do atropelamento, o medo que sentiu ao ver o ônibus avançar desgovernado em sua direção é que lhe causaram o derrame.
Perdido em seus pensamentos, aguardou a chegada da mulher.
***
A conversa com Marilda e Gabriel foi emocionante.
Mas, como era óbvio, não demorou muito. É claro que só a mulher e o filho falaram, Argemiro apenas fazia breves sinais com a mão direita. A verdade é que as palavras do médico ainda martelavam em sua cabeça e não prestou muita atenção no que a mulher e o filho diziam.
“Viviane já estivera ali várias vezes. Os netos, algumas. Vários colegas do Tribunal também foram visitá-lo no período em que estava em coma. Fulano mandara lembranças, sicrano havia telefonado, beltrano telegrafara”.
Ouvia tudo aquilo com o pensamento distante, como se ali não estivesse: derrame, cérebro, crânio, cirurgia, coágulo, paralisia, sequelas, palavras às quais não estava habituado e que, agora, ecoavam dentro dele.
Passado algum tempo, vieram buscá-lo para os exames. Levaram-no para outra sala, também cheia de aparelhos sofisticados. Tomografia, eletroencelafograma, ressonância magnética, radiografias, ultrassonografias, exames de sangue.
Voltou para o quarto, onde Marilda e Gabriel ainda permaneciam. Viviane sua filha, também havia chegado. Abraçou-o fortemente e começou a chorar. Argemiro não sabia se o choro era de alegria por vê-lo recobrar a consciência ou de tristeza por vê-lo naquele estado lamentável. Mas, Viviane sempre fora muito emotiva. Chorava por qualquer coisa.
Gabriel conversava num canto do quarto com o Dr. Freitas. Falavam em voz baixa, Gabriel olhava fixamente para o pai. Fisionomia preocupada.
Aplicaram-lhe um sedativo.
Marilda ainda falava quando ele mergulhou em sono profundo.
* * *
As provas escritas até que não foram tão difíceis.
Argemiro achava que dava para passar, mas muita coisa dependia da interpretação da banca em relação a determinadas questões.
Foram oito meses de ansiedade até que os resultados fossem anunciados.
Finalmente, o grande dia: aprovado.
Exultou de alegria. Dois outros colegas que com ele estudavam também foram aprovados naquela primeira fase. Outros dois não conseguiram.
Agora, as orais, as mais difíceis. Ali, os examinadores queriam demonstrar em público erudição e elevada cultura, onde a vaidade pessoal de cada um era a tônica dominante. O pobre candidato é quem pagava. A banca era composta de desembargadores, professores universitários, advogados famosos, a maioria autores de livros de Direito. Tinham opiniões próprias sobre temas controvertidos, as quais defendiam ardorosamente em seus acórdãos, pareceres ou arrazoados, considerando-se cada um deles, a suprema sumidade na sua matéria. Os donos da verdade... Aquele era um palco ideal onde poderiam exibir-se para aquele público de simples mortais. E o insignificante candidato, mísero marisco na eterna briga entre o rochedo e o mar...
Não podia afastar-se da PANAIR, pois já não tinha mais férias para tirar naquele ano. Ainda tentou pedir uma licença, mas lhe disseram ser impossível, a Companhia estava passando por dificuldades (efetivamente acabaria por ter decretada a falência anos mais tarde), estavam precisando de todos os funcionários. O escritório, também não poderia deixá-lo, muitas causas estavam pendentes, não poderia passá-las ao seu sócio, que só fazia advocacia trabalhista. O jeito era estudar de madrugada, aproveitar cada momento livre que tivesse: no ônibus, na ida e vinda para o trabalho; na hora do almoço, do lanche, quando fosse ao banheiro, sábados, domingos e feriados. Tinha sempre um livro de Direito nas mãos.
Iria ter somente pouco menos de um mês para o começo das provas. Tinha que dar tudo de si naquela arrancada final. Era a grande cartada que iria definir seu futuro.
Em casa, trancava-se no quarto para não ouvir o barulho que a mulher e o filho naturalmente faziam. No escritório, não aceitou novos clientes, procurando adiar algumas audiências já marcadas, depois de explicar tudo às partes, que foram bem compreensivas. Durante o expediente na PANAIR, tinha sempre à mão um livro junto de si, lendo tudo o que podia em qualquer momento de folga.
Emagreceu, ficou nervoso, irritadiço, uma pilha de nervos. Às vezes, explodia com Marilda, que não conseguia fazer com que o filho não fizesse barulho. Depois, arrependia-se e pedia-lhe desculpas. A pressão estava ficando insuportável.
Finalmente, chegou o dia.
Os pontos eram sorteados na véspera e o candidato tinha 24 horas para estudá-los e fazer a revisão final. Dezoito de cada matéria: Direito Penal, Civil, Comercial, Processo Penal, Processo Civil, Constitucional e Administrativo.
Era uma verdadeira loucura. Argemiro e os dois outros aprovados nas escritas, trancaram-se no escritório logo após o sorteio dos pontos, por volta das 10 horas da manhã. Começaram a estudar, mandaram vir sanduíches e café e só pararam por volta das duas da madrugada do dia seguinte.
Só conseguiu pegar no sono por volta da cinco da manhã. Às sete e meia, já estava de pé. Tomou outro banho, agora bem quente, na tentativa de relaxar o corpo.
Mas, o pior era a mente. Seus pensamentos estavam a mil por hora, embaralhavam-se uns nos outros, numa confusão mental que o deixava apavorado. Será que ia dar-lhe um “branco” na hora decisiva? Conseguiria responder às perguntas? Já imaginava a cara do desembargador Juracy, famoso por seu sarcasmo, do alto de sua sabedoria, a rir dele quando não conseguisse abrir a boca e responder às malditas perguntas.
"Não, tinha que se controlar, manter-se calmo". Afinal de contas, já era um advogado tarimbado, conceituado no Fórum, respeitado por suas defesas orais nos Tribunais. Se falhasse, que vergonha seria. Não, poderia não ser aprovado por falta de competência, mas não deixaria de responder às perguntas que lhe fossem feitas.
Vestiu o terno, ajeitou a gravata, olhou-se diante do espelho, as olheiras profundas marcando-lhe o rosto. Despediu-se de Marilda que, ainda sonolenta, desejou-lhe boa sorte. Tomou um gole de café preto, bem forte e saiu de casa.
* *
Quando seu nome foi chamado, estava tranqüilo, completamente calmo. Cumprimentou a banca, mexeu a colher na xícara de café à sua frente, bebeu um gole d’água. Depois, respondeu com tranquilidade e segurança a todas as perguntas. Após hora e meia de argüição por todos os membros da banca, levantou-se, cumprimentou-os novamente com um gesto de cabeça e voltou-se para onde estava a platéia, muitos deles seus amigos.
Foi logo abraçado, cumprimentado efusivamente por várias pessoas, colegas e outros candidatos que ali aguardavam o dia de suas provas.
Estava confiante, achava que dava para passar.
Duas semanas mais tarde, o resultado final. Aprovado em quarto lugar.
Um de seus maiores sonhos estava por se realizar.
Seria juiz de Direito.
* * *
O dia de sua posse foi um dos mais felizes de sua vida.
Lá estavam seu pai (pela primeira vez dentro de um terno, a gravata apertando-lhe o pescoço), sua mãe, que era só orgulho e felicidade, seu irmão (também desajeitado, vestindo paletó e gravata), sua mulher e filho, seus sogros, amigos de infância, adolescência e da PANAIR, seu sócio de escritório, clientes e vários outros conhecidos.
Eram 32 juízes que tomavam posse (Mário também fora aprovado, Oliveira perdera por pouco), o saguão do Tribunal lotado com os amigos e familiares dos empossados.
Um ônibus fora fretado em Friburgo para trazer seus parentes e amigos para a posse.
Seu pai conversava, orgulhoso, com algumas pessoas lá da cidade natal:
– Quem diria, esse menino que outro dia corria pelas ruas da cidade, pé no chão, hoje é juiz de Direito...
Várias pessoas, homens e mulheres da sociedade friburguense, que até então tratavam seu pai com indiferença e, até mesmo à distância, obscuro operário imigrante e semianalfabeto da fábrica de tecidos, agora ali estavam, na posse do filho, juiz de Direito do Distrito Federal. Quem os convidou, ninguém sabia. Talvez tenham ouvido comentar. Ou deu no rádio, quem sabe...
Agora, cercavam seu pai e sua mãe, bajulavam-nos, faziam-lhes mil reverências, elogiando-lhes o filho magistrado.
O prefeito de Friburgo, copo de whisky na mão, comentava com a mulher, em voz alta, para que todos ouvissem:
– Eu sempre disse que aquele menino iria longe, não é Suzana?
Suzana assentia com a cabeça, braço dado com o marido todo empavonado, peito estufado, pronto a fazer um discurso em homenagem ao filho ilustre da terra friburguense. Suzana estava deslumbrada com o luxo do ambiente. Todas aquelas mulheres e seus vestidos maravilhosos. Ah!... e os salgadinhos, que delícia... “Precisava conseguir a receita...”
O dono da fábrica de tecidos, Comendador Silvério, cumprimentava o pai de Argemiro, dando-lhe uns tapinhas nas costas:
– Mas, quer dizer que você, meu funcionário há tanto tempo, com um filho juiz e não me diz nada? Para que tanto modéstia, meu amigo? Não precisava ter guardado segredo.
Depois de engolir uma empada, ainda com a boca cheia de massa, o braço sobre o ombro de “seu” Ventoni, prosseguiu:
– Você e sua esposa me deixaram muito feliz. Precisamos conversar com mais calma lá na fábrica. Apareça para um cafezinho.
Vai ver que o Comendador nunca soube que o pai e a mãe de Argemiro eram operários da fábrica há mais de 25 anos. É claro que nem os conhecia pessoalmente, trancado sempre em seu luxuoso escritório. Só deve ter tido conhecimento daquela singular notícia, de que o filho de dois operários de sua fábrica iria tomar posse como juiz, alguns dias atrás. Ali estava para prestigiar tão faustoso acontecimento, que enchia de orgulho a Suíça brasileira.
Aí, Argemiro começou a perceber, pela primeira vez na vida, a falta de caráter, de autenticidade das pessoas, fato que passou a observar com mais freqüência nos anos seguintes e que muito marcaria seu futuro.
A proximidade com o Poder sempre foi a preocupação maior daqueles que o possuem e dele não querem ser afastados, como daqueles que desejam alcançá-lo. Pouco importa quem sejam as pessoas que o detenham, transitoriamente ou não. Pouco importa suas origens, seu passado ou seu futuro. Basta deterem alguma parcela de Poder, para que todos lhes queiram ser íntimos.
Argemiro estava entrando para a magistratura cheio de ideais, pretendendo dar tudo de si em busca de uma Justiça mais perfeita, mais humana, que procurasse atender com mais rapidez e eficiência os problemas sociais, os pobres e necessitados, em especial. Sua experiência como advogado militante mostrou-lhe onde estavam várias das deficiências e imperfeições do Poder Judiciário, mas também lhe mostrou as virtudes e a certeza de que, sem uma Justiça forte, todo o equilíbrio social se desmorona e os poderosos sempre acabarão dominando e subjugando os menos afortunados.
Alcançava, agora, uma posição em que teria a independência suficiente para colocar em prática os ideais de sua vida: justiça, igualdade, liberdade. Apesar de saber ser tarefa árdua, procuraria corrigir, nos limites de suas atribuições, tudo aquilo que, como advogado, constatara de errado no Poder Judiciário: uma prestação jurisdicional às vezes lenta demais, que, quando decidia as causas, já de pouco adiantava para quem batia às suas portas; um sistema judiciário anacrônico, com cartórios despreparados para bem atender a população, o que, por vezes, abria as portas para a corrupção; uma polícia também ineficiente, tanto técnica, como funcionalmente, meramente burocrática, que instruía mal os inquéritos e deixava o Judiciário sem melhores elementos de convicção para bem decidir as causas. Assim, muitos culpados eram freqüentemente absolvidos por falta de provas e, alguns inocentes, por vezes condenados por sentenças baseadas em provas circunstanciais, dedutivas, quando não forjadas, mas que, em muitos casos, não davam ao magistrado a certeza plena da culpabilidade do acusado. Quantas condenações eram proferidas baseadas, apenas, numa péssima folha de antecedentes, mas sem prova concreta da responsabilidade do réu em determinado processo.
Com o idealismo próprio dos jovens em início de carreira (tinha pouco mais de 30 anos, o juiz mais novo do Distrito Federal até então), pretendia lutar contra aquilo tudo, procuraria corrigir as coisas erradas, lutar, enfim, por uma Justiça melhor, mais rápida e mais eficiente.
O salão nobre do Tribunal, no prédio velho da rua Dom Manuel, repleto de gente, tinha o ar abafado, apesar de estarem funcionando vários ventiladores, espalhados pelos cantos do recinto. Um fotógrafo de Friburgo tirou a fotografia de Argemiro com a família, depois com o prefeito e a mulher, várias outras com as figuras importantes da cidade.
“Calma, Argemiro, tente ser agradável, controle-se. Afinal, você é uma pessoa educada”. O esforço foi grande, mas conseguiu aparecer sorrindo em quase todas as fotos.
Sentia-se pouco à vontade, vestindo a toga da magistratura pela primeira vez. Parecia estar desconfortável dentro daquela roupa pesada, segurando o capelo com uma das mãos. Mas, o aspecto solene da cerimônia de posse impunha todo aquele ritual, o jeito era conformar-se e aguentar calado, continuando a exibir o sorriso forçado no canto da boca.
