quinta-feira, setembro 27, 2007

Não ter vontade de vencer...

Sinceramente, cansei...
Acho que o meu Botafogo não é o mesmo que eu vi jogar...Perdeu a vontade de vencer... Acomoda-se, tem o jogo na mão, entrega tudo de mão beijada, conforma-se em perder....
Chega...

quarta-feira, setembro 19, 2007

AS DUAS PATETAS...

AS DUAS PATETAS

calf


Três horas da tarde de sexta-feira... Sol escaldante, calor asfixiante... Copacabana fervia naquele início de verão... As ruas, cheias de gente... Turistas e nativos... As praias, lotadas... O comércio, o legalizado e o clandestino, vendendo de tudo...
Saí com as duas, Ana Lúcia e Nícia Maria... A primeira, minha mulher; a segunda, menina de Lambari, interior de Minas, pouco mais de vinte anos, que viera ao Rio acompanhando Ana Lúcia para comprar parte de seu enxoval de casamento...
Passamos antes numa farmácia da Santa Clara, onde comprei algumas coisas... Peguei o dinheiro que estava na pequena bolsa que Ana Lúcia trazia consigo a tiracolo, já que eu estava de bermuda e camisa sem bolsos...
Paguei, e já íamos voltar para casa, quando Ana Lúcia disse:
- Vamos dar uma volta pela Galeria Menescal, p'ra Nícia Maria ver as lojas?
Concordei, apesar de não estar passando muito bem. Estava doido p'ra tomar os remédios que acabara de comprar, p'ra ver se melhorava da dor de cabeça e da ardência que sentia no estômago e no fígado...
Atravessamos lentamente a galeria, depois de nela entrar pela Barata Ribeiro. Eu, mais à frente, as duas atrás, de braços dados, parando deslumbradas diante de todas as vitrines...
Nícia Maria, que vinha pela primeira vez ao Rio, olhava tudo com uma expressão misto de espanto, admiração e uma ponta de desconfiança, de um certo receio, atitude própria de mineiro, ainda mais do interior... Nunca vira tanta gente junta, tantos carros na rua... Acostumada à tranqüilidade da pequena Lambari, a cidade das águas virtuosas, onde não havia sinal de trânsito, elevador, um montão de ônibus cortando uns os outros loucamente em alta velocidade. Lá, onde fazia tudo a pé, onde as pessoas costumavam cumprimentar-se umas às outras, para ela, tudo aquilo era novidade...
Chegamos ao fim da galeria, depois de quase meia-hora. Esperei as duas e, quando chegaram, perguntei-lhes:
- Vocês querem voltar por onde? Pela galeria ou pela av. Copacabana?
Ana Lúcia respondeu:
- Pela Nossa Senhora... Vamos ver as novidades dos camelôs...
A avenida estava apinhada de gente... Pessoas que se moviam com dificuldade pelas calçadas, tomadas de um lado e de outro, junto ao meio-fio e a entrada das lojas, pelas barracas dos camelôs, coladas umas nas outras...
A multidão transitava lentamente através do corredor formado pelas barracas, arrastando-se passo a passo, esbarrando-se as pessoas umas nas outras, as que subiam com aquelas que desciam....As duas, ainda de braços dados, andavam a passo de tartaruga, parando em cada barraca, examinando as mercadorias, perguntando o preço...
As pessoas continuavam no seu interminável ir e vir, empurrando-se e empurrando-me...
Eu, com o saco de remédios numa das mãos, a cabeça me doendo, o estômago e o fígado me ardendo, sentia-me sufocar... Segui mais à frente, tentando desvencilhar-me da multidão...
Quase perto da esquina de Santa Clara, onde diminuiu a intensidade do movimento de pedestres, parei e fiquei aguardando as duas...
Vinham elas bem lá atrás... Ana Lúcia mostrando a Nícia Maria as novidades dos camelôs... Brincos, pulseiras, prendedor de cabelo, um creme que dizia ser importado e outras bugigangas mais... Nícia Maria olhava tudo com cara de deslumbrada, tudo queria comprar...
Passavam em frente à Casa Mattos, onde era mais intensa a aglomeração do povaréu...
Alguns alunos saíam de um curso que ali existe ao lado, fazendo algazarra na calçada... As pessoas se espremiam, procurando um lugar livre no chão onde pudessem colocar os pés...
Ana Lúcia, bolsa a tiracolo, braço dado com Nícia Maria, procurava me localizar mais à frente...
Um elemento abriu os braços diante dela... Assustou-se, tentou recuar, não conseguiu... Atrás delas, havia um montão de gente que a empurrava para frente, naquela maré humana que se arrastava pela calçada...
Conseguiram sair daquele nó de corpos que se espremiam, daquele cheiro pouco agradável de suor humano vespertino...
Foi então que ela se lembrou da bolsa a tiracolo... Sentiu-a mais leve, um calafrio percorreu-lhe a espinha... Estava aberta... Enfiou a mão... Vazia, ou melhor, só restava uma nota de cem... Seus documentos (carteira funcional do Tribunal de Justiça e carteira de motorista), bem como o cartão magnético do BANERJ, e aproximadamente oitocentos cruzeiros, haviam sumido...
Estourando de raiva, ela me divisou ao longe, parado em frente a uma loja, quase na esquina. Fez sinal com a mão. Aguardei...
- Fui roubada - disse nervosa, exibindo a bolsa vazia...
Olhei para ela, surpreso.
- Como foi isso? - perguntei.
- Sei lá, eu não vi. Deve ter sido agora, quando passei naquele monte de gente lá atrás...
As duas tinham o ar de duas patetas... Nícia Maria, espantada com tudo aquilo... Em Lambari não tem disso não, uai... Ana Lúcia, apesar de estar acostumada com a violência da cidade e de ver bandidos perigosos de perto (trabalhava numa Vara Criminal do Rio de Janeiro), estava "fula" da vida por ter "entrado naquela".
Ela insistiu em voltar ao lugar onde achava que o fato ocorrera. Tinha esperança, ao menos, de encontrar seus documentos no chão, talvez jogados fora pelo ladrão...
Eu lhe disse:
- Isso é besteira... Você não vai achar nada, no meio dessa gente toda...
Ela insistiu e voltou lá com Nícia Maria...

