quarta-feira, fevereiro 28, 2007

MORREU PIPICO...

   

 

MORREU PIPICO...

Calfilho






           Nunca foi de falar alto, botar para fora o que sua alma sentia...
         Sempre quieto, silencioso, quase escondido num canto qualquer, fosse qual fosse o lugar onde se encontrasse: uma solenidade, uma festa, ou um boteco esquecido da cidade...
          Advogado de mão cheia, mestre do Direito... Entretanto, não gostava de falar muito, não seguiu o exemplo dos grande oradores. Preferia o silêncio de um local calmo, tranquilo, onde colocava no papel todo o repertório de seus vastos conhecimentos jurídicos.
          Ainda jovem, acadêmico de Direito, juntou-se ao nosso grupo de ex-liceístas, no futebol disputado nas manhãs de sábado na Praia de Icaraí. Levado pelo irmão mais novo, integrou-se rapidamente à turma. Sempre com aquele seu modo típico de ser: quieto, calado, falando pouco e ouvindo muito.
           Futebol, não era seu ponto forte. Entrava quase sempre no segundo tempo de nossas peladas, ou no time reserva. Por isso, ponta-direita como o irmão “expert” na posição, que era titular absoluto do time da praia, conformava-se docilmente com a reserva.
            Mas, às vezes, dava umas investidas surpreendentes pela ponta, levando perigo à meta adversária, quando não convertia em gol alguma daquelas suas esporádicas escapadas.
               Daí, recebeu logo o apelido carinhoso de “Pipico”, então ponta-direita do Fluminense daquele início da década de 60. O verdadeiro, como ele, também era jogador de altos e baixos: ora se encolhia na ponta, esperando a bola chegar-lhe aos pés; outras vezes com ela dominada, insurgia surpreendentemente em arrancadas velozes e fulminantes em direção ao gol adversário.
             O apelido pegou e foi sua marca registrada durante aqueles doces anos descompromissados de peladas na areia, chopes na Gruta ou no Lucio’s. De vez em quando, um zagueiro ou um meio de campo irritado lançava-lhe uma bola, muitas vezes um passe mal feito e ainda reclamava:
        – Corre, Pipico, não fica chupando o sangue aí na ponta.
         Ele somente resmungava alguma coisa em voz baixa, palavras que ninguém conseguia entender. Mas, educado que era, não rebatia a ofensa.
          Assim era Pipico.
          Alguns anos mais tarde, nossos caminhos novamente se cruzaram.
          Já formados, iniciávamos nossa luta pela busca de um lugar ao sol na difícil carreira do Direito. Ele, formado antes de mim, já advogava aqui e ali, buscando seu espaço entre os advogados de Niterói. Eu, que tinha emprego fixo, começava a dar os primeiros passos na carreira.                
             Reencontramo-nos num botequim qualquer da cidade (acho que foi o Riviera) e decidimos estudar juntos para um concurso público na nossa área profissional.
             Foi ele de grande ajuda para mim, passando-me sua já adquirida experiência, eu, recém-formado e tendo passado dois anos no interior do Estado, como funcionário de banco estatal.
            Com outro amigo comum, que nos emprestou o escritório, íamos os dois, depois de um dia cansativo de trabalho, estudar até às dez, onze da noite.
            Fizemos juntos os concursos para Promotor de Justiça em São Paulo e aqui no Estado. Juntos também nos inscrevemos para o concurso de Juiz de Direito na antiga Guanabara e foi ele um dos meus maiores incentivadores.       Estudávamos até a madrugada, dia após dia, noite após noite, eu, Pipico e outros jovens advogados, felizmente quase todos aprovados em concursos públicos.
            Perdemos o contato durante alguns anos, só esporadicamente nos víamos. Falávamo-nos, às vezes, pelo telefone...
            Como é massacrante e cruel o tempo em que vivemos... Corre-se para lá e para cá, escravos do nosso trabalho, acabamos esquecendo dos amigos e até da família... Será se tudo isso é válido?
            Fiquei muito contente quando nosso grupo de praia se reencontrou e iniciamos o atual ciclo de congraçamento trimestral. Voltei a encontrar Pipico, autor da frase “Abriram as portas do asilo”, quando de nosso primeiro reencontro, ainda na Praia de Icaraí.
            Passados mais de quarenta anos...
            A alegria era a mesma, a satisfação de estarmos juntos novamente... Parecia que o tempo não havia passado...
            Pipico, sempre no seu canto, um pouco mais envelhecido, mas com a mesma discrição de outrora. Falando pouco, palavras silenciosas, quase ininteligíveis, só conseguidas serem ouvidas por aqueles que estavam ao seu lado.
            Alegre, feliz, por reencontrar a alegria do seu passado...
             Num dia triste e infeliz de fevereiro deste ano, sem alarde, sem dizer nada a ninguém, Pipico se foi...
            Discreto, sem alarido, como o passarinho que sempre foi...
            Que pena...