Encerrada a cerimônia, foi jantar com a família num restaurante luxuoso de Copacabana. Seu sócio de escritório também os acompanhou.
Deixava para trás uma fase de sua vida.
Iniciava outra.
* * *
Acordou um pouco assustado, abrindo e fechando os olhos várias vezes. Teve, assim, a certeza de que permanecia vivo.
Agora, sentia um gosto amargo na boca, coisa da qual não se lembrava ter sentido anteriormente, quando saíra do coma. Será que estaria recuperando um outro sentido? Já tinha a visão, a audição, o olfato (sentia cheiro de remédio espalhado pelo quarto)... E, agora, o paladar? Ah!... também tinha parte do tato, já que conseguia sentir os dedos da mão direita, quando os apertava uns contra os outros...
Devia ser noite. A luz do quarto estava acesa. Viu Viviane estirada num sofá, do lado direito da cama. Parecia adormecida.
Coitada de Viviane. Nascida quatro anos depois de Gabriel, sempre fora mais frágil que o irmão. Assustava-se à toa, preocupava-se com qualquer coisa, chorava por bobagem. Mas, teve uma vida normal, sem maiores problemas, até o casamento. Formou-se professora e era sócia de uma pequena escola particular, jardim de infância e pré-primário, localizada na Tijuca. Casada com João Alfredo, engenheiro civil, dera-lhe duas netas: Maria Cristina e Fabiana, atualmente com oito e seis anos de idade.
Deveria estar cansada, dormindo, desconfortável naquele sofá tão pequeno.
Argemiro procurou mexer os dedos da mão direita. Abria-os e fechava-os, testava-lhes a sensibilidade. Pareciam bem, sentia-os perfeitamente.
Procurou apoiar o cotovelo direito na cama e movimentar o braço, para frente e para trás, lado direito e lado esquerdo. Exultou: os movimentos obedeciam ao comando do cérebro.
"Bem", tentou esboçar um sorriso, "não estava tão inválido assim".
Sua mente voltou a flutuar no tempo, voltando quarenta e um anos em sua vida.
Fevereiro de 1958.
Como eram diferentes o Rio de Janeiro e o Brasil daquela época.
O Presidente da Republica era Juscelino Kubistcheck, que estava no meio de seu sonho de construir Brasília, no Planalto Central de Goiás. A capital do futuro, obra mais moderna da arquitetura brasileira, projeto de Oscar Niemeyer, o símbolo do Brasil do progresso, do que haveria de mais avançado no mundo, alavanca do desenvolvimento, com a interiorização do país.
Já tínhamos a Siderúrgica de Volta Redonda, a Petrobras, a indústria automobilística; agora, uma nova capital. Eram os nossos anos dourados.
O Rio de Janeiro, vivendo seus últimos anos de Capital Federal, ainda guardava a importância até então desfrutada, sede do Governo da União, onde funcionavam o Executivo (no Palácio do Catete), o Senado e a Câmara dos Deputados (Palácios Monroe e Tiradentes) e o Supremo Tribunal Federal (na Cinelândia).
A Justiça do Distrito Federal funcionava no velho prédio da rua Dom Manuel, onde hoje estão o I Tribunal do Júri e algumas varas de família e falências.
No íntimo, talvez, nenhum carioca acreditava na mudança da capital e o Rio continuaria sendo o centro mais importante das decisões do país.
Era ano de Copa do Mundo e o Brasil, desacreditado, preparava-se para mais uma disputa, após a enorme decepção de 1950 e o fracasso de 1954. No Botafogo, surgira um ponta-direita endiabrado, apontado como a nova sensação do futebol brasileiro, apesar de ser acusado de driblar excessivamente: um tal de Mané Garrincha. No Santos, também, despontava um garoto de apenas 17 anos: um tal de Pelé.
Surgia a bossa nova, ritmo sincopado, esquisito, cantado um pouco desafinadamente por João Gilberto, Tom Jobim e Vinícius de Moraes. Ritmo que tentava desbancar o samba tradicional de Ary Barroso, Dorival Caymmi, Ataulfo Alves e tantos outros compositores consagrados. Aliás, prevalecia o estilo musical do samba canção, com suas melodias tristes, melancólicas, ditas de fossa, cantadas por Maysa, Dolores Duran, Tito Madi, Silvinha Telles, Dick Farney, Lúcio Alves. Mas, também havia muita música americana. Era a febre do rockn'roll que surgia avassalador, o yê-yê-yê, as baladas açucaradas cantadas por Elvis Presley, Bill Halley e seus Cometas, Little Richard, The Platters, Neil Sedaka, Paul Anka. Apareceu também, aqui no Brasil, um garoto que prometia, cantando versões de músicas americanas: um tal de Roberto Carlos. Também muito em moda, os grandes bailes orquestrados, em especial os de formatura, com Severino Araújo, Cipó, Waldemar Spilmann e outros.
Os bondes tinham sido substituídos pelos loucos lotações, os carrões americanos ainda dominavam as ruas cariocas, começando a aparecer os primeiros fuscas rodando pelas estradas do Brasil. A televisão, ainda em preto e branco, começava a se impor como acessório obrigatório nas residências do país.
Foi nesse cenário, um pouco ainda romântico e ingênuo, ao mesmo tempo também um pouco cínico e hipócrita, ainda preso a diversas tradições e tabus do passado recente (proibição do divórcio e manutenção dos filhos adulterinos na clandestinidade; o repúdio à mulher desquitada e à mãe solteira), onde o preconceito social era marcante e as diferenças de classes bem nítidas, que Argemiro começou a exercer sua carreira.
Recordava-se nitidamente, as cenas voltavam-lhe todas claras em seu pensamento.
Sua primeira designação, como juiz substituto, foi a de auxiliar junto à 6ª Vara Cível. O juiz titular era o Dr. Gesteira, homem de uns 60 anos, bonachão, alegre, espirituoso, que procurou deixá-lo à vontade e orientá-lo nos primeiros passos na nova carreira. Ali, ficou por dois meses.
Depois, sucessivas mudanças, com passagem por quase todas as varas, cíveis e criminais.
Os gabinetes e salas de audiências eram pequenos, acanhados, mal dando para a movimentação normal de juízes, promotores, advogados, partes e serventuários. No verão então, o calor era insuportável, que o matraquear dos barulhentos ventiladores de pé não conseguia amenizar.
O volume de processos era enorme, as audiências numerosas e cansativas, mal podia estudar com cuidado a matéria discutida, consultar livros de doutrina, pesquisar jurisprudência.
Em pouco tempo, viu-se frente a frente com o primeiro grande dilema da magistratura, aquele que angustia profundamente os juízes. Teria que optar entre estudar a fundo os processos, ouvir demoradamente as testemunhas, consultar as obras dos mestres, para, no fim, proferir sentenças longas, rebuscadas, repleta de citações; ou, por outro lado, ser mais objetivo na produção da prova, formar sua opinião desde logo, apressada, pela leitura dinâmica dos autos e pelo que a experiência lhe ensinara, proferindo decisões concisas, curtas, que atacassem, desde logo, sem rodeios, a matéria em discussão. Esquecer maiores digressões doutrinárias, bem como a citação de autores renomados ou de julgados precedentes.
O ideal seria seguir a primeira opção. Mas, a prática exigia que se adotasse a segunda.
A insuficiência do número de juízes em relação ao massacrante volume de processos que tinham para julgar fazia com uns dessem sentenças primorosas, com mais de cinqüenta laudas, repletas de citações e... atrasassem a decisão de vários outros processos, que se acumulavam nas prateleiras dos cartórios ou nas residências de juízes e desembargadores, por meses e às vezes, anos. E, as partes sofrendo com essa demora, sem nada ou quase nada podendo fazer.
Outros magistrados, entretanto, procurando não deixar que a solução dos processos não demorasse, eram mais rápidos na coleta da prova, ouvindo sucintamente as testemunhas, delas extraindo apenas um breve resumo de suas versões. Dessa forma, conseguiam fazer um maior número de audiências e decidiam logo, em sentenças curtas, objetivas, de, no máximo, duas folhas datilografadas. Evidentemente, a qualidade dessas decisões tinha que ser inferior àquelas outras proferidas por juízes mais lentos, mas a prestação jurisdicional fora dada, não protelada.
Infelizmente, alguns desses juízes que decidiam mais rapidamente, deturpavam o conceito de celeridade, já tendo até modelos de sentenças mimeografadas, nelas só colocando o nome do réu e o "quantum" da pena, em caso de condenação. Alguns, poucos felizmente, chegavam a pedir que Promotores de Justiça e até mesmo escrivães, presidissem algumas audiências, interrogando acusados ou inquirindo testemunhas, em evidente e absurda delegação de suas funções. Mas, para esses, a desculpa não era excesso de trabalho: eram preguiçosos por natureza. Ocorria, assim o extremo oposto da justiça lenta: era a justiça por atacado, tão mal prestada ou até pior que a primeira.
Quando advogado, Argemiro sentiu na carne e percebeu essas falhas na administração da justiça e isso o revoltava e angustiava profundamente. Sentia-se impotente, mero advogado que era, para modificar aquela situação. Logo que empossado, prometera a si mesmo jamais agir daquela forma.
Agora percebia, no dia a dia da nova atividade profissional, a real extensão do dilema com que se defrontavam os juízes: ou decidiam rapidamente, às vezes de forma imperfeita, superficial, ou prejudicavam as partes, atrasando as decisões. E o que percebia era que a coisa não mudava, nem tinha perspectiva de mudar: os antigos juízes de primeira instância, que sofreram na carne o drama do excesso de processos para serem julgados, quando chegavam ao Tribunal de Justiça se acomodavam, colocavam uma máscara e a empáfia de desembargador, pouco ligando para os problemas dos que estavam na instância inferior. E o círculo vicioso se repetia: justiça mal prestada, justiça de afogadilho, justiça demorada, justiça de mentirinha, com decisões finais sendo proferidas muitas das vezes quando as partes já haviam morrido, que não tinham mais eficácia alguma. Réus esquecidos nas prisões, quando a pena que lhes fora imposta já havia sido cumpridas há anos; inventários se desenrolando por mais de trinta anos; indenizações sendo concedidas quando o interessado já morrera ou já estava internado num asilo para velhos. Isso sem falar nas decisões injustas: provas mal produzidas, advogados incapazes, desaparecimento de processos... o Judiciário acabava se transformando em mero homologador de inquéritos policiais mal feitos ou proferindo decisões contra a verdade dos fatos, porque a parte escolhera mal seu advogado, porque um prazo fora perdido por incúria do interessado...
Quando advogado, nunca pensou que os juízes tivessem tantos processos para estudar e decidir. Acreditava, às vezes, que determinado juiz não ouvisse com cuidado as testemunhas ou não lesse com atenção as cuidadosas e bem fundamentadas alegações que oferecia nas causas em que funcionava. Só agora percebia com clareza que, para o advogado parecia que só a sua causa era a importante, aquela que deveria merecer a máxima e total atenção do juiz que fosse julgá-la, como se fosse a única existente na Vara. Na realidade, via agora que isso era impossível de acontecer, tamanho o número de processos que os juízes tinham para julgar.
No princípio, estranhava quando chegava ao gabinete por volta do meio-dia e encontrava sua mesa repleta de autos de processo para despachar. Ali ficava por quase duas horas, antes de começar a presidir as audiências, que já tinham sido marcadas para ter início às treze horas. Quando terminava de fazer as audiências, quase sempre depois das dezessete horas, voltava para o gabinete e o estoque de processos para despacho em sua mesa tinha sido renovado. E, quando deixava o gabinete, por volta das 19 horas, ainda levava um ou dois processos para estudar com mais calma em casa.
Com o passar do tempo, já não estranhava mais nada, habituara-se à rotina do seu trabalho. E, pensava consigo mesmo: "Meu Deus, dai-me forças para cumprir minha missão. Quanta responsabilidade tenho em minhas mãos em decidir a vida e o futuro das pessoas, não posso fazê-lo de qualquer maneira, de afogadilho".
E, alguns leigos (outros, nem tanto, agindo mesmo de má-fé), mal informados ou mal intencionados, injustamente criticavam a lentidão da justiça, sem atentar para o fato de que era pouco o número de juízes para tantos processos a causa primeira e a principal dessa anomalia. E, só pensam em punir o juiz, criar órgão de controle externo da magistratura, tirar a já tão debilitada independência do julgador...
Em todos os países civilizados, o número de processos que cabe a cada juiz julgar é infinitamente inferior que no Brasil. Lá, os magistrados podem colher a prova com vagar, examinar com cuidado as alegações das partes e proferir uma decisão serena, convencido de que realmente fez justiça às partes.
Aqui, infelizmente, isso não ocorre.
Em matéria criminal, por exemplo, a prova técnica, quando existente, é sempre insatisfatória. Argemiro costumava comentar posteriormente com seus alunos na faculdade que, enquanto advogado e juiz criminal nunca vira a autoria de um crime ser levantada através das impressões digitais de um criminoso. Os laudos periciais dos Institutos de Criminalística eram, quase sempre, peças absolutamente imprestáveis, de nada ou quase nada servindo para a apuração da verdade real.
Já em outros países, como Alemanha, França, Inglaterra e Estados Unidos, a prova pericial tem relevante e preponderante valor no convencimento do juiz, sendo, quase sempre, a prova decisiva. É um fio de cabelo, um fragmento de pele, uma pegada deixada num solo úmido, as circunstâncias que irão apontar o verdadeiro culpado, elementos inimagináveis de serem levantados por nossa deficiente investigação criminal.
A prova testemunhal, naqueles países, é prova secundária, o que não ocorre no Brasil, onde quase sempre ela prevalece sobre as outras, quando não é a única a ser produzida nos autos.