* * *

.Em casa, meia hora depois, ela ainda tentando conter a revolta, analisamos com mais calma a situação. O irmão mais velho também ali estava, tinha ido visitá-la e não sabia de nada...
Bem, o cartão magnético do banco não poderia ser usado... Não tinha sua assinatura e só funcionava quando digitada a senha, que só ela sabia... Em todo caso, era bom telefonar p'ro banco, comunicando o acontecido.
Ana Lúcia, volta e meia, desabafava. Criou idéia fixa de que iria pegar o cocô de sua cachorra, colocá-lo dentro da bolsa e, no dia seguinte, voltar ao lugar do furto, para que o ladrão, ao abrir novamente sua bolsa, enfiasse a mão na merda canina... Tentei demovê-la da idéia, dizendo-lhe que o dia seguinte era um sábado, e os ladrões não costumavam trabalhar aos sábados, já que são adeptos da semana inglesa...
O dinheiro subtraído, em torno de oitocentos cruzeiros reais (denominação horrível para a nossa moeda), era mixaria, não iria fazer grande falta... Não adiantava esquentar a cabeça por causa dele...
O que preocupava eram os documentos... A carteira funcional, além do retrato, tinha sua assinatura... Seria fácil uma cúmplice do ladrão ir até uma loja, exibir a carteira do Tribunal de Justiça, abrir um crediário e falsificar sua assinatura... Vendedor nenhum iria duvidar da autenticidade de uma carteira da Justiça...
A habilitação para dirigir, também... Apesar de vencida há quase um ano, ela não tinha cópia da mesma e não sabia o número do prontuário para providenciar a renovação...
Ainda pensei em recriminar sua falta de cuidado. Quantas vezes já lhe dissera, quando saíamos juntos pelas ruas de Copacabana ou do Centro da cidade (até mesmo em Buenos Aires, Amsterdam ou Paris):
- Cuidado com essa bolsa. Não fica dando bobeira. Aqui não é Lambari...
E ela, sempre autoconfiante:
- Pode deixar. Eu me garanto.
Tinha uma dose de razão. Quem foi criada e vivia no Rio de Janeiro, tem que aprender a se defender. Talvez seja a população mais prevenida do mundo.
Mas, mesmo assim, nunca era demais tomar certos cuidados. Bolsa, sempre com fecho-éclair, com alça atravessada no peito (para as mulheres). Para os homens, carregar pouco dinheiro, sempre dividido entre os bolsos da calça, da camisa, do paletó. Nada de usar carteira...
Naquela tarde, ela carregava a bolsa presa pela alça em um dos ombros... E, pior, uma bolsa fácil de abrir, um simples fecho, sem o zíper... Foi muito moleza para os larápios...
Enquanto um abria os braços à sua frente, assustando-a, o outro, por trás, abria-lhe a bolsa com destreza e surrupiava-lhe o conteúdo... "Entrara"...
Decidi não criticar, compreendendo o seu estado de espírito.
Ela, entretanto, voltou a bater na mesma tecla:
- Amanhã, eu boto o cocô da Kate na bolsa e volto lá... Aquele miserável vai sujar a mão toda...