terça-feira, fevereiro 20, 2007

LICEU NILO PEÇANHA...





LICEU NILO PEÇANHA...

Calfilho





                 A imagem do grande prédio cor de rosa, quase no final da Amaral Peixoto, realmente impressionava. Imponente, grandioso, ao lado da Assembléia Legislativa, em frente à pracinha onde existiam estátuas de soldados e cavalos em bronze. Ao fundo, a Biblioteca de Niterói.
                 A avenida Amaral Peixoto, que começava na estação das Barcas e ia até a Marquês de Paraná, ainda tinha poucos edifícios, a mão de trânsito era dupla, naquele começo de 1953. Muitos terrenos vazios, um ar de cidade interiorana, os bondes fazendo o ponto final junto à antiga estação da Cantareira. Paralela a ela, a rua da Conceição, com o comércio intenso em seu começo, casas residenciais na sua parte final, quando mudava de nome para Dr. Celestino.
                Nervoso, recém-concluído o primário no Getúlio Vargas, lá em São Domingos, preparava-se para a prova de fogo: o exame de admissão no Liceu, tido como o melhor colégio do Estado do Rio. Tímido, temeroso, calças curtas, cabelo liso com franja na testa, o pai foi levá-lo até o imponente edifício, dar-lhe uma força, encorajá-lo. Centenas de candidatos do lado de fora, todos com o mesmo ar nervoso nos rostos, feições amedrontadas.
                 A prova foi difícil, cheia de palavras desconhecidas (“a lua fulgia no céu”, era uma delas), mas achava que dava para passar. Sua professora do primário, Dª. Gilda, sua maior incentivadora, disse-lhe que fora muito bem, não deveria ficar preocupado.
                Quinze dias depois, o resultado: aprovado. E, muito bem colocado, quinto lugar. Outros colegas seus do Getúlio Vargas também passaram: Carolina, Neuza, Harald, Lizardo, Gilberto. “Que bom, pelo menos teria gente conhecida no novo ambiente”.
                 Um mês e meio depois, o início das aulas. O medo do trote, o receio do desconhecido. Novos colegas, novo ambiente. Pela classificação obtida no admissão, foi colocado na primeira turma, entre as cinco do primeiro ano ginasial.
                Agora, uniforme novo: dólmã cáqui, calça comprida, gravata preta.
                 Formadas no pátio, turma por turma, as três séries do turno da tarde, cantavam o Hino Nacional, assistiam a bandeira ser hasteada e iam para as salas de aula. Onze matérias, onze professores diferentes, em vez da professora única do primário, que lecionava português, matemática, ciências e conhecimentos gerais.
                 O medo que Dª. Jacira, professora de português, causava nos alunos; o Padre Carneiro, professor de latim (nem sabia que padre dava aula, pensava que fosse só o catecismo); Dª. Anita, também rigorosa em matemática; Dª. Estefânia, com seus doces cabelos brancos, ensinava francês.
                 Só levou um trote, do Jorge Chocolate, aluno do segundo ano, que o mandou medir um banco de cimento com um palitinho de fósforo. Teve mais sorte que outros, que tiveram o rosto pintado, obrigados a fazer declaração de amor para as meninas, alguns mesmo choraram com as situações ridículas em que foram colocados.
                Conheceu gente nova: Sivoca, Vinícius, Gusmão, Jorginho, Armando, Célio Aquino. Gilberto, Harald, Lizardo, Carolina e Neuza, todos também bem colocados no admissão, ficaram na sua sala.
                 Depois das primeiras semanas, já enturmado, participava dos rachas na hora do recreio no campinho de cimento da quadra de vôlei, ou quando estavam todas ocupadas, no campinho de terra lá do fundo, junto ao necrotério.
                  O diretor, misto de educador e deputado estadual, estava sempre presente na hora da entrada, presenciando o hasteamento da bandeira e conferindo se o Hino Nacional estava sendo bem cantado.
                  O primeiro ano passou sem novidades, estudava muito, sempre um dos primeiros da classe. Foi aprovado para o segundo.
                 Nos segundo e terceiro anos, a rotina de estudos puxados continuou, entrou mais o inglês como matéria obrigatória. Português, matemática, francês, inglês, latim, desenho, canto orfeônico, geografia, história geral, educação física, trabalhos manuais. Ali, sua formação cultural se solidificava, consolidava-se naquele que era considerado o melhor colégio de Niterói e do Estado, equivalente ao Pedro II, no Rio. Começou a perceber isso quando ouvia comparações com os outros estabelecimentos de ensino da antiga capital fluminense, o José Clemente, Bittencourt Silva, Batista, Plínio Leite, Salesianos, São Vicente de Paulo, Colégio Brasil, Nossa Senhora das Mercês, considerados de nível bem inferior ao Liceu. Este, colégio público, onde estudavam alunos de todas as classes sociais da cidade, era considerado padrão de ensino pela qualidade excepcional do seu corpo de professores. Era visto como o orgulho do ensino público do Estado e, principalmente, como símbolo da democracia escolar. Era freqüentado por jovens de todos os bairros da cidade, os ricos e os pobres: Icaraí, Ingá, Barreto, Fonseca, Engenhoca, São Domingos e mesmo aqueles da vizinha São Gonçalo, como Neves, Barro Vermelho, Porto da Pedra, Alcântara, etc... Nele, não se percebia distinção de classes, eram todos iguais em busca do melhor ensino da região, sem qualquer preconceito de cor, raça, condição social ou financeira.
                   Sem perceber, foi-se prendendo mais e mais às coisas do colégio. Tinha prazer em ir para as aulas, conviver com seus colegas, participar de suas atividades, até mesmo ser exigido por Dª. Jacira nas aulas de português ou por Carias, terror da matemática. Morava no início da Amaral Peixoto, passou a ir para o Liceu de bicicleta, o que era considerado um sinal de status perante os colegas.
                    Tinha orgulho em ser liceísta. Disfarçadamente, era admirado por outros colegas da rua, da praia, do futebol, que sentiam uma pontinha de inveja por não terem conseguido passar no admissão para o colégio padrão de Niterói.
                    Aos 13 anos, no final de 1955, terminava o terceiro ano, sempre na primeira turma, aquela considerada como a dos CDFs. Encerrava, assim, o seu ciclo no turno da tarde, o uso do uniforme cáqui, a gravata preta, o dólmã com punhos azuis, que chegava em casa invariavelmente sujo de terra e poeira, após a pelada jogada na pista de terra do colégio.
                   Era a época da transição da infância que ficava para trás e a adolescência que agora começava, quando iria completar 14 anos de idade.