Vendo que, no expediente normal do Fórum, não conseguiria estudar com calma os processos, Argemiro passou a levar grande parte deles para casa, para ali trabalhar à noite, pela manhã ou nos fins de semana.
Tudo aquilo que planejava fazer quando fosse empossado estava indo por água abaixo. Vida mais calma, sábados e domingos passeando com a mulher e o filho, refeições às horas certas, oito horas de sono regular e reparador por noite. E, dois meses de férias por ano. Viagens para o Nordeste, para o Sul, quem sabe para a Argentina ou Europa?
Não precisaria mais acordar às seis horas da manhã, às vezes cinco e meia, para bater o ponto na PANAIR, às sete. Nem correr as varas do Fórum, à tarde, fazendo uma audiência ou sustentando oralmente um recurso no Tribunal. Muito menos ficar no escritório até dez da noite.
Triste engano...
Agora, como juiz, o serviço dobrara, as preocupações e a responsabilidade triplicaram, as horas de lazer foram para o espaço.
E, ainda alguns maledicentes diziam que "juiz não fazia nada, ganhava como marajá e tinha dois meses de férias...".
Argemiro, entretanto, encarava tudo aquilo com entusiasmo e dedicação, como um verdadeiro desafio. Presidir audiências, examinar a prova, proferir sentenças, decidir conflitos de interesses, tudo aquilo o fascinava. Achava-se capacitado para a função, o volume de trabalho não o assustava. Pena que a família sofria cada vez mais com sua dedicação, privada de sua companhia e das horas de lazer.
Decidiu optar por uma solução intermediária. Não atrasaria o serviço, em busca de uma prova minuciosa, detalhada, para proferir sentenças longas e eruditas. Também não seria fábrica de decisões concisas, mimeografadas. Procuraria cumprir os prazos processuais, ser detalhista sem exageros, objetivo e prático na prestação da atividade jurisdicional. Suas sentenças tinham, normalmente, de duas a três folhas, no máximo cinco, em casos mais complicados, que exigissem maior fundamentação. Proferia, em média, de setenta a oitenta decisões por mês. Procurava, sempre que possível, estudar os processos antes das audiências de julgamento, para formar uma opinião antecipada sobre o caso e, se nenhuma outra prova viesse a mudar o seu convencimento já firmado, procurava dar a sentença na hora, logo após os debates das partes, evitando, assim, intimações posteriores da decisão e uma maior delonga e despesas para as partes.
Lamentava, entretanto, enquanto juiz substituto, o constante rodízio entre as diversas varas, ora substituindo, ora auxiliando juízes titulares. Permanecia, em média, dois meses em cada vara, sendo logo mandado para outra, assim que o titular retornava de férias ou licença. Se, por um lado, pegava mais prática em todos os ramos do Direito, trabalhando em processos em que funcionavam advogados especializados em cada matéria (o que era bom), por outro, isso não lhe permitia acompanhar até o final os processos em que iniciara a produção da prova e para os quais estaria mais bem habilitado para proferir as respectivas decisões.
Em pouco tempo, menos de um ano após a posse, os corredores do Fórum, o principal porta-voz do que acontece nos bastidores do Poder Judiciário, já o consideravam como um juiz equilibrado, dinâmico e cumpridor dos seus deveres.
"Processo nas mãos do Dr. Ventoni não esquenta. Ele decide logo e, quase sempre, bem".
"Juiz humano, cumpridor dos seus deveres, não tinha medo de enfrentar trabalho”.
"Um dos melhores da nova geração, simples, humilde. não foi atacado pela juizite, como muitos outros".
Esses os comentários a seu respeito.
Com raríssimas exceções, dava-se muito bem com promotores, advogados e serventuários. Sua experiência anterior como advogado militante valeu-lhe muito nesses primeiros anos de carreira. É claro que desagradava a alguns, mas este é um dos ônus da profissão: o juiz nunca vai agradar a todos, já que sempre vão existir duas partes antagônicas, e cada uma delas sempre vai achar que a razão está do seu lado.
Deve ter feito diversas besteiras no exercício da função, algumas por inexperiência, outras por desconhecimento mesmo da matéria em discussão. Não se envergonhava disto. Era humanamente impossível ao juiz iniciante conhecer a fundo todos os ramos do Direito, com suas variantes e características específicas. Ora estava em uma vara criminal, logo em seguida em juízo cível, em vara de Família, Fazenda Pública, Órfãos e Sucessões, Registros Públicos, etc... Exigir do juiz intimidade profunda com todas esses especialidades do Direito, seria exigir demais. Daí porque somente adquiriam eles a experiência necessária auxiliando os mais antigos na carreira e sentindo, no dia-a-dia das audiências, despachos e sentenças, como era difícil e árdua a profissão.
Felizmente, seus erros não foram tão graves a ponto de causar comentários jocosos ou depreciativos por parte da Instância Superior ou de outros colegas.
Aliás, foi esta outra grande surpresa que a carreira lhe reservou.
Percebia, em relação a grande número de juízes, a intenção deliberada de depreciar colegas, diminuir-lhes os méritos e aumentar a gravidade de erros acaso cometidos. Isto, em acórdãos dos Tribunais ou em comentários que corriam à boca pequena.
"– Fulano é uma besta. Olha só o absurdo dessa sua decisão".
E exibiam, com ares de superioridade, cópia da sentença tida como absurda, apenas com o intuito de fazer fofoca, de menosprezar um outro colega. Isto, como teria oportunidade de constatar tempos depois, tinha sua razão de ser. Era a feroz disputa pela malfadada promoção dita por "merecimento". A qual, aliás, de merecimento tinha muito pouco, mas de puxasaquismo e bajulação tinha bastante.
Para serem promovidos “por merecimento”, alguns juízes usavam de todos os artifícios e manobras, pouco importando os meios empregados e as pessoas que tinham que prejudicar ou passar por cima.
Infelizmente, este um dos grandes e graves defeitos da magistratura, como, aliás, de todo o serviço público no Brasil.
Mas, Argemiro, apesar de consciente dos erros cometidos no início da carreira, tinha orgulho dos acertos, que, felizmente, foram em maior número que aqueles.
Apesar de ter adotado como norma não se preocupar em ler os acórdãos do Tribunal, reformando ou mantendo as sentenças que proferia, às vezes era cumprimentado por desembargadores, juízes, promotores e advogados:
– “Parabéns, Ventoni, fui relator de uma apelação de uma sentença sua. Magnífica, foi confirmada por unanimidade”, dizia-lhe um desembargador.
– “Veja, Dr. Ventoni, trouxe-lhe cópia do acórdão proferido no recurso proferido contra a sentença de Vossa Excelência, naquele caso em que funcionei, na 3ª Vara Cível, o senhor se lembra? Fizeram vários elogios ao senhor”, relatava-lhe um advogado, satisfeito, entregando-lhe a cópia do acórdão.
É claro que esse ilustre causídico havia ganhado a causa, mas, até por exceção, alguns advogados que haviam perdido, cumprimentavam-no, elogiando-lhe a qualidade da decisão. Se aquilo era sincero, jamais saberia.
E, é claro, os comentários desfavoráveis proferidos em acórdãos que reformavam suas decisões, dificilmente lhe chegavam ao conhecimento. Ficavam restritos, apenas, aos comentários maledicentes da lanchonete dos magistrados, onde, diariamente, grande parte deles se reunia para o lanchinho ameno após a jornada de trabalho. Ali, além de comentários diversos sobre assuntos jurídicos, funcionais e até existenciais, incluía-se também na ordem do dia, o delicioso tema da falar mal da vida alheia.
Apesar dessas pequenas decepções, normais em qualquer carreira, Argemiro sentia-se satisfeito: procurava dar tudo de si em seu trabalho, lutando sempre por uma justiça mais próxima de seu ideal de perfeição.
* * *
Viviane acordou.
Vendo que o pai estava com os olhos abertos, levantou-se da cadeira e foi até a cama, apertando-lhe a mão “boa”, a direita.
– E aí, pai, como se sente? Está melhor? – perguntou.
Argemiro sentiu-se mais uma vez agoniado, na vã tentativa de falar, as palavras presas em sua garganta. Soltou a mão da filha da sua, fez um gesto nervoso, tentando indicar que queria algo. Levantou a mão até próximo ao rosto, abriu-a espalmada em frente à boca.
Viviane demorou a entender. “Aliás – pensou Argemiro – raciocínio rápido nunca fora seu forte”.
Finalmente, pensou ter compreendido. Perguntou:
– O que é que você quer? Água?
Ele fez um gesto negativo com o dedo indicador da mão direita, expressão de impotência no rosto.
Ela perguntou outra vez, tentando decifrar o gesto do pai, ainda com a mão aberta em frente ao rosto. Perguntou, hesitante:
– Será... será... um espelho?
Sua fisionomia mostrou uma expressão de alívio. Enfim, ela entendera. Fez com o polegar o gesto que já se estava tornando conhecido: “positivo”.
Viviane procurou em sua bolsa. Achou o estojo de maquiagem com um pequeno espelho em seu interior. Colocou-o na frente do rosto do pai.
Argemiro levou um susto.
Apesar de uma vaga semelhança, aquele rosto não parecia ser o dele. A máscara de oxigênio cobria-lhe o nariz e a boca, é certo, mas dava para perceber o quanto emagrecera. As maçãs do rosto mostravam, nítidos, salientes, os ossos da face, o queixo aparecia com a ponta para baixo, a pele macilenta, sem cor (melhor, dizendo, amarelada), profundas olheiras que lhe tingiam de roxo as pálpebras e a parte inferior dos olhos.
Aparentava noventa anos de idade, em nada parecendo com o homem robusto, porte atlético, em pleno vigor físico, aquele Argemiro de antes do derrame.
Reparou que vários fios estavam presos à sua cabeça, na testa e nas têmporas. Deviam estar ligados a algum aparelho situado à esquerda da cama. Movendo o espelho para baixo, viu que do peito também saíam outros fios. Confirmou a existência da atadura em seu ombro esquerdo.
“Bela figura”, pensou consigo mesmo.
A falta de alimentação regular fizera com que emagrecesse terrivelmente. Somente o soro injetado em suas veias não fora suficiente para manter aquele corpo acostumado a pesadas massas, suculentos cozidos, saborosas feijoadas.
“Deveria ter perdido uns vinte quilos”, calculou.
Pousou o espelho sobre o abdômen.
Com outro gesto, indicou a Viviane que queria escrever. Dessa vez, ela entendeu o gesto mais rapidamente:
– Quer escrever? Quer papel e caneta?
Mais um sinal afirmativo com o polegar.
Viviane revirou novamente a bolsa. Não achando o que procurava, disse:
– Espera aí, pai. Vou tentar arranjar.
Cinco minutos depois retornava, trazendo-lhe o que pedira. Uma enfermeira a acompanhava, com uma prancheta de madeira nas mãos.
Viviane colocou delicadamente a mesma na frente de Argemiro, prendendo nela a folha de papel. Ajeitou a caneta entre seus dedos indicador e médio. A enfermeira, do outro lado da cama, tomava-lhe temperatura e pressão.
Ele firmou a caneta entre os dedos, aproximando-a do papel à sua frente. Viviane segurava a prancheta, mantendo-a perpendicular ao corpo do pai.
Com a mão trêmula, o velho desembargador firmou a caneta sobre o papel. Moveu-a vagarosamente para a direita, seu cérebro enviando com dificuldade as instruções para a mão direita. O coração batia-lhe mais apressado, sentia que estava fraco, parecia que ia desmaiar. Viviane e a enfermeira olhavam para a caneta forçando sobre o papel, ansiosas.
Com muito esforço, Argemiro conseguiu escrever, letra trêmula, pressionando a caneta sobre a prancheta:
“OBRIGADO, VIVIANE”.
A filha começou a chorar.
A enfermeira, aparentando mais de cinqüenta anos, cabelos grisalhos, corpo volumoso, abriu um largo sorriso. Disse, querendo ser agradável, olhando para Argemiro:
– Veja só, nosso paciente já está ficando bom. Até já aprendeu a escrever.
Argemiro olhou sério para ela. No íntimo, pensou: “Que idiota”.
Viviane deu-lhe um abraço apertado, enquanto enxugava duas lágrimas que teimavam em escorrer de seus olhos.
Argemiro respirou profundamente, aliviado. Pelo menos, podia escrever, comunicar-se com os outros. Sentiu, também, que seus olhos lacrimejavam.
Passado aquele momento de emoção, recobrada a calma, firmou novamente a caneta entre os dedos. Escreveu, a letra já saindo melhor que da primeira vez:
“QUERO VER O DR. MARTINS’.
Viviane fez um gesto com a cabeça, demonstrando saber o que o pai desejava. Respondeu:
– Pode deixar. Vou ligar agora mesmo para ele. Vou telefonar também p’ra mamãe e p’ro Gabriel. Eles foram em casa descansar um pouco.
Argemiro soltou a caneta sobre o peito. Piscou o olho para a filha, concordando com o que ela dizia.
A enfermeira injetou mais medicação em seu soro.
Daí a instantes, dormia novamente.
* * *
Na busca por uma Justiça que considerava mais próxima da realidade, Argemiro, às vezes, tinha que fugir da letra fria da lei.
Aliás, considerava extremamente infeliz a expressão corriqueira nos meios jurídicos de que “o juiz é escravo da lei e dela não se pode afastar, em nenhuma hipótese”. Segundo suas convicções, o juiz, na verdade, é o intérprete da lei, cabendo aplicá-la sempre visando o seu fim social, aquele que melhor atende às peculiaridades do caso concreto. O legislador elabora a lei para regular uma generalidade de casos. Cabe ao juiz encontrar sua melhor adequação a cada um deles, especificamente considerados.