* * *

Telefonou p'ro banco, foi até a l2ª Delegacia, onde registrou a ocorrência... Lá, outros vários fatos idênticos estavam sendo registrados... O policial de plantão disse-lhe que a média de furtos semelhantes era de vinte por dia, só naquele trecho, entre Siqueira Campos e Santa Clara... Orientou-a a procurar a COMLURB e os Correios... Se alguém achasse os documentos talvez fizesse a boa ação de encaminhá-los a um daqueles órgãos...

* * *

Passaram-se o sábado e o domingo.
Na segunda, elas foram até o posto da COMLURB em Copacabana e ao l9º Batalhão da Polícia Militar, na esperança de que os documentos tivessem sido encontrados... Nada...
Avisaram a alguns garis da COMLURB que varriam as ruas próximas, bem como aos guardas de trânsito das cercanias do local do evento... Talvez o ladrão, apoderando-se do dinheiro, não viu qualquer valia nos documentos, e os tivesse atirado fora, num bueiro qualquer ou numa cesta de lixo...
Terça-feira, feriado, sem notícias...
Quarta-feira, ela iria ao Tribunal providenciar a 2ª via da carteira funcional. A renovação da habilitação para dirigir era bobagem providenciar agora: o DETRAN estava demorando mais de seis meses para entregar a nova carteira.
Ia ser uma chateação. Tirar retrato, pegar a certidão da ocorrência na Delegacia, ir ao Tribunal dar mil explicações, esperar um tempo enorme, ficar sem documentos...
O que mais lhe dava raiva era saber que o ladrão tinha tudo dela nas mãos: nome, filiação, nº do CPF, retrato, assinatura, podendo fazer o que quisesse daquele documento...
Imagina se ele assalta alguém e é preso com sua carteira funcional... Será se iam pensar que ela era sua cúmplice?
Bem, não adiantava ficar preocupada por antecipação. Talvez ele não assaltasse ninguém... Talvez fosse esperto demais para ser preso... Ah! mas ela ia se vingar... Ia colocar o cocô da cachorra na bolsa e ia voltar ao local do furto... O criminoso não volta sempre ao lugar do crime?

* * *

Quarta-feira, pela manhã...
Vesti-me para ir à cidade. Tinha dentista às onze horas... Ana Lúcia e Nícia Maria também se aprontaram para ir ao Tribunal.
Desci antes delas... Conversava com o porteiro, apanhava a conta do telefone para pagá-la no Centro... Quando já ia subindo de volta, dois garis chegaram no portão de ferro, perguntando pela moradora do 201. O porteiro me chamou, já junto da porta do elevador...
Fui ver o que era.
- O senhor é parente da moradora do 201, dona Ana Lúcia?
- Sim - respondi. Sou o marido dela.
- É que ela nos avisou que roubaram seus documentos...
Fez uma pausa. Continuou:
- Nós achamos eles dentro de uma cesta de lixo...
E me entregou um saco plástico...
Abri-o rapidamente, exultando de satisfação. Lá estava tudo: carteira funcional, habilitação e o cartão magnético, quebrado ao meio... Tudo, menos o dinheiro, é claro...
Não consegui disfarçar o meu contentamento. Procurei nos bolsos algum dinheiro para gratificá-los... Estavam vazios... Pedi que aguardassem... Fui até o apartamento e peguei dois mil cruzeiros (reais)... Dei mil a cada um, agradecendo-lhes calorosamente.
Voltei ao apartamento...
Ela, bem como Nícia Maria, não escondiam a satisfação...
Mesmo assim, ela reclamou:
- Mas, você deu muito p'ra eles... Quinhentos para cada um estava muito bom... Eu só vou dar mil p'ros dois... Você deu mais mil porque quis.
E eu, sem ter nada a ver com aquilo tudo, acabei "entrando" em mil cruzeiros (reais)...
Dentro do saco plástico, a fina ironia... Junto com os documentos, o meliante ainda teve a consideração de juntar um pequeno folheto impresso com a oração de "SÃO DIMAS - O BOM LADRÃO...".

* * *

Ficou ele, como produto do furto, com oitocentos cruzeiros (reais)... Os garis, que nada furtaram, ficaram com mais que ele, mil cruzeiros (reais)... E eu, com menos mil cruzeiros (reais)...
Essa, a aritmética do crime...
Ainda bem que ela desistiu de colocar o cocô da cachorra na bolsa...

* * *

O HOMEM DO ÉTER...


O HOMEM DO ÉTER...