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                    Turno da manhã, o sonho dos alunos que estudavam à tarde. Ali iriam conviver com alunos mais velhos, do último ano do ginásio e os do cientifico e clássico, alguns já com barba começando a nascer nos rostos.
Houve modificação na forma de organizar as turmas que, em vez de ser pelas notas alcançadas no ano anterior, passou a ser por ordem alfabética. Passou a conhecer e conviver com alunos que vieram de outras turmas, como o Antonio, o Celso, o Augusto Cesar, a Cirene (neta do prefeito), a Bety Lee. Gente nova, outras mentalidades, outras origens de vida.
                   O uniforme também mudou. Em vez do pesado dólmã cáqui, uma calça azul de brim, uma camisa branca e uma gravata azul. Preso na gravata um escudo em forma de losango em azul e branco, em metal esmaltado com as letras LNP. Já era um veterano.
                 Sentia-se, agora, realmente, parte integrante do colégio. Começava a participar seriamente das atividades esportivas, excursões de futebol, plenamente integrado ao colégio que já amava, mesmo sem ter muita consciência disso.
                  O diretor já era outro, o Prof. Nilo, homem bom, amigo dos alunos, que tinha um filho que terminava o científico. Naquele tempo, então com 14 anos, ia assistir os jogos disputados pelo colégio, principalmente o futebol e o basquete, nas competições intercolegiais contra o Plínio Leite, Salesianos, Bittencourt Silva.
                  Já freqüentava, juntamente com o Antonio e o Lizardo, o clube Canto do Rio, onde praticavam vários esportes, como futebol de salão, basquete, tênis de mesa. Na época do Carnaval, não perdiam um baile, tanto os noturnos como as matinês. Tinha também o cineminha das terças-feiras, no salão de baile do clube.
                  Foi então que o Sivoca, que vinha na mesma turma que ele desde o primeiro ano, cismou de fazer uma gracinha:
                  -- Olha o mais novo casalzinho da turma: Marquinhos e Bety Lee. Foram feitos um para o outro.
                  Nem conhecia a menina, que estava vindo para aquela turma porque seu nome começava com a letra B e, naquele ano, as turmas foram divididas por ordem alfabética. Sentava na mesma fileira que ele, umas cinco carteiras mais à frente. Foi então que, após a brincadeira do Sivoca, passou a reparar nela. Moreninha bonitinha, olhos negros, baixinha, franjinha na testa, parecia uma indiazinha do clube do Curumim (programa da antiga TV Tupi). Ele ficou encabulado com a brincadeira, ela também. Mas, não deixaram de trocar um olhar de curiosidade, como se tivesse sido despertada neles dois uma prematura centelha de amor adolescente.
                    Era, entretanto, muito tímido, tinha medo de dela se aproximar, dar corda à brincadeira do Sivoca. Mas, notou que ela, também muito retraída, não era totalmente indiferente aos olhares esquivos que conseguiam trocar. Aos poucos, foi ficando atraído pela menina, procurava estar sempre perto de onde ela estava, exibia-se para ela junto aos colegas, procurando demonstrar ser um elemento importante do grupo.
                    Um dia, tomou coragem.
                    Depois das aulas, desceram vários deles a Amaral Peixoto em direção às Barcas, onde alguns pegariam o bonde para as respectivas casas. Ele e ela faziam parte do grupo. Quando chegaram em frente à estação da Cantareira, o grupo se dispersou e ela pegou o bonde para a Ponta d’Areia, bairro onde residia. Ele esperou que o mesmo fizesse a volta na Praça Araribóia e, quando ele chegou ao outro lado, em frente ao café Santa Cruz, subiu no estribo do veículo, sentando-se ao seu lado.
                   Perguntou, as palavras saindo-lhe da boca aos borbotões, atropelando-se umas às outras:
                    -- Bety Lee, começou tudo com aquela brincadeira do Sivoca, mas agora acho que estou gostando de você. Quem sabe a gente pode namorar?