Mais outro dilema com que os juízes se defrontavam no cotidiano da profissão.
Daí surge outra grande distinção que se faz normalmente entre os magistrados, em especial aqueles que militam na área criminal: os conhecidos como durões, mãos pesadas, e os bonzinhos, os liberais.
Enquanto os primeiros, invariavelmente, condenavam quase todos aqueles que tivessem a infelicidade de ver seus processos serem distribuídos para suas varas, aplicando-lhes penas elevadíssimas, os últimos normalmente absolviam os acusados, ou, quando os condenavam, procuravam aplicar-lhes penas brandas, alegando “motivos de boa política criminal”.
Argemiro considerava profundamente injusto que o destino do acusado dependesse da sorte: a bolinha do sorteio da distribuição (como no jogo de bingo ou víspora) é que iria definir se seria ele julgado por um juiz “mão pesada” ou por um “bonzinho”. Se o inquérito fosse distribuído para um dos primeiros, coitado do infeliz, condenação na certa; se, por outro lado, tivesse a felicidade de ser beneficiado pela distribuição do feito para um juiz benevolente, era absolvido, ou recebia uma condenação suave... “uma outra oportunidade”...
A lei não importava muito para esses juízes. Para eles, o que valia era a sua filosofia de vida, formando o seu convencimento de acordo com suas convicções pessoais. Sempre achavam um jeito de driblar a fria letra da lei (aliás, esta mesma sempre continha brechas nesse sentido, dada sua não muito rara ambiguidade) para moldarem suas decisões conforme entendiam ser a melhor solução para o caso concreto.
Isso acontecia com freqüência, inclusive nos tribunais superiores. Costumava-se comentar nos corredores do Fórum:
“– Olha, estou perdido. Minha apelação foi distribuída para a “Câmara Mortuária” – comentava um advogado.
Outros exultavam:
“– Meu recurso caiu na “Câmara Papai Noel...”.
Assim eram classificados os desembargadores do Tribunal de Justiça, conforme eram mais ou menos rigorosos.
Argemiro costumava obedecer à lei, mas dela não era escravo absoluto. Dependendo do caso, principalmente nas hipóteses de acusado primário, de pouca idade, procurava examinar as provas com certa benevolência (o que não lhe era difícil, tendo em vista a precariedade costumeira das mesmas e a fragilidade dos inquéritos policiais), dando, quase sempre, uma segunda oportunidade ao jovem infrator.
Por outro lado, em alguns outros raríssimos casos, tinha que contornar a aparente deficiência da prova, principalmente de testemunhas amedrontadas ou coagidas, ou quando sentia que o inquérito pretendia favorecer o indiciado, para condenar elementos de reconhecida periculosidade, convencido que ficava de sua culpabilidade.
Era contrário à imposição de penas elevadas, pois sabia que de nada adiantariam, tendo em vista a falência notória de nosso sistema correcional, meros depósitos de presos. Procurava fixá-las, quase sempre, próximas do mínimo legal.
Por isso, preferia e defendia as decisões do Tribunal do Júri. Apesar de proferidas por pessoas do povo, sem conhecimento necessário de Direito, eram tomadas por sete pessoas, que, no mínimo pensavam melhor que apenas uma. Não importa que não fossem conhecedoras da lei. Possuíam o bom-senso que é próprio de cada cidadão, afastados do tecnicismo de leis, doutrinas e outras fontes do Direito. Decidiam como membros da sociedade, acostumados a conviver cotidianamente com seus problemas e perigos (sobretudo a violência), habilitados, portanto, a decidir o que era melhor para sua segurança e tranqüilidade.
A experiência mostrava-lhe que os jurados erravam até menos que os juízes togados. Estes, com o passar dos anos, acostumados a decidir diariamente causas semelhantes, tornavam quase que mecânico o ato de sentenciar. Já o mesmo não acontecia com os juízes de fato. Suas decisões, apesar de não motivadas, continham sempre o elemento humano, impregnadas do sentimento do cidadão comum, que o juiz, infelizmente, até por deformação profissional, acabava por perder.
Por isso, Argemiro lutava consigo mesmo para não se deixar contaminar por essa insensibilidade, esse afastamento da realidade social que, muitas vezes, atacavam determinados magistrados. Para estes, ao julgar um caso, o acusado era apenas mais um nome na capa de um processo, algo de impessoal, sem vida própria. Todas as decisões seguiam quase que um mesmo padrão, fosse para condenar ou absolver.
Entretanto, não eram eles os únicos culpados por essa insensibilidade. Mais uma vez (rebatendo na mesma tecla), era o massacrante volume de processos que tinham a seu cargo o responsável maior por essa deformação de personalidade.
Já o Júri julgava a cada sessão casos com riqueza de detalhes que eram transmitidos em plenário, onde eram ouvidas a versão do acusado, o depoimento das testemunhas, os debates travados entre acusação e defesa. Podiam os jurados, durante todo o desenrolar da sessão plenária, examinar com cuidado cada depoimento, cada alegação das partes, verificar reações fisionômicas e, afinal, decidir com quem estava a verdade. Se o acusado deveria ser segregado do convívio social, ao qual ele mesmo, jurado, pertencia, ou se poderia nele permanecer.
Reconhecia que o Júri tinha imperfeições (a principal delas, a inútil e descabida complexidade da quesitação, difícil de ser compreendida até pelos juízes de carreira). Mas, defendia sua permanência em nossa legislação, com algumas pequenas correções. Sustentava para seus alunos que o tribunal popular deveria até ser estendido para o julgamento de outros fatos delituosos, aqueles considerados de maior gravidade pelo nosso Direito: roubo, seqüestro, estupro, etc... Não ficar apenas adstrito ao julgamento dos crimes dolosos contra a vida.
Representava ele a mais democrática participação do povo em matéria que lhe interessava bem de perto, como sua própria segurança individual e a da coletividade. Se absolvesse mal, teria que conviver com o criminoso andando nas mesmas ruas que ele; se proferisse uma condenação injusta, teria que carregar, para o resto da vida, o peso na consciência de ter mandado um inocente para a cadeia. A responsabilidade era toda sua, como cidadão e membro da sociedade a que ele, jurado, e também o acusado e a vítima pertenciam.
Era o Tribunal do Júri, segundo Argemiro, o mais perfeito e claro exemplo de controle externo do Judiciário, matéria tão em voga atualmente.
No tribunal popular, o cidadão exerce, de forma direta, sem intermediários, o seu poder dentro da sociedade, participando de decisões que lhe dizem respeito, a ele, sua família, ao grupo social a que pertence. Não o faz de forma indireta, como quando escolhe representantes para os Poderes Executivo ou Legislativo, os quais, nem sempre, para não dizer, quase nunca, correspondem aos anseios da população que os elegeu e, nem sempre também, honram os mandatos que lhes foram outorgados.
Por tudo isso, não entendia a posição de alguns juristas quando combatiam ferozmente o tribunal popular, com alegações de que o mesmo decide emocionalmente, sem base no Direito, influenciando-se os jurados, muito mais, pela melhor ou pior oratória do Promotor ou do advogado de defesa. Como se os conflitos humanos que terminavam, a maior parte das vezes, em tragédia, em homicídios, não estivessem quase sempre inteiramente impregnados de emoção.
Era pena, realmente, que a competência do Tribunal do Júri fosse tão limitada em nossa legislação.
* * *
Argemiro acordou subitamente, despertado pelo som de vozes no quarto.
Abrindo os olhos vagarosamente, reconheceu Marilda, Viviane, Gabriel e seu velho amigo e médico particular, o Dr. Martins.
Conhecia-o de muito tempo atrás, logo que começara a trabalhar na PANAIR e com ele se fora consultar, para tratar de uma dor de ouvido que o incomodava bastante. Naquele tempo, não existiam tantos médicos especialistas como atualmente, sendo o clínico geral aquele que tratava de quase todos os casos.
Daí, com a sequência de idas ao consultório para a continuação do tratamento, nasceu uma sólida amizade.
Tinham quase a mesma idade, Martins três anos mais velho. Era o padrinho de Gabriel e um dos poucos amigos íntimos de Argemiro, que lhe confiara a saúde e a de seus familiares. O médico de família, no sentido literal da expressão, último remanescente de uma espécie hoje em extinção.
Gordinho, baixinho, cabeleira totalmente branca, rosto vermelho (comia muita pimenta), olhar suave por trás de grossas lentes dos óculos aro de tartaruga, o médico era pessoa tranquila, voz pausada e baixa, saindo-lhe da boca quase num murmúrio. Conquistava imediatamente as pessoas, transmitindo confiança e segurança quando falava. Era o tipo de pessoa de quem todo mundo gostava logo ao primeiro contato.
Vendo que Argemiro acordara, as pessoas pararam de conversar, dirigindo o olhar para o paciente.
Martins aproximou-se da cama, segurando carinhosamente a mão direita do compadre. Perguntou-lhe, com voz doce:
–E então, meu amigo, como está?
Argemiro apertou com força a mão do médico, transmitindo-lhe pelo gesto a mensagem de que estava bem, pelo menos nas condições em que se encontrava.
Martins olhou para a mulher e os filhos do magistrado. Disse-lhes, a mesma voz suave, em tom afetuoso:
– Vocês aí, todos para fora. Quero ter uma conversa de homem para homem com o paciente.
O quarto esvaziou-se rapidamente.
“Paciente” – pensou Argemiro, esboçando um leve sorriso. “Não havia palavra mais apropriada para quem estava internado em um hospital. O pobre do doente tinha que ter paciência realmente para agüentar tudo aquilo: a comida líquida (soro), os exames que pareciam intermináveis, a imobilidade irritante, ser virado e revirado de um lado para outro, tomando banho de gato pelas mãos das enfermeiras curiosas e com risinhos cheios de malícia, o uso de um tal de compadre para urinar. Enfim um perfeito inútil...”.
Martins começou:
– Bem, eu sei que o Dr. Freitas, o neurocirurgião que te operou, já conversou contigo e te explicou a gravidade da situação. O teu derrame foi muito violento e afetou partes importantes do cérebro. Infelizmente, algumas delas, de forma irreversível. Os exames a que você se submeteu, depois que saiu do coma, não foram nada animadores. A previsão, infelizmente, é que você não consiga recuperar os movimentos da perna, e, talvez, do braço esquerdo. Foi um verdadeiro milagre, ninguém sabe explicar direito, como você consegue ter movimentos no outro braço.
Fez uma longa pausa, tentando encontrar alguma reação na expressão sem vida do rosto do amigo. Prosseguiu:
– Com o tempo, vamos tentar colocá-lo sentado numa cadeira de rodas para que você possa ter uma melhor locomoção. Uma enfermeira vai ter que ficar sempre do teu lado, pelo menos nos primeiros meses. Você vai ter que se submeter a sessões intensas de fisioterapia. Talvez, uma ida aos Estados Unidos para tentar um tratamento mais especializado.
Concluiu com alívio, como se estivesse tirando um peso das costas:
– Bem, isso tudo depois que você sair do hospital, o que deve demorar, pelo menos, mais uns quinze dias.
Martins sabia que Argemiro nunca gostou que lhe escondessem nada sobre seu estado de saúde. Submetia-se regularmente, uma vez por ano, a um “check-up” completo, e Martins nada notara de anormal em seus últimos exames. Percebeu que o amigo andava mais tenso, mais agitado após a aposentadoria, mas não deu maior importância, já que, pelo resultado dos exames, nada havia que pudesse preocupá-lo. Daí, também para ele, a surpresa do derrame que o atingiu.
Deu-lhe um tapinha na palma da mão direita.
– Mas, você vai ultrapassar tudo isso. Vai tirar de letra. Eu te conheço bem.
Argemiro olhava para o médico. Olhar vazio, perdido, sem expressão. Não era um olhar de surpresa, nem de desânimo. Talvez, muito mais de desesperança, de entrega, como se tudo estivesse acabado para ele.
Agora, não tinha mais ilusões. Seu médico de confiança, seu amigo de tantos anos, padrinho de seu filho, confirmara-lhe todos os temores. Estava paralítico, paraplégico, tetraplégico, sei lá o quê. Seu destino seria ficar estendido numa cama para o resto da vida.
Mas, tinha sido melhor assim.
Pelo menos, sabia o que tinha realmente acontecido, não ficaria criando falsas ilusões, esperanças vãs.
Teria que pensar, daí para frente, em como adaptar-se à sua nova realidade. Tentar, da melhor forma possível, com ela conviver.
Martins, levantando-se, encerrou a conversa:
– Bem, meu amigo, coragem. Você vai precisar. Já vou embora, tenho que ir para o consultório. Se precisar de alguma coisa, manda ligar pra mim. Vou chamar Marilda. Tchau, eu volto amanhã.
* * *
O jovem juiz ia ficando mais maduro, mais experiente, mais senhor de si.
Acompanhou de perto toda a grande transformação por que passaram o Rio de Janeiro e o Brasil durante aquelas quase quatro décadas em que exerceu a magistratura.
A capital federal acabou mudando para Brasília, perdendo o Rio o “status” de que gozava até então, o de centro das decisões mais importantes do País. Transformou-se em Estado da Guanabara e, por um ato de força, proferido durante a ditadura militar, enfraqueceu-se ainda mais politicamente. Depois da fusão com o quase falido antigo Estado do Rio de Janeiro, passou a ser a capital de um novo Estado, fraco e sem perspectivas, que nunca mais voltou a ter a importância e o prestígio de outros tempos. Parecia até que havia uma intenção oculta de vingança contra a cidade do Rio de Janeiro, por ter sido, durante tanto tempo a capital intelectual e política do Brasil.