Calfilho



               Dele, todos zombavam, faziam chacota...
               Perambulava pelas ruas de Copacabana, barba crescida, cabelos na altura do ombro... As pernas, sempre trôpegas, exibiam várias feridas, já purulentas... As roupas, simples farrapos...
               Carregava sempre nas costas um saco de farinha sujo, já preto por falta de lavagem...
               Cheirava fortemente a éter... Era o que mais chamava a atenção das pessoas... Aquele cheiro característico que dele exalava, ao longe...
               Era como o chamavam na Santa Clara e adjacências... "O homem do éter...".
               Dormia nas calçadas, cheirava o seu éter, mas, engraçado, não perturbava ninguém... Não era indelicado, as feições, mesmo maltratadas, indicavam que não deveria ter mais de trinta e cinco anos...
                E, respeitoso...
                Certa vez, minha mulher comprava cigarros num botequim da Santa Clara, esquina com Cinco de Julho, e eu, no balcão, pedi um chope. Ela pagava na caixa os maços pedidos e o garçom tirava o meu chope. Ele aproximou-se dela, o cheiro do éter dominando o ambiente...
                Fiquei de sobreaviso (será se ele está armado?). Os empregados e fregueses riram dele, fizeram piadinhas...
                - Olha o "homem do éter", tá mais p'ra lá que p'ra cá...
                Ele, cambaleando, as pernas inchadas, sangrando as feridas, olhou para ela, distraída, de costas para ele, conferindo o troco:
                - A senhora pode me ceder um cigarro?
                Ela, surpresa, olhou para ele, ficou um pouco nervosa, temerosa ao ver sua aparência. Dirigiu um rápido olhar para mim, já sentado num tamborete, tomando o meu chope. Fiz-lhe um sinal com a cabeça, concordando... Apanhou o cigarro, afastou-se, dizendo apenas:
                - Muito obrigado...
               Olhou para mim e agradeceu, baixando, imperceptível e reverenciosamente, a cabeça... Como se dissesse: "Ele pensa que eu não o vi...".
               As pessoas no botequim riram mais uma vez quando ele se afastou...
               Alguns até disseram:
               - Vai dormir, "cachaça"...
               O dono disse para minha mulher:
               - A senhora desculpe o incômodo... Mas, ele anda sempre por aqui... A gente não pode fazer nada...
               Um outro freguês, sentado ao meu lado, disse para mim:
                - Cara folgado... Você não devia ter deixado que ela desse o cigarro...
                E, com ar de filósofo de botequim:
                - É isso que acostuma mal essa gente...
                Eu, virando o último gole do meu chope:
                - Tá tudo bem...

                                              * * *

               Dez anos antes, num hospital público do Rio de Janeiro...
Plantão de sábado para domingo... Movimento intenso de feridos, mortos, baleados, acidentados...
               Só um médico de serviço... Três enfermeiras, dois serventes... Uma loucura total... Um corre p'ra cá, outro p'ra lá, esbarrando-se nos corredores estreitos, empurrando macas, carregando frascos de soro...
               Na sala de cirurgia, mal iluminada, sem refrigeração, calor de mais de quarenta graus, o jovem médico fazia uma operação delicada... A barriga da vítima de disparo de arma de fogo já estava aberta, tripas à mostra... A enfermeira, nervosa, suando em bicas, tinha dificuldade em achar o instrumento cirúrgico solicitado... Um tumulto total, gente entrando e saindo a todo o momento, parentes de vítimas chorando pelos corredores, outros discutindo em voz alta, críticas ao governo, lamentações, desespero...
               O servente, sandália de dedo nos pés, vassoura nas mãos, coçava o nariz, tirava uma meleca que o incomodava, e, encostado na porta, assistia à cirurgia....O médico começava a extrair o projétil... Cuidadoso, mãos hábeis e sensíveis, procurava-o com extrema precisão... Suava abundantemente... Mal ou bem, mesmo diante de todas aquelas dificuldades do local, fazia-se silêncio no interior da sala... Uma incisão mais profunda, uma artéria pinçada...
                Entra na sala, esbaforida, uma das outras enfermeiras de plantão...
                 - Doutor, doutor, urgente, um outro caso de cirurgia...
                 Ele olha para ela, ainda com o bisturi na mão, o suor escorrendo-lhe pela testa...
                  - Bota na fila, não tá vendo que eu ainda não acabei com este...
                 Ela, já sem a máscara na boca, nervosa:
                 - Mas, doutor, é urgente...
                 Já descontrolado, por não ter conseguido estancar uma pequena hemorragia do baleado de barriga aberta, ele reponde, aos berros:
                  - Porra, vê se não enche o meu saco... Eu sou um só... Será que é só o seu caso que é urgente? Esse aqui também não é?
                  A enfermeira afastou-se, cabeça baixa. Deixou a sala, os olhos vermelhos, as lágrimas escorrendo-lhe pela face...
                  Não teve coragem de dizer-lhe...
                  O outro caso, o "urgente", era o filho dele, que agonizava na sala de espera da cirurgia... Sofrera um acidente de automóvel momentos antes... Três anos de idade... A mãe morrera no local... Ele acabou morrendo no hospital, coitado...
                 Tinha ido buscar o pai no trabalho para fazer-lhe uma surpresa...

* * *

                  O jovem cirurgião largou a profissão... Procurou refúgio no éter...

* * *