                     Ela, muito nervosa, sem levantar os olhos:
                     -- Não, não posso, meu pai não vai deixar. Ele acha que ainda sou muito nova.
                      -- Mas, você gosta um pouquinho de mim? – perguntou ele.
                      -- Gosto sim, mas meu pai não vai deixar.
                     Era a primeira vez que falavam um com o outro. No colégio, tendo em vista a gozação dos colegas, nunca se falaram. Ele desceu do bonde mais adiante, dando por encerrada essa primeira tentativa de aproximação. Entendeu que a resposta que ela lhe deu não significava uma rejeição ao seu pedido de namoro. Quem sabe, um “talvez”...
                    Daí para frente, acreditando ser correspondido em seus sentimentos, não mais tirou a garota da cabeça. Ela matriculou-se num curso de reforço de matemática, o Riachuelo, lá na rua Andrade Neves. Para estar perto dela, convenceu a mãe a também matriculá-lo no referido curso, mesmo estando muito bem na matéria. Nos intervalos das aulas, jogavam vôlei com os demais alunos, participavam das atividades recreativas. Mas, não trocaram nem mais uma palavra, com vergonha da gozação dos outros.
                Através do Celso, colega do Liceu e que também estudava nesse curso de matemática, mandou-lhe alguns bilhetinhos. Ela não respondeu.
                Ficou com raiva do pai dela, que seria o obstáculo ao namoro dos dois. Para vingar-se dele, foi até sua loja, uma joalheria na Visconde de Uruguai e comprou uma aliança de noivado, mandando gravar o nome dela.  O pai da moça olhou desconfiado para aquele garoto de 14 anos, cara começando a ganhar espinhas, olhar inocente, cheio de empolgação.
                Perguntou:
                -- Mas, você não é muito novo para ficar noivo?
                -- É que eu gosto muito dela e ela de mim. A gente vai ficar noivo só pra nós dois, é um compromisso entre nós. Quando a gente crescer um pouco mais, aí vai ser de verdade.
                O joalheiro resmungou baixinho:
                -- Só espero que não seja a minha Bety Lee...
                “Como se existissem muitas Bety Lees no mundo...”.
               A paixão passou a consumi-lo. Só pensava na menina, não estudava mais direito, só ela povoava seus pensamentos.
                Certo dia, escreveu um bilhetinho para ela e o guardou dentro de sua mala de cadernos e livros, deixando-a sobre sua carteira quando foram para o recreio. Ia pedir ao Celso para que o entregasse no fim das aulas.
                Quando voltaram do recreio, o Gusmão, que sentava na sua frente, disse-lhe:
                 -- Gostei do bilhete. É isso mesmo, dá um duro nela p’ra ver se ela se decide.
               Aquilo o aborreceu profundamente. Tivera sua privacidade invadida, seus segredos mais íntimos violados.
                Gritou com Gusmão:
                -- Porra, quem te deu autorização pra mexer nas minhas coisas? Eu por acaso mexo nas tuas?
                E, como era costume naquela época:
                -- Depois da aula, te espero na pracinha. Vou te encher tua cara de porrada.
               E, realmente, depois das aulas, por volta do meio-dia, os dois foram brigar na pracinha. Juntou bastante gente para assistir, mas a briga nem começou. Os mais velhos interferiram, impediram que os dois brigassem. E, aí a amizade que tinha com o Gusmão ficou estremecida, amizade que vinha desde o primeiro ano.
               No fim daquele ano, terminado o ginasial, festa e baile de formatura, o golpe final na paixão prematura: ela foi para o Instituto de Educação fazer o normal, ele continuou no Liceu para cursar o científico. Separaram-se, viam-se muito raramente, o amor juvenil foi ficando esquecido nas sombras do passado.
                A aliança de ouro, não se lembra o que foi feito dela.