A cidade modificou-se bastante naqueles quarenta anos.
Foram feitas obras gigantescas, transformando radicalmente o perfil da cidade. Algumas úteis, outras apenas suntuosas, sem maiores benefícios para a população: Aterro do Flamengo, Túneis Rebouças e Dois Irmãos, Ponte Rio-Niterói, duplicação da avenida Atlântica. A cidade expandia-se em direção à Barra da Tijuca e Recreio dos Bandeirantes, até então simples areais desabitados.
Por outro lado, multiplicaram-se as favelas, o índice de criminalidade subiu assustadoramente. Assaltos a banco em plena luz do dia, seqüestros, quadrilhas organizadas, crimes de colarinho branco, fatos inimagináveis de acontecer há duas, três décadas atrás. Os problemas sociais, desemprego e miséria, menores abandonados, tornaram-se a grande preocupação da sociedade.
No plano nacional, eleição e renúncia de Jânio, “o homem da vassoura”. A posse tumultuada de João Goulart, depois de uma tentativa frustrada de implantação do parlamentarismo. A Revolução de 1964, dita “Redentora”, que brindou o País com 21 Anos de ditadura militar, com o Congresso Nacional e o Poder Judiciário funcionando apenas para manter as aparências de que éramos uma democracia, mas sem qualquer independência para legislar ou julgar. Foi a fase mais negra da nossa história recente, o período das torturas, prisões arbitrárias, decretos-lei, quando o poder militar fez o que quis deste pobre País (“não serão objeto de apreciação pelo Poder Judiciário...”, frase habitual dos textos dos famigerados Atos Institucionais), colocando-o numa posição de descrédito perante as outras nações. Depois, cansados de brincar de ser governo, reconhecendo sua própria incompetência e mediocridade para o desempenho daquela função, abandonaram-no à sua própria sorte, qual barco sem rumo, à deriva. Aí simplesmente disseram: “Civis, nós lhe devolvemos o poder, como uma suprema concessão. Façam bom proveito dele... Mas, não se esqueçam, estaremos sempre alertas para a defesa da democracia, dos bons costumes, da família e da Pátria...”.
Infelizmente, os governantes que se seguiram tornaram a emenda pior que o soneto. Um, demagogo e comprometido ainda com os militares, dos quais havia sido aliado. O outro, totalmente desequilibrado, tresloucado, megalômano, quase beirando à loucura, envolveu-se em diversos escândalos, que culminaram com o seu “impeachment”, sendo mandado para Miami para gastar o dinheiro que confiscou do sofrido povo brasileiro, contando, para isso, com a valiosa colaboração da ministra “Besame Mucho...”.
Só mesmo aqui no Brasil... Depois, alguns falsos patriotas, peitos estufados, ficavam indignados quando uma autoridade estrangeira afirmou que este não era um País sério. E, extravasando sua indignação, querendo demonstrar um falso patriotismo, exibiam em seus veículos adesivos com dizeres como “BRASL, AME-O OU DEIXE-O...”.
Bem, ao menos restou o consolo de que fora o povo quem os escolhera. Se o fizera mal, que arcasse com as consequências da má escolha. Essa, a grande vantagem da democracia... Penitenciar-se pelos erros cometidos...
O Tribunal de Justiça construiu o novo prédio, na Av. Erasmo Braga, em frente ao antigo, que funcionava já sem condições de suportar o imenso movimento diário e a multiplicação de varas. Infelizmente, como quase tudo que acontece no Brasil, obra apressada e com atraso de no mínimo 30 anos, tornando-se, em pouco tempo, construção ultrapassada, exibindo defeitos de estrutura e de funcionalidade.
Novas varas foram criadas, bem como os Tribunais de Alçada, o Cível e o Criminal. Também, em pouco tempo, mostraram-se insuficientes no sentido de desafogar a máquina judiciária, já que o número de processos crescia em progressão geométrica em relação aos novos juízes aprovados em concurso. O brasileiro, povo pobre e sofrido, bem demonstrava o quanto estava carente de que se fizesse justiça aos seus direitos constantemente violados...
Em outros setores, o progresso avançava rapidamente. O homem já conseguira pisar na lua, a televisão passou a ter cores, os satélites artificiais proporcionaram grande avanço no campo das comunicações. Já na década de 90, finalmente, a Justiça foi informatizada, o computador substituindo a máquina de escrever, aquela que havia sido a grande inovação do Poder Judiciário, em meados dos anos 50. Realmente, depois dessa grande novidade, praticamente a Justiça estacionou, não mais se modernizou.
No campo da medicina, transplante de órgãos, cirurgias sofisticadíssimas, raio lazer, tomografias, bebê de proveta, pílula anticoncepcional. Por outro lado, o surgimento da AIDS, como doença fatal, o grande mal do final do século.
Infelizmente, mesmo com todos esses avanços da medicina, no Brasil ainda se morria de fome, de subnutrição, continuando bastante alto o índice da mortalidade infantil.
Nos esportes, Brasil, finalmente, tetra campeão do mundo no futebol, bicampeão no basquete, valores novos surgindo no vôlei, natação, tênis, atletismo, etc...
Fora isso, a moda dos biquínis, sunguinhas, topless, a popularização da camisinha e dos motéis, a introdução do divórcio em nossa legislação, o reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento.
Quarenta anos de sua vida... Quase meio século... “Quanta coisa acontecera”, divagava Argemiro, matutando com seus botões...
* * *
Conhecera Marilda num baile da faculdade.
Cursava o quinto ano, formar-se-ia daí a quatro meses.
Naquela época já trabalhava na PANAIR e morava na pensão do Catete, na rua Bento Lisboa.
Corria o ano de 1951.
Irmã de Alfredo, seu colega de turma, era uma moça atraente, no vigor de seus 20 anos. Filha de família tradicional de Niterói, concluíra há pouco o curso normal, destino final das moças que conseguiam estudar, naquele tempo. Já lecionava numa escola primária no Ponto Cem Réis, no bairro do Fonseca.
Era baixa, olhos negros, brilhantes, cabelos ondulados por força do “permanente”, método usado naquele tempo para fixar a ondulação. Tinha um belo sorriso, dentes bem alvos, que cintilavam quando abria a boca. Também tinha uma boa conversa, era um papo agradável.
Começaram o namoro como não querendo nada um com o outro. No início, apenas uma amizade, que se foi solidificando com o passar do tempo. Argemiro não queria assumir nenhum compromisso sério naquele momento, tinha que pensar primeiro em definir seu futuro.
O namoro foi-se arrastando mornamente, ora em encontros em bailes no Regatas ou no Central, os dois clubes mais tradicionais de Niterói, ora em visitas que Argemiro fazia a Alfredo para estudarem juntos para as provas finais da faculdade.
Niterói, àquela época, era uma cidade tipicamente interiorana, provinciana mesmo, apesar de ser a capital do então Estado do Rio de Janeiro. Era considerada como cidade satélite da Capital da República, ou cidade-dormitório, já que a maioria da sua população trabalhava no Rio e dormia em Niterói.
A família de Marilda morava em Icaraí, o bairro mais elegante da cidade, no início da rua Lopes Trovão, perto do antigo trampolim que existia na praia. Argemiro conhecia bem o local, pois após ingressar na faculdade, quando ainda morava na pensão do Ingá, costumava remar no Regatas Icaraí. Ali residiam as famílias mais abastadas da cidade, bem como as de classe média alta. Em Icaraí, logo no início da praia, estava o imponente edifício do Cassino, que fora desativado há pouco tempo, com a proibição do jogo pelo governo do Marechal Dutra. Existiam, ainda, vários casarões à beira-mar e nas ruas perpendiculares e paralelas à bela orla marítima, de areia alva e ondas tranqüilas.
Uma vez por semana, geralmente aos sábados, Argemiro atravessava a baía da Guanabara, na velha barca da Cantareira. Em Niterói, pegava o bonde da linha 4, o Canto do Rio, dirigindo-se à casa de Alfredo. Lá, depois de estudarem, ficava batendo papo com Marilda, às vezes uma voltinha na calçada da praia. Iam até o Cassino Icaraí ou à Pedra de Itapuca, dali retornando até o Canto do Rio, no final da praia, onde o bonde fazia a volta para retornar ao centro da cidade.
O pai da moça era médico conceituado em Niterói e o avô, também médico, era até nome de rua da cidade. A mãe, professora do Liceu, o melhor colégio do Estado. Deviam estar beirando os cinqüenta anos, ele um pouco mais velho. Pareciam gostar muito de Argemiro, a quem recebiam sempre com alegria, por ocasião das visitas semanais. Cumulavam-no freqüentemente com gentilezas, convidavam-no para almoçar. No fundo, admiravam a força de vontade e a coragem do rapaz, que decidira largar o interior pobre em que vivera para enfrentar a vida numa cidade maior, estudando e trabalhando.
Em pouco tempo, já era íntimo da casa, acompanhando às vezes a família em passeios que faziam a Petrópolis, onde tinham uma casa de veraneio.
O namoro entre os dois jovens tornou-se consequência natural desse relacionamento contínuo. Além disso, Argemiro gostava realmente de Marilda. Era bonita, inteligente, tinha uma boa conversa. Podia não estar perdidamente apaixonado, mas tinham muitas afinidades e a moça o atraía.
Reparava que o mesmo parecia acontecer com ela. Sempre serena, tranquila, nunca elevava o tom de voz. Não demonstrava também arroubos de paixão em relação a ele, mas parecia gostar do rapaz. Como seus pais, nele admirava sua luta pelas coisas que queria conquistar, sua tenacidade em busca de seu ideal de vida.
Decorrido aproximadamente um ano daquele namoro levado em banho-maria, Argemiro decidiu ficar noivo de Marilda. Já estava formado, tinha um emprego razoável, estava na hora de constituir família. E ela parecia ser a mulher ideal para seus planos de casamento.
O matrimônio ocorreu um ano depois. Foi uma cerimônia concorrida, à qual compareceu a fina flor da sociedade niteroiense. Além dos pais de Argemiro e alguns familiares, também desceram a serra vários amigos seus de Nova Friburgo.
O jovem casal foi morar num apartamento alugado no Rio Comprido, na avenida Paulo de Frontin (à época, sem o horrendo elevado a manchar-lhe a beleza da copa das árvores frondosas e onde havia ainda aquele clima de tranqüilidade e silêncio).
Marilda, apesar de ter conseguido vaga para lecionar numa escola do Rio, em pouco tempo largou o emprego, o que coincidiu com a gravidez de Gabriel. Seria só dona de casa, cuidando do filho e dos afazeres domésticos, como convinha a uma senhora casada daqueles tempos.
O casal entrou na rotina do dia-a-dia da vida conjugal. No início ainda saíam um pouco, iam a um cinema ou a um teatro, jantavam fora. Entretanto, depois do nascimento de Gabriel, quando Argemiro decidiu estudar para o concurso de juiz, os passeios e saídas de fim de semana tornaram-se mais raros. Passados alguns meses, deixaram de acontecer. Argemiro trancava-se em seu quarto todos os sábados e domingos, deitado em cima de um livro. Só saía dali para as refeições e o banho. Durante a semana, saía de casa pouco depois das seis da manhã, só retornando por volta das onze da noite. A PANAIR, o Fórum e o escritório ocupavam todo o seu dia. Sempre com um livro na mão, estudava na condução de casa para o trabalho e vice-versa. Qualquer momento livre que tinha, estava com o livro aberto à sua frente. Seus sonhos eram povoados por Nelson Hungria, Basileu Garcia, Frederico Marques e outros expoentes do Direito da época.
Marilda suportava tudo com resignação. Com pouco mais de 25 anos, já se sentia uma mulher madura, calejada para os embates da vida, trancada dia após dia no apartamento do Rio Comprido. Longe do pai, da mãe, dos amigos de juventude que deixara em Niterói.
No Rio, ela não conhecia praticamente ninguém. Argemiro não era muito de fazer visitas, não tinha muitos amigos. De vez em quando recebiam os pais dela, mesmo assim, muito raramente, quando eles se dispunham a fazer a travessia de barca de Niterói para o Rio, na época uma verdadeira excursão de um dia. A distância entre Icaraí e Rio Comprido era enorme, gastava-se quase quatro horas para ir, outras tantas para voltar. Era bonde em Niterói, barca e depois bonde outra vez no Rio. As esperas eram intermináveis, o dia ia logo todo embora.
Alfredo, seu irmão, agora também casado, aparecia de vez em quando com a mulher. Mas, eram visitas esporádicas, que só aconteciam por ocasião de um aniversário, do batizado de Gabriel, em momentos especiais.
Marilda sempre foi compreensiva, poucas vezes abria a boca para reclamar de alguma coisa. Ia acumulando dentro de si toda aquela tristeza de estar perdendo a juventude aos poucos, trancada dentro de casa, cuidando do filho e das tarefas domésticas. Ao menos, quando dava aula, divertia-se um pouco, via coisas novas, conhecia outras pessoas. O contato com os alunos sempre a atraiu, gostava muito de ensinar. Mas, nem pensar, não iria deixar Gabriel ser criado por uma babá, aquilo era seu dever de mãe.
“Ora bolas, do que estava reclamando, a mulher nascera mesmo para casar e criar os filhos”. Pelo menos, esse era o pensamento dominante naqueles anos da metade da década de 50...
Compreendia e apoiava o sacrifício do marido.