x.x.x.x.x.x.x.x.


                Primeiro ano científico.
                Matérias novas, outras antigas. Química, Física, Biologia, História do Brasil, Português, Matemática, Geografia, Desenho, Inglês, Espanhol.
                Terminado o ginasial, vários colegas deixaram o Liceu, seguindo a carreira militar: Marinha, Exército, Aeronáutica. Foi o caso do Lizardo, Marcos, Gusmão, Armando, Dráusio e outros.
                De outros colégios, vieram alunos transferidos: o Campista, o João Carlos, o Carlinhos Borbola, a Vânia, a Ilka. E havia alguns repetentes, como o Izapuam, o Estoniano, o Telúrio. Da época do ginasial permaneceram o Sivoca, Vinicius, Regina Coeli, Maria Célia, e mais alguns outros. O Antonio, com quem fizera grande amizade no quarto ano ginasial, foi estudar no turno da noite, pois precisou ir trabalhar para ajudar a família. Mas, continuaram a amizade, mantendo estreito contato diário.
                 No começo desse ano, 1957, no mês de fevereiro, fez uma viagem à Europa com toda a família. No princípio não queria ir, ainda com esperanças de uma aproximação com Bety Lee. Seus pais se desesperaram, ameaçaram expulsá-lo de casa, só a muito custo concordou em viajar. Antonio, fiel escudeiro, foi levá-lo até o embarque do navio, na Praça Mauá. Visitou Itália, França e Inglaterra, voltando no início de abril, com as aulas já começadas.
                  A viagem parece que o curou da paixão pela menina, pelo menos não pensava mais tanto nela. Voltava-se agora para o seu Liceu, onde iniciava seu processo de afirmação junto aos demais alunos. Voltou a praticar futebol e tênis de mesa com toda intensidade, disputou os Jogos Infantis pelo Canto do Rio, aceitou o convite que lhe fizeram para fazer parte do Grêmio Cultural Nilo Peçanha.
                  Nesse meio tempo, o colégio teve alguns diretores temporários, como a temida Professora Jacira, o não menos amedrontador Professor Carias e, finalmente o Professor Aldo, que já tinha sido diretor no final da década de 40 e que deixara atrás de si uma fama de severo, rigoroso, disciplinador. O prédio também foi todo pintado de amarelo.
                Ah! grande novidade... Marquinhos ganhou de presente de aniversário uma Gulivete, bicicleta motorizada, passando a ir com ela diariamente para o colégio. Vinícius também já tinha uma e Guido, aluno de uma série inferior, uma lambreta. Eram os símbolos maiores da mocidade daqueles anos. Os três usavam blusões tipo James Dean, herói da juventude transviada americana.
                 Mas, não usavam aquilo tudo para fazer pose para as meninas. Era só uma forma de afirmação, de demonstrar poder, de se exibir. Os três nem tinham namorada.
                 A nova diretoria do Grêmio decidiu revolucionar a instituição, dando prioridade aos esportes e lazer dos alunos. Até ali, o órgão representativo dos alunos era meramente decorativo, morto, sem qualquer atividade digna de nota.
                 Construíram balizas de futebol de salão, foi organizado um mutirão dos alunos para a pintura das mesmas, num sábado à tarde. A cor amarela foi algo que chamou a atenção, por ser diferente das usuais, geralmente em branco. Redes e bolas foram compradas, foi organizado um campeonato interno entre as diversas séries. Um sucesso!!!
                  Junto com Izapuam, passou a apresentar diariamente, na hora do recreio, nos turnos da manhã e tarde, “A Hora do Grêmio”, onde eram abertas as “janelas da Broadway”, ou seja, as janelas de uma pequena sala que dava para o pátio. Ali eram noticiados os fatos relevantes da programação gremista, aniversários, recados de namorados, tocando-se discos em 78 rotações dos sucessos da época. Elvis Presley, The Platters, Neil Sedaka, alguns sambas. Aquela era a época da febre do rockn’roll, o auge dos cantores americanos. “Only you”, “Tutti frutti” e “My Prayer” eram as músicas mais tocadas. A bossa nova ainda não havia estourado. O programa logo se tornou um sucesso, tornando mais alegre e divertido o recreio dos liceístas. O turno da tarde, então, o adorava, chegando a reclamar quando, por acaso, um dos dois apresentadores não podia voltar na parte da tarde para produzi-lo.