Argemiro lutava, dava tudo de si, acordava cedo, dormia tarde, tudo para proporcionar segurança e maior conforto à família. Mas, puxa vida, será se não sobrava algum tempo para ela e para o filho? Estaria condenada a ver passar irremediavelmente aquela fase de suas vidas sem tê-la aproveitado, sem dela ter usufruído? Sabia que aquela época, enquanto eram jovens e cheios de vida e saúde, não retornaria nunca mais. Quando envelhecessem, já não teriam mais ânimo e disposição para aproveitar a vida, viajar, passear, estarem juntos em corpo e espírito... Ficariam recolhidos em casa, vendo os filhos crescidos viverem suas próprias vidas, enquanto a eles só restaria a leitura de um bom livro, ouvir o rádio ou ver os programas de televisão, que agora já se espalhava pelo Brasil.
O jovem advogado percebia a tristeza da mulher. Procurava animá-la:
“– Olha, isso tudo vai passar logo. Estou plantando hoje para colher amanhã. Você não quer morar em casa própria, viver melhor no futuro?”.
Concluía, em tom de voz solene, como se estivesse fazendo um discurso perante um tribunal:
“– O sacrifício de hoje resultará na felicidade do dia seguinte”.
Marilda apenas resmungava, sem que o marido ouvisse:
“– Como esse dia seguinte demora a chegar...”.
Acabou se conformando, resignada. Ia fazer o quê?
O tempo passou. Argemiro foi aprovado, depois empossado... e tudo continuou na mesma.
Marilda via o marido trazer pilhas de processo para casa, como se fossem troféus conquistados após violenta batalha. Dia após dia, mês após mês, ano após ano... Ficava debruçado sobre aquele montanha de papel nos fins de semana, a cama cheia de livros. Igual, sem tirar nem pôr, como meses atrás, quando se preparava para fazer o concurso...
Depois, nasceu Viviane (Argemiro sorriu interiormente, em seu devaneio de tetraplégico). Pensou: “Como é que achou tempo para conceber a filha?”.
Marilda, envelhecendo a cada dia que passava, a rotina do lar desgastando-a mais e mais, cansada de tanto dialogar com as paredes do apartamento.
Argemiro, mais uma vez, procurava consolá-la:
“– Meu bem, calma, isso vai passar logo, te prometo. Quando eu for promovido a juiz titular, vou poder organizar melhor o serviço, não vou ficar pulando de vara em cada a cada dois meses”.
Vã promessa... E, tome sentença, despachos, decisões. Inconscientemente, transformava-se naquilo que sempre procurou combater: uma máquina de decidir processos, automatizado, perdendo, sem perceber, o contato com as pessoas, com o cotidiano do dia-a-dia de um cidadão comum.
Sua vida era só trabalho, afastou-se dos amigos, quase não brincava com os filhos ou saía para se divertir com a mulher.
Apesar de lutar contra esse afastamento da realidade social, esforçando-se por estar sempre em contato com as pessoas de todas as camadas da população, percebia que, inconscientemente, mais e mais se isolava a cada dia que passava.
No bonde e, mais tarde, nos lotações e ônibus, era olhado de lado, já que quase sempre era uma das poucas pessoas a usar terno e gravata naqueles transportes coletivos, o que, por si só já constituía um sinal exterior de diferença de classes.
Adivinhava o que os outros deveriam estar pensando quando o olhavam de lado, todo engravatado, dentro do seu terno:
“– Esse aí deve ser metido a importante, dentro de sua roupa toda elegante. Deve ser um doutor qualquer”.
Sentia-se como um corpo estranho no meio daquelas pessoas simples, humildes, suadas, camisas abertas no peito, roupas surradas e modestas, acotovelando-se em pé, na condução lotada.
“Ora, diabos – pensava Argemiro – que culpa tenho eu de ser obrigado a usar terno e gravata para ir trabalhar? É a função que assim o exige. Além do mais, não tenho dinheiro pra comprar um carro ou andar de táxi”, procurava justificar-se consigo mesmo.
Os vizinhos, o jornaleiro, o padeiro, todos o cumprimentavam cerimoniosamente:
“– Bom dia, doutor, como vai? E a família?”
Não lhe davam, entretanto, maiores intimidades. Sempre que procurava iniciar uma conversação mais demorada, notava que as pessoas se retraíam, aparentemente intimidadas, talvez com um receio inexplicável de uma maior aproximação.
Assim que conseguiu economizar algum dinheiro, comprou um Volkswagen usado e passou a ir de carro para o trabalho.
* * *
Era realmente impressionante como os juízes acabavam por se isolar da sociedade. Acabavam formando um círculo restrito de amizades, composto, na maioria, também por outros juízes, promotores, alguns poucos advogados.
Os antigos amigos, até mesmo alguns parentes, acabavam por ficar esquecidos, em outro mundo distante do deles. Alguns até, por um escrúpulo exagerado, afastavam-se espontaneamente, com receio de alguém pensar que estavam querendo levar alguma vantagem da antiga amizade ou do parentesco.
Era assim o perfil da sociedade carioca no final da década de 50, início dos anos 60, superpreconceituosa e elitista. Hoje, apesar de uma grande evolução nesse sentido, a figura do juiz ainda é vista como ave rara no meio do corpo social.
Argemiro notava nitidamente essa diferença de tratamento e sentia-se mal com isso. Parecia que as pessoas tinham receio de uma aproximação mais íntima, como se os juízes sofressem de uma doença transmissível e incurável.
Os próprios acusados, em processos criminais, sempre que se referiam aos juízes, faziam-no como se ele fosse um ser de outro mundo, quase um extra terrestre. Costumavam comentar entre eles:
“– Hoje eu vou lá no Fórum pra ser interrogado pelo homem da capa preta...”
Atualmente nem tanto, mas em décadas anteriores, o juiz não podia ser visto em público de short e sem camisa, ou tomando um chopinho com os amigos. Dele se tinha a imagem do homem severo, de rígidos costumes, sempre debruçado sobre uma pilha de processos, impedido de ter uma vida social de um cidadão comum.
Caso assim não agisse, era logo mal falado, acostumado que estava o homem do povo a vê-lo sempre de toga ou de terno e gravata, circunspeto e sério. Era o símbolo da austeridade, o exemplo para os outros membros da sociedade, não lhe sendo permitidas expansões maiores de alegria.
“Hoje, quem diria, tem magistrado até desfilando em escola de samba no carnaval...”, divagava Argemiro.
Assim sendo e também porque quase sempre tinham trabalho para fazer em casa, os juízes pouco saíam para divertimentos ou reuniões sociais. Restringiam-se àquele pequeno grupo de amigos mais íntimos, que se reuniam de vez em quando, nas poucas oportunidades de folga que o trabalho lhes permitia.
Argemiro contava nos dedos as raras vezes em que conseguira jantar com um casal amigo ou gozar por inteiro os dois meses de férias a que tinha direito anualmente. Quase sempre tinha serviço atrasado para colocar em dia, quando não interrompia suas férias para substituir um colega que ficara doente.
Os processos nunca paravam de ser distribuídos e Argemiro se desdobrava para não deixá-los atrasar. Como era verdadeira aquela frase que dizia que “o povo tem sede de justiça...”. E, para o povo, os juízes representavam o poço de salvação, onde ia buscar a água de que tanto necessitava para saciar a sede de tantas mazelas contra ele praticadas. Infelizmente, poço sem fundo...
Dessa forma, Argemiro adiava sempre os planos de viagens e férias calmas e tranquilas.
Tinha consciência de aquele distanciamento do dia-a-dia do cidadão comum era tremendamente prejudicial para o juiz, que se automatizava cada vez mais, tendendo a perder o senso de humanidade e de sensibilidade que deveria nortear as decisões mais justas. Acabava-se transformando, efetivamente, em um escravo da lei, que nem sempre é perfeita ou a mais adequada ao julgamento de cada caso.
Pensava às vezes, não sem uma ponta de amargura, se não seria mais prático colocar cada processo no programa de um computador e deixar que o mesmo desse a solução para a causa. Pois, infelizmente, era naquilo que os juízes se estavam transformando, máquinas de julgar.
Agora, ali, naquele quarto de hospital, incapaz de movimentar-se, aos 71 anos de idade, reconhecia como fez sofrer a mulher e os filhos, o quão distante deles ficou durante toda sua vida.
Gabriel e Viviane nunca tiveram, efetivamente, a presença do pai junto a eles, sempre ocupado para ter tempo de curtir alguns momentos junto dos filhos. Ou, até mesmo ouvi-los, quando chegaram à adolescência e precisavam conversar com alguém mais experiente. Em resumo, eles cresceram, tornaram-se adultos, tendo junto deles a presença física do pai, mas, ao mesmo tempo, sua ausência espiritual. Quando Argemiro abriu os olhos, Gabriel já eram um homem feito, Viviane já estava casada. O quanto lamentava não ter dialogado mais com os filhos, não ter com eles compartilhado suas dúvidas e incertezas.
Marilda, coitada, sempre calada, resignada com seu destino, via o tempo passar, os cabelos brancos cobrindo-lhe a cabeça, o corpo a engordar, para tornar-se, afinal, uma senhora matrona, esposa e fiel companheira do prestigiado desembargador Ventoni.
“Casal feliz”, pensava Argemiro, amargurado...
* * *
Acabou comprando o apartamento em que morava de aluguel, aquele mesmo do Rio Comprido.
Já estava acostumado com o bairro, habituara-se a ele, naquela época ainda calmo e tranquilo, bem diferente do inferno de barulho e movimento de veículos depois da construção do elevado da Paulo de Frontin.
Depois de passar quase onze anos como juiz substituto, finalmente foi promovido a titular da 3ª Vara Cível, em janeiro de 1970. A rotina de trabalho continuou a mesma, mas as condições eram melhores. Pelo menos, agora, não teria que ficar rodando para lá e para cá, poderia organizar melhor o serviço, ter um maior controle sobre o Cartório.
O número de processos, entretanto, continuava enorme, e, nem a ajuda eventual de um juiz auxiliar conseguia amenizar aquele ritmo louco de trabalho. Realizava audiências diariamente até sete, oito horas da noite, voltando para casa exausto. Sábados e domingos, mais processos para estudar, para decidir.
Sua promoção fora por antiguidade. Fora ultrapassado por vários outros colegas que estavam atrás dele na respectiva lista de classificação. Isso, na linguagem da carreira, chamava-se “levar carona”.
Claro, nunca bajulara ninguém, nunca pedira nada a nenhum desembargador ou político para entrar em listas de promoção por “merecimento”, que considerava uma das maiores aberrações do serviço público no Brasil.
Sentia até vergonha de ser magistrado quando via alguns de seus colegas mal classificados na lista de antigüidade rastejarem diante de desembargadores, deputados ou figuras importantes, pedindo votos ou a interferência para que fossem incluídos nas listas de promoção ... “por merecimento”. Antigamente, era elaborada uma lista tríplice dos candidatos à promoção por esse critério, pelo Tribunal de Justiça, a qual era submetida ao Governador do Estado para a escolha do nome a ser promovido.
Na realidade, naquela época, os juízes bajuladores tinham que passar por dupla humilhação: a primeira, nas peregrinações aos gabinetes dos desembargadores que elaboravam a lista, para nela serem incluídos. Para eles, faziam uma demonstração de suas virtudes e seus méritos (ou o parentesco com alguma figura importante); a segunda, junto ao Palácio do Governador, quando ficavam humildemente aguardando em salas de espera até que o Chefe do Executivo se dispusesse a atendê-los. Então, em cenas grotescas, procuravam demonstrar a políticos e assessores suas inúmeras qualidades para o preenchimento do cargo que almejavam.
Era uma verdadeira corrida aos gabinetes de deputados, vereadores, qualquer político de qualquer partido, onde aquele tipo de juiz tentava convencê-los de interceder em seu favor, de que ele era realmente o nome “merecedor” de ser indicado para a disputada promoção. Nessa luta, não hesitavam em falar mal de outros colegas que também almejavam a vaga, colocando até esposas e parentes na busca de uma influência aqui, outra ali.
Argemiro chegou a saber de uma estória de um juiz, do seu concurso aliás, mas mal classificado na lista de antiguidade. Como era também fazendeiro no interior do Estado, mandava um leitão para a casa de cada desembargador por ocasião do Natal. Argemiro, esboçando um sorriso, imaginava o ridículo da cena do desembargador abrindo a porta de sua casa ou apartamento e deparando-se com o empregado da fazenda do juiz candidato à promoção, trazendo um leitão morto e esfolado pendurado nas costas...
Ah!, não podia esquecer... havia também um cartãozinho desejando-lhe um Feliz Natal, extensivo “à honrada e digníssima esposa” e o singelo pedido para que não se esquecesse do seu nome quando da elaboração da lista de “merecimento”...
Felizmente, essa situação hoje melhorou um pouco, com a modificação do critério da promoção por merecimento. Apesar de ainda não ser a solução ideal, hoje, pelo menos, o candidato deve estar colocado até o vigésimo lugar na lista de antiguidade, e a escolha é feita pelo Presidente do Tribunal, ao apreciar a lista tríplice elaborada pelo Órgão Especial do mesmo Tribunal. Reduziram-se, desta forma, as puxações de saco que o “merecedor” da promoção tem que fazer...
Evita-se assim, ao menos, a interferência de outro Poder na esfera administrativa do Judiciário, bem como a cínica ultrapassagem de juízes bajuladores, classificados nos últimos lugares da lista e, até aprovados em concursos posteriores, em detrimento daqueles bem colocados na referida lista, mas que não têm vocação para puxa-saco e querem manter íntegra sua independência no ato de julgar.
Ou, seria alguém ingênuo de acreditar que o deputado ou desembargador que atendesse a um pedido de um juiz, exercendo sua influência na “merecida” promoção, dele não viesse cobrar posteriormente o favor concedido, com juros e correção monetária? Ou mesmo, talvez, quem sabe, por ocasião das eleições, quando aquele mesmo magistrado viesse a funcionar como juiz eleitoral?