                  Organizaram-se bailes na casa de alunos, cobrando-se o ingresso e a bebida, visando angariar fundos para comprar uniformes de jogos, material esportivo.
                 Em pouco tempo, já tinha o Grêmio o uniforme amarelo ouro e azul, destinado ao futebol, basquete e vôlei. Essas cores se tornaram um símbolo do Liceu, quase obscurecendo a cor oficial do uniforme, que era o azul e branco.
                Foi feito um convênio com a FESN (FEDERAÇÃO DOS ESTUDANTES SECUNDÁRIOS DE NITERÓI), passando o Grêmio a vender os passes estudantis para o trolley, que já substituíra o bonde na Zona Sul da cidade. Ficou facilitada, assim, a vida dos liceístas, que ali mesmo, no seu colégio, poderiam comprar os passes, sem necessidade de deslocamento até a sede da FESN, lá no Rink...
                 Com toda essa atividade, seu aproveitamento escolar caiu radicalmente. Quase foi reprovado no primeiro ano do científico, já que, inclusive, perdeu um mês de provas em virtude de sua viagem à Europa. Mas, passou.
                  O segundo ano trouxe para sua sala de aula um aluno novo, transferido de uma escola particular.
                  Descendente de israelitas, baixinho, forte, voz nasalada, Sérgio era muito folgado.
                  Logo no primeiro dia de aula, os alunos costumavam marcar as respectivas carteiras, deixando ali seus livros e cadernos, saindo depois para o pátio, antes que tocasse o sinal para a primeira aula.
                 Quando entrou na sala junto com os demais alunos, todos já conhecidos de muito tempo, Marquinhos verificou que seu material não estava na carteira que escolhera, tendo ido parar numa outra, lá no fundo da sala. No lugar escolhido anteriormente já estava sentado um novo aluno, desconhecido.
                 -- Ei, meu chapa, esse lugar é meu -- disse Marquinhos.
                 O outro o olhou de cima a baixo, ar desafiador. Perguntou, com voz estridente:
                 -- Por quê? Tem seu nome gravado nele?
                 Aquela atitude agressiva, aliada ao tom de voz estridente, quase irônico, irritou Marquinhos. Arrancou o material do calouro de cima da carteira e colocou-o em outra, mais atrás.
                 -- Agora, faz favor de sair daí. Antigüidade é posto, meu camaradinha.
                  O outro ainda tentou argumentar, mas vendo o olhar de censura dos demais alunos, levantou-se e foi sentar lá no fundo da sala, resmungando baixinho. Esse o primeiro contato de Sérgio com a classe.
                  Depois, quebrado o gelo dos primeiros dias, passou a andar mais com Izapuam e Marquinhos, entrosando-se rapidamente com o resto da turma. Tinha sérios problemas de família e só com os dois novos amigos é que conseguia se abrir, desabafar.
                As atividades do Grêmio multiplicavam-se, ganhavam em intensidade. Eram competições internas, os sábados, agora, enchiam o colégio com as acirradas disputas de futebol de salão, basquete e vôlei. Torcidas organizadas de cada série, movimento de alunos pra lá e pra cá, pipoqueiro e sorveteiro faturando um extra de fim de semana, namoros, enfim, o congraçamento da família liceísta.
               A princípio, o severo diretor não queria permitir a abertura do colégio aos sábados.
               -- Não, não posso permitir. Quem vai ficar responsável pela abertura e fechamento do colégio, vestiários, etc...?
                Jorge, o presidente do Grêmio, argumentou:
                -- Mas, professor Aldo, isso é uma forma de prender mais o aluno ao colégio, de fazer com que sinta mais amor por ele. Sair da rotina de vir aqui só pela obrigação de assistir as aulas, cumprir o seu dever escolar...