Era o famoso “toma lá, dá cá”, tão corriqueiro nos altos escalões do meio político deste nosso pobre país.
Aqueles juízes bajuladores devem ter ficado um tanto ou quanto frustrados com a modificação das regras para a promoção por merecimento. Afinal de contas, agora, têm eles menos sacos para puxar...
E, – Argemiro sorria consigo mesmo – ainda vinha o robusto político do Nordeste, arrotando prepotência do alto de sua volumosa e imponente barriga, defender a tese de que seria necessário um controle externo da magistratura...
Realmente, o que desejavam eles, era a total submissão do Judiciário aos seus interesses pessoais, poder controlá-lo e influenciar suas decisões com a troca recíproca de favores. “Toma lá, dá cá”...
Ou, talvez, copiando o mau exemplo dos Estados Unidos, onde juízes, promotores e até Delegados de Polícia (os xerifes de lá) são eleitos pelo povo, numa aparente e falsa demonstração de democracia. Nesse sistema, não se indaga da capacidade intelectual ou das qualidades morais do candidato ao cargo, o que prevalece é a sua habilidade de fazer o jogo da política. Talvez assim consigamos ter aqui no Brasil outros caciques indígenas de gravador a tiracolo, empreiteiros desonestos, pistoleiros do Norte, Nordeste ou de outras regiões do País, habituais ganhadores da loteria, outro Papai Noel a oferecer brindes aos eleitores, vendo seus nomes serem sufragados nas urnas e sendo eleitos como magistrados, promotores de Justiça, delegados de Polícia...
Aí sim, o circo estaria definitivamente armado, pronto para funcionar, ficando o Poder Judiciário manejado, tal como marionete, pelo político astuto, chefe de curral eleitoral por ele controlado, ou pelo coronel do interior, ainda não totalmente erradicado do cenário político brasileiro... Se hoje, quando se admite o juiz na carreira após rigoroso concurso público e verificação não menos rigorosa de sua idoneidade moral, já temos tantos carreiristas, imagine-se se eles fossem eleitos através do voto secreto do povo...
É claro que o Poder Judiciário apresenta, ainda, sérias imperfeições. A lamentável e triste disputa pela promoção por merecimento é uma delas. O nepotismo, mais outra.
Mas, aquele apontado como seu maior defeito, a morosidade, não é, com raras exceções, sua responsabilidade.
A insuficiência do número de juízes em relação à brutal e desumana quantidade de processos; a deficiência crônica de funcionários, esforçados e competentes que são em sua maioria, mas incapazes de darem conta do enorme volume de serviço; a legislação ultrapassada, não atualizada pelo Poder Legislativo; a falta de condições materiais para um razoável cumprimento de suas obrigações (presídios medievais, sistema penitenciário politizado e corrompido, polícia despreparada, técnica e estruturalmente, a baixa remuneração dos serventuários que acabam deixando a função pública em busca de melhores oportunidades no mercado de trabalho), estas algumas das principais causas da lentidão da Justiça. Aos Poderes Legislativo e Executivo, aos quais incumbiria dar ao Judiciário essas mínimas condições de trabalho, é que caberia essa responsabilidade.
Deles deveria ser cobrada a construção de novos presídios, que realmente procurassem recuperar os condenados; programas assistenciais, dentro e fora das prisões, quando delas saíssem aqueles que já cumpriram suas penas; aparelhamento e modernização da Polícia, com a introdução de técnicas atualizadas e científicas de investigação, arquivando-se definitivamente o famigerado pau-de-arara ou a tortura, como métodos de obter confissões, quase sempre desmoralizadas em Juízo e que resultam, invariavelmente, em absolvições por insuficiência de provas. Leis atualizadas e modernas, que tornem mais céleres a tramitação dos processos, seria este um dos primeiros caminhos a ser trilhado...
Por que não gravar as audiências em fitas de vídeo, para que o juiz que for proferir a sentença, se não for o mesmo que as tenha presidido, tenha uma melhor visão da prova testemunhal produzida, em vez de defrontar-se com depoimentos frios, impessoais, nem sempre espelhando fielmente o que a testemunha na realidade quis dizer? Por que não restringir o número de recursos cabíveis, muitos deles meramente protelatórios, e ampliar-se, facilitando-as, as execuções provisórias de sentenças?
Argemiro, entretanto, era contrário a uma inovação que se pretendia introduzir nos últimos tempos na legislação brasileira: as chamadas súmulas vinculantes, assemelhadas aos prejulgados de outros diplomas legais. Se adotadas, acabariam por se constituir em verdadeiro cerceamento à plena atividade jurisdicional e uma verdadeira afronta à independência dos juízes. Obrigados a seguir a orientação do Supremo Tribunal Federal em determinadas matérias, em especial aquelas de cunho político ou econômico, os juízes, na verdade, ficariam subordinados ao Executivo, já que, entre nós, os ministros da nossa mais alta Corte são de livre escolha do Presidente da República e, não raro, a nomeação recai em políticos ligados diretamente ao Chefe do Executivo. As súmulas vinculantes teriam força de lei, atribuindo-se ao Judiciário o poder de legislar, o que, evidentemente, seria inconstitucional.
Os políticos, entretanto, do alto de sua arrogância e prepotência, pouco se importam com isso. Querem é ter mais poder nas mãos, fazendo demagogia com a ingenuidade do povo, preferindo que este se mantenha analfabeto para melhor conduzi-lo ou maneja-lo. É só oferecer um churrasco ou um show de pagode numa comunidade pobre, que os votos chovem. Ou, então, ser diretor de um clube de futebol. Ou, ainda, dar presentinhos de R$1,99, na época do Natal. Podem, também, participar de um programa sensacionalista de rádio ou televisão que atinja a residência do pobre operário sofrido ou do biscateiro desempregado, que neles enxergam a solução para todos os seus problemas.
Conseguindo ser eleitos, logo viram as costas para o povo, participando de conchavos e alianças políticas. Aí, nomeiam não sei quantos assessores sem concurso (geralmente parentes, amigos ou correligionários), usufruindo de passagens gratuitas em aviões, apartamentos funcionais e outros benefícios sem despesas...
A ironia disso tudo é que alguns realmente acreditam que se sacrificam pelo povo, que são os verdadeiros representantes da sociedade oprimida, como se não fossem eles uma classe privilegiada, que ocupam lugares importantes na vida do País à custa da ingenuidade do povo que os elegeu.
Pelo menos, nesse aspecto, o Judiciário escapa ileso.
Seus representantes, os juízes, são admitidos através de rigorosos concursos públicos (nem tão rigorosos assim, em determinados Estados da Federação). Apesar de todas as más condições de funcionamento, conseguem distribuir justiça com dignidade e equidade, dirimindo diversos conflitos de interesses. Representa, o Judiciário, a última tábua de salvação a que recorrem aqueles que se sentem injustiçados ou ameaçados em seus direitos.
Com raríssimas exceções, a esmagadora maioria dos juízes é composta de pessoas sérias, dignas, honestas e independentes. É justamente essa independência, essa autonomia, que incomodam os membros e representantes dos outros poderes da nação.
Se conseguirem com ela acabar, como pretendem e ensaiam alguns despeitados, descontentes com sua altivez, cairá também o último baluarte da democracia, da liberdade, enfim, da dignidade humana.
Talvez o político rechonchudo do Nordeste, que já conseguiu eleger para o Congresso quase toda a família, dado o prestígio político de que goza em seu Estado de origem, acostumado ali a mandar e desmandar, e que agora se arvora em corregedor do Judiciário, devesse se submeter a exames de ingresso para a carreira política, que fossem tão rigorosos, árduos e exigentes como aqueles a que Argemiro foi submetido quando foi aprovado para a magistratura... Talvez não conseguisse demonstrar tanta eficiência como demonstra na obtenção de votos junto ao seu eleitorado de cabresto...
“É – pensava com melancolia o desembargador aposentado – tristes reflexões sobre o país que tanto amava...”.
* * *
Argemiro olhava para a mulher, sentada no sofá, parecendo cochilar.
“Como envelhecera...”.
Um sentimento de culpa o invadiu, sentia-se mal...
“Uma vida inteira desperdiçada. Talvez, se ela tivesse casado com outro...”.
Voltou às divagações sobre seu passado, agora mais próximas em sua mente...
Depois de ficar cinco anos na 3ª Vara Cível, foi removido para a 2ª Vara de Órfãos e Sucessões. Em 1978, conseguiu chegar ao Tribunal de Alçada, o Criminal, mais uma vez por antigüidade. Ali permaneceu até 1986, primeiro como vogal, depois como Presidente da 2ª Câmara.
Naquele ano, finalmente, foi promovido a desembargador, sendo designado para ter assento na 3ª Câmara Cível. Foi eleito Corregedor em 1991, 1º Vice-Presidente em 1993, Presidente do Tribunal de Justiça em 1995. Exerceu o mandato até 1997, quando voltou à 3ª Câmara Cível até sua aposentadoria compulsória, ao completar 70 anos, em fevereiro de 1998.
O tempo foi-se escoando lentamente, Argemiro nem percebia que envelhecia, os cabelos embranquecendo, depois caindo irremediavelmente.
Apesar de ainda continuar com um grande número de processos para relatar, bem como funcionar nas sessões da Câmara, Grupo de Câmaras, Conselho da Magistratura e Órgão Especial, o serviço tornou-se mais ameno, não tão extenuante como no período em que funcionou na 1ª instância.
Tempo livre, entretanto, nenhum. Desde 1980, estava preso às aulas da faculdade, na qual lecionava à noite. Era com grande satisfação que via, a cada novo concurso que era realizado para a magistratura, promotoria e defensoria pública, vários antigos alunos seus serem aprovados.
Os filhos, crescidos, já seguiam suas próprias vidas.
Marilda, conformada com seu destino, cada vez mais presa à casa, agora porque a velhice chegara e um reumatismo doloroso impedia que tivesse uma movimentação mais ativa. Dedicou-se a trabalhar para obras de caridade, passando o dia no telefone tentando conseguir donativos para orfanatos e asilos. Seus pais já haviam falecido. Alfredo, seu irmão, que se formara junto com Argemiro, não seguiu a profissão, sendo empresário em Niterói, onde vivia até hoje. Marilda o via muito raramente, em visitas esporádicas, uma ou duas vezes por ano. O contato maior era ainda com os filhos e netos, que iam almoçar às vezes com o casal, um domingo aqui, outro ali. Marilda chegara à triste conclusão de que a vida realmente escoara por entre seus dedos. Tinha inveja das mulheres de hoje em dia, tão independentes, que trabalhavam e tinham vida própria, sem se conformarem com a posição de meros satélites gravitando em torno dos maridos.
Ah!... mas sua época já passara, já ficara para trás... Hoje, tinha que conviver com suas dores nas pernas, nas costas, no pescoço...
Argemiro refletia, amargurado. Tinha consciência de que, mesmo sem querer, fora egoísta, acabara pensando muito mais em sua carreira, relegando a família a plano secundário. “Por que – matutava ele – as pessoas só fazem esse exame de consciência quando se sentem fragilizadas, como ele agora, naquela cama de hospital?”.
Mas, ora bolas, também por que fora escolher uma carreira que tanto dele exigiu e a ela tanto se dedicara? Tinha certeza de ter dado o melhor de si, de ter feito tudo o que estava ao seu alcance para bem distribuir a justiça.
Se não fora feliz, por vezes, perdia perdão a Deus, agora nesse momento de reflexão íntima.
Mas, estava tranquilo. Seus acertos acabaram sendo em maior número que seus erros. Aposentara-se com o reconhecimento de todo o meio judiciário, do Estado e do País. Publicara seis obras de Direito, todas muito bem acolhidas pela crítica especializada.
Deixara a magistratura sem máculas em sua carreira.
Teve retrato inaugurado na galeria dos Presidentes do Tribunal, ganhou placa de prata quando se aposentou.
Tinha orgulho de sua independência, mantida sem arranhão durante toda a carreira. Nunca se deixara intimidar por pressões ou pedidos de colegas ou de autoridades (principalmente durante o regime militar).
Jamais proferira uma decisão que violentasse sua consciência, o que lhe causou, às vezes, penosos aborrecimentos. A essas tentativas sempre reagiu com altivez, algumas vezes até com rispidez.
Chegou a fazer alguns inimigos entre desembargadores que funcionavam na mesma Câmara em que tinha assento. Não se conformava em proferir votos acomodados, os tristemente famosos “de acordo com o relator”, como se fosse uma vaca de presépio, apenas por comodismo ou por receio de desagradar o colega. Normalmente, quando funcionava como vogal, costumava pedir “vista” dos autos e, não raro, era voto vencido, o que desagradava profundamente o relator. Não se importava com as críticas ou comentários desfavoráveis:
“– O Ventoni é um chato. Pede “vista” de todo recurso só pra chatear, pra querer aparecer”.
Não, tinha ele plena consciência da responsabilidade de que estava investido e, o julgamento em 2ª instância, pelo menos em matéria de mérito, seria, quase sempre, o definitivo. Não podia proferir seu voto levianamente, sem estudar o processo. Lembrava-se de seus tempos de advogado, quando fazia uma sustentação oral perante o Tribunal e percebia que os vogais conversavam ou não prestavam atenção ao relatório feito pelo colega, num evidente desrespeito ao mesmo e ao advogado. Depois, calmamente votavam “de acordo com o relator”, sem saberem na realidade sobre o que estavam votando. Aquela indiferença com o direito alheio fazia com que ficasse indignado, vinda justamente de quem tinha a obrigação de zelar por sua fiel aplicação.