                -- Mas, quem vai ficar responsável por tudo?
                -- Nós já falamos com o “seu” Azer, ele concordou em vir para abrir e fechar as coisas. E nós, do Grêmio, seremos os responsáveis por tudo.
                O velho diretor coçou os cabelos grisalhos, relutou um pouco, mas acabou concordando.
                Azer era uma figura extraordinária.
               Mulato alto, ventre volumoso, quase cinqüenta anos, cabeça grande, cabelos crespos começando a ficar grisalhos, mancha de vitiligo no rosto, era o zelador chefe do colégio. Fisionomia séria, não era de muito rir. Tinha a seu cargo a guarda dos vestiários e do material de educação física da escola.
               Depois que começaram a fazer “A Hora do Grêmio”, logo que tocava a sirene do recreio, Izapuam ou Marquinhos com ele apanhavam as chaves da salinha que dava para o pátio e onde ficava a aparelhagem de som.
                – Azer Ribeiro, me dá o seu chaveiro – costumavam pedir, numa rima improvisada.
                 E lá ia ele abrir a porta da sala.
               Aos sábados, passou também a ir ao colégio para abrir os vestiários, verificar os cadeados dos portões, enfim, zelar pela segurança da escola. O pessoal do Grêmio fazia uma vaquinha, dava-lhe uns trocados, convidava-o para uma cerveja num dos vários botequins perto do colégio.
               E ele foi-se prendendo aos rapazes, deles tornou-se amigo, convidava-os a visitá-lo em sua casa modesta, lá em São Gonçalo, no Encruzo do Maricá.
               Mas, o ponto alto de Azer era o desfile de Sete de Setembro. Ali se sentia realmente realizado.
               Era o responsável pela organização e harmonia da bateria do colégio. Começava os ensaios no final de julho, primeiro na quadra de basquete, depois na pista de atletismo e depois, nas ruas que circundavam o Liceu.
               Havia algumas figuras tradicionais que compunham a bateria, como o Aluisio, moreno alto, magro, que era eximo tocador de tarol e que, mesmo tendo deixado o Liceu em 1956, era chamado todo ano por Azer para tocar na bateria. No bumbo, o Estoniano, louro, filho de imigrantes europeus, dois metros de altura, responsável pela marcação.
                E, depois de exaustivamente ensaiados, chegado o grande dia, aguardavam com ansiedade a hora de desfilar, na concentração do Jardim São João.
                O Liceu, geralmente, era o último a entrar na Amaral Peixoto. Saíam do Jardim São João, desciam a rua do mesmo nome, dobrando à esquerda na Visconde do Rio Branco, a rua da praia.
                 Finalmente, com a platéia já aplaudindo, entravam garbosamente na larga avenida, a Amaral Peixoto. Antes, já haviam desfilado o Plínio Leite, o Batista, o Bittencourt Silva, o José Clemente e o Salesianos, o grande rival, com sua afinada banda de instrumentos de sopro.
               A multidão ficava dos dois lados da avenida aplaudindo a passagem dos estudantes, vestidos impecavelmente nos trajes de gala dos respectivos colégios.
                –Esse ano o Salesianos vai ganhar. Viu só a beleza da banda? – diziam uns.
                –Que nada, espera o Liceu passar, aí você vai ver o que é desfile – replicavam outros.
               E, realmente, quando as duas Gulivetes do Vinícius e do Marquinhos surgiam evoluindo, fazendo o oito no início da avenida, junto da estação das Barcas, seguidos do Izapuam e da Celinha, uniformes azul e branco limpinhos, luvas brancas empunhando e agitando as grandes bandeiras azuis com as letras L N P no centro, depois a força do tarol do Aluísio e do bumbo do Estoniano comandando o resto da bateria, a multidão entrava em delírio. Todos aplaudiam, atiravam papel picado e serpentina das janelas dos edifícios, era finalmente o Liceu que acabara de entrar na avenida. Quase quinhentos alunos dos turnos da manhã e da tarde, em marcha cadenciada, disciplinada, parecendo um corpo só que cantava:

“Liceu, caminhemos a cantar,
“Para frente, sempre, sempre avante,
“Liceu, patrimônio a resguardar,
“É o orgulho do bom estudante”.

                  E depois, o grito de guerra, todos cantando juntos, forte, bem alto para que toda a avenida ouvisse:
LI-CEU... LI-CEU... LI-CEU!!!
                 E Azer Ribeiro, feliz, com o apito na boca, luvas brancas naquele seu grande dia de gala, à frente da bateria, marcando o compasso das batidas das caixas, surdos e taróis. Não tínhamos o luxo dos instrumentos de sopro, colégio público que éramos, mas tínhamos uma garra difícil de ser vencida.
                Divulgado o resultado do concurso da Prefeitura, mais uma vez Liceu campeão...


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                  O aproveitamento escolar é que continuava descendo ladeira abaixo. Aquele aluno exemplar, sempre com excelentes notas do ginasial, deu lugar a um estudante que fazia apenas o suficiente para passar de ano. Raspando, notas no grau mínimo...
                  Estava muito envolvido com as coisas do colégio, com o seu Grêmio. Vivia e respirava Liceu o dia inteiro. Depois das aulas da manhã, chegava em casa, almoçava e voltava correndo para o colégio. Ia para a sala do Grêmio, lá no fim do corredor do primeiro andar, perto de uma das escadas que dava acesso para o segundo andar. Ali ficava a tarde toda, organizando campeonatos internos, marcando jogos amistosos com outros colégios, planejando excursões. Ele e outros diretores atendiam também os alunos do turno da tarde, que iam fazer suas carteiras do Grêmio e da FESN, comprar passes de trolley. Faziam “A Hora do Grêmio” vespertina, tinham mil e uma tarefas a realizar. E, três vezes por semana, ainda iam atender o turno da noite, na confecção de carteiras e venda de passes.
                 Costumavam, ao deixar o colégio lá pelas cinco da tarde, quando se encerravam as aulas, dar uma passada na Gruta de Capri, no início da Miguel de Frias, em Icaraí, onde já os esperava o Braz, garçom italiano, bonachão, voz calma e pausada, que lhes servia várias rodadas de chope, mesmo tendo Marquinhos apenas 16 anos. Mas, Izapuam já