Por isso, tinha agora a consciência tranquila.
Enfim, dever cumprido...
* * *
Após a aposentadoria, sentiu bastante a mudança em sua rotina diária.
Acostumado a trabalhar praticamente desde a adolescência, do amanhecer até a madrugada, sentia agora falta do que fazer.
A ociosidade fora um terrível mal para ele.
Ficava desorientado dentro de casa, chegando a perturbar Marilda em suas tarefas domésticas. Levantava-se cedo (não estava acostumado a acordar tarde), às seis da manhã já estava em pé. Preparava o seu próprio café, simples como sempre o tomara, deixando a mulher descansar um pouco mais. Lia o jornal, que era deixado diariamente à sua porta e, por volta das nove horas, já procurava alguma coisa para fazer.
Lia um pouco, já agora não mais somente livros de Direito. Preparava as aulas da faculdade, fazia pesquisas para um novo livro que pretendia escrever.
Aconselhado por um juiz amigo, matriculou-se numa academia de ginástica, ali mesmo no Rio Comprido, onde ia duas vezes por semana, pela manhã. Fazer exercícios físicos fazia-lhe muito bem. Após, uma sauna ou uma ducha, que o revigoravam e davam-lhe a sensação de rejuvenescimento, de reposição de energias...
Aliás, orgulhava-se de, praticamente, nunca ter ficado doente mais seriamente ou de ter precisado tomar remédios com frequência. Umas vitaminas de vez em quando e nada mais.
Após o almoço, novamente o dilema: o que fazer?
Sentia-se vazio, angustiado, inquieto, uma sensação de inutilidade a dominar-lhe o espírito. Era a chamada síndrome da aposentadoria, da qual vários funcionários de qualquer carreira, civil ou militar e, por que não também os juízes, tinham verdadeiro pavor.
Acostumados a posições de direção, de comando, de poder nas mãos, viam-se, de uma hora para outra, despidos de toda aquela capa de autoridade com que já se haviam acostumado e que, segundo alguns magistrados, “já se incorporara às suas próprias personalidades...”. Quanta bobagem...
Aquela sensação de inutilidade, de desvalia, deixava-o inquieto, estressado, e, talvez tenha sido a causa principal do derrame.
Ah! O Poder...
Impressionante o que faz ele com o ser humano...
Enquanto em exercício, Argemiro acostumara-se com as pessoas à sua volta, tratando-o sempre com deferência, cumulando-o de obséquios e gentilezas.
Era “Excelência para cá”, “Meritíssimo para lá”, “Desembargador, deseja alguma coisa?”. Na fila do banco ou do elevador, sempre lhe davam a preferência, com mil reverências e salamaleques.
Depois de aposentado, a situação mudou um pouco.
Alguns lhe viravam o rosto, disfarçavam, fingindo não vê-lo quando com ele cruzavam na rua ou em qualquer outro local. Nas filas, ninguém lhe dava mais a vez, acabara-se sua importância, outro lhe ocupava o cargo, não tinha ele mais nenhuma influência.
Quantas vezes, quando já desembargador, seu gabinete era visitado por diversos juízes de 1ª instância e até do Tribunal de Alçada, em busca de seu apoio quando da elaboração da lista tríplice de promoção?
Agora, muitos desses mesmos juízes fingiam não reconhecê-lo, mudavam de calçada quando o viam na rua.
Lembrava-se do dia de sua posse, com a bajulação do pessoal de Friburgo... Quarenta e um anos atrás... Pouca coisa se modificara...
Ah! O Poder...
* * *
Gabriel sempre fora muito tímido, retraído mesmo.
Argemiro lembrava-se vagamente que, quando o menino devia ter uns três para quatro anos de idade, levava-o, nas poucas horas de folga que conseguia arranjar, a uma pracinha perto de casa
Ali, enquanto ficava sentado num banco lendo o jornal, o filho costumava andar em seu velocípede. Sozinho, não procurava brincar com as outras crianças. Às vezes, Argemiro o surpreendia falando consigo mesmo, como se divagasse e conversasse com um personagem imaginário, fruto de suas fantasias infantis.
Tentava puxar conversa com ele, interessá-lo por esportes e brincadeiras comuns às crianças de sua idade. Nada, o filho parecia alheio a tudo, respondia por monossílabos, era de pouca conversa. Gostava de ficar sozinho, recolher-se ao seu quarto e ali entrar em seu mundo particular. Fez natação num clube ali perto, Argemiro levando-o diariamente para as aulas, às sete da manhã. Mas, logo que aprendeu a nadar, não quis mais ir às aulas, fazer parte da equipe do clube, que competia no campeonato da cidade.
Argemiro ainda tentou matriculá-lo numa escolinha de futebol de salão. Ele foi à duas aulas, mas era tão ruim de bola, que o próprio professor comentou com Argemiro que era melhor ele procurar praticar outro esporte.
Na escola sempre fora bem, nem um gênio, nem um medíocre. Apenas regular. Formou-se também em Direito, mas sem muito entusiasmo.
Quando tinha uns sete anos, foi a Friburgo pela primeira vez visitar os avós paternos, que só via de vez em quando. Gostou muito da cidade, principalmente do pequeno sítio onde os avós viviam juntamente com seu tio Aristides, que permaneceu solteiro. Adorou a vida do campo, a lavoura e a pecuária. Sempre que estava de férias, ia para Friburgo e ali passava dois, três meses.
Acabou casando com uma moça da cidade, Adriana, e lá foi morar.
Sem ter nunca exercido a profissão de advogado, decidiu fazer o curso de Veterinária, concluindo o mesmo aos 29 anos de idade. Montou um pequeno consultório na cidade, que depois transformou-se numa próspera clínica.
Após a morte dos avós (“seu” Ventoni faleceu em 1980, a mulher em 84), Aristides, seu tio, convidou Gabriel para morar no sítio com ele, para ajudá-lo na lavoura e na criação de porcos e galinhas.
No início, Gabriel relutou. Mas, acabou concordando.
A casa, no sítio, era bastante grande, tinha lugar de sobra para todo mundo.
Mudou-se para lá em 1987, mas manteve o consultório no centro da cidade, bem na Praça Getúlio Vargas. Lá ia todos os dias, não era muito longe, quinze minutos do sítio, na Caledônia, até o centro.
Visitava o pai e a mãe, no Rio, uma vez por mês.
Atualmente, com mais de quarenta anos, havia se transformado num homem calmo, maduro, de poucas palavras e poucos amigos, projeção daquilo que fora na infância e adolescência.
Argemiro nunca conseguira penetrar-lhe a alma, saber realmente o que pensava, quais seus ideais, suas ambições de vida.
Passaram todo o tempo em que viveram na mesma casa e, agora, morando em cidades diferentes, sempre distantes um do outro, quase se tratando com uma certa cerimônia, sem aquela intimidade natural entre pai e filho.
Mais uma decepção para somar-se às lamentações de Argemiro.
“Como desejou ter sido amigo do filho, ser seu confidente, tomar com ele uma cerveja descontraída, ouvir-lhe os anseios, confortá-lo nas horas de necessidade (que nem soube se ele as teve ou não)...
Ah! maldita falta de diálogo...
Ah! miserável trabalho, que tanto absorveu sua existência...
Mas – prometeu a si mesmo – logo que pudesse, procuraria aproximar-se mais de Gabriel, visitá-lo com mais freqüência, passar uns dias no sítio. Se conseguisse um dia fazê-lo, se sobrevivesse àquele derrame, iria abraçá-lo fortemente, abraço com quarenta anos de atraso...
Promessas... promessas...
Como a imobilidade numa cama de hospital fornece tempo para as pessoas refletirem sobre suas vidas...
* * *
Era domingo, dia de visitas.
Foi uma verdadeira romaria ao quarto do paciente.
Colegas do Tribunal, promotores, advogados, serventuários, o diretor da faculdade, Gabriel e a mulher, os netos. O quarto estava sempre cheio, um entra-e-sai contínuo de pessoas, entrando alegres, tentando animar o doente, mas saindo desanimadas ante o quadro que presenciaram. Argemiro imóvel, sem falar, mexendo apenas a mão direita.
Gostou muito da visita dos netos, na parte da tarde.
Adorava as crianças. Rafael (filho de Gabriel), Maria Cristina e Fabiana (filhas de Viviane). Eram espertas, alegres, inteligentes.
Argemiro, depois da aposentadoria, procurava ficar mais próximo delas, talvez para compensar a distância que fora obrigado a manter dos filhos. Percebeu, entretanto, que os netos ficaram um pouco chocados, sem saber o que dizer, quando se depararam com o estado do avô.
O Dr. Martins também esteve no quarto. Conversou bastante tempo com Argemiro (este, escrevendo). Disse que sua situação estava na mesma, mas que, talvez na próxima semana, ele pudesse ir para casa. “Acompanhado de uma enfermeira e dos aparelhos que o mantinham vivo”, sentenciou.
“Boas notícias”, resignou-se Argemiro.
Em casa, ao menos, estaria livre daquele ambiente mórbido de hospital, sentir-se-ia mais à vontade. “Dos males, o menor”, pensou.
Já conformado com seu destino, Argemiro esperava, confiante, na melhor convivência possível com aquela situação. Sempre fora muito prático em todas as decisões que tomava na vida, nunca fora de se ficar lamentando, chorando sobre o leite derramado. Se determinada coisa não pudesse ser feita da forma que pretendia, procurava logo outra solução, outro caminho. Ao menos, estava lúcido, conseguia pensar com clareza... Poderia ler, escrever, ver cinema, televisão... Já pensava na fisioterapia, na cadeira de rodas, em qualquer meio que lhe permitisse uma melhor locomoção dentro de casa, quem sabe talvez até na rua...
No fim da tarde, só restava Marilda no quarto. Hoje seria ela quem iria dormir com o marido no revezamento que ela e Viviane se propuseram a fazer todas as noites.
Chamou a mulher para junto de si, com um aceno com a mão boa. Marilda sentou-se na cama, do lado direito. Argemiro apertou-lhe carinhosamente a mão esquerda, olhando fixamente para a mulher, como se lhe pedisse perdão pelos sofrimentos que lhe causara.
Ela, olhos doces e meigos, um certo ar de cansaço e melancolia, não conseguiu conter duas tímidas lágrimas que lhe rolaram pelo canto dos olhos. Olhava a expressão de impotência do marido, quase uma súplica, não conseguia sustentar seus olhos dentro dos dele.
Desviou o olhar, enxugou as lágrimas com a outra mão.
Alisou cuidadosamente os cabelos do marido, passando vagarosamente por entre os fios ralos os dedos enrugados.
Voltou a olhá-lo fixamente.
Ficaram assim, naquela contemplação serena, naquele silêncio que dizia tudo, um olhando para o outro, cena enternecida de dois velhos de mãos dadas, personagens de uma vida em comum de alegrias e tristezas, vitórias e derrotas, envelhecidos um ao lado do outro, vendo agora próximo o fim da jornada.
Argemiro adormeceu, a mão da mulher dentro da sua, apertada com suavidade, um sentimento de paz interior e de extrema tranqüilidade a dominar-lhe o espírito...
* * *
O funeral foi bastante concorrido.
Durante o velório, mais de duzentas pessoas compareceram ao Cemitério do Caju.
Comentários eram ouvidos nos cantos, em voz baixa e respeitosa:
“– Coitado, logo agora que estava melhorando”.
“– Pois é, depois de ter superado a fase mais aguda da crise, foi ter esse segundo derrame”.
Ali estavam desembargadores, juízes, promotores, advogados, alunos, toda a família forense. Ato social importante, ao qual todos tinham a obrigação de comparecer. Engravatados, ternos escuros, ar solene, fisionomias fechadas.
Marilda, filhos e netos recebiam as condolências, sentados ao lado caixão aberto. Até o Governador compareceu.
Argemiro, dentro da urna mortuária, vestido com um impecável terno preto, gravata cinza, não conseguia tirar do canto da boca aquele sorriso maroto...
* * *
6 comentários:
Emocionante, caro Amigo.
Parabéns pela forma e pelo conteúdo.
O Dr. Argemiro Rodrigues Ventoni foi um personagem real ou é ficcional?
Fui ao Google e a informação lá existente é a do seu blog.
Abraço
Inspirado num personagem real, modificada a história verdadeira em alguns trechos, utilizando perfis de outras pessoas que conheci durante a minha passagem pela magistratura
Carrano, realmente emocionante este conto. Fez-me lembrar dos meus estudos para concurso, com mais quatro colegas. Três Defensores Públicos (Lígia, amiga querida e que me conduziu para este caminho já não está mais entre nós) e um Promotor de Justiça, depois tornou-se Desembargador, pelo quinto. Lembrei-me de minha vida profissional e de ter pedido a aposentadoria dias antes da "expulsória". Muito me emocionou este conto. Parabéns ao autor e a você que me enviou.
Alódio Moledo dos Santos
defensor Público Aposentado
Obrigado, Alodio, pelo comentário. Devemos ter sido contemporâneos, apesar de não conhecê-lo. Se a Lígia a que vc. se refere é a Ligia Maria Bernardi, ela chegou a trabalhar comigo como Defensora Pública, na minha passagem pela 16a. Vara Cível do Rio de Janeiro.
Fez-me lembrar dos tempos em que ainda enfrentava os ternos, Carlinhos. A veracidade e seu estilo muito direto e objetivo já estava me levando a pensar em prazo, um aspecto chato dos processos. Enfim, não sei onde estou nesta história, mas que faço parte dela, tenho certeza.
Parabéns. Além de interessante, convence de verdade.
Grande abraço.
Jorge
Valeu, amigo Jorge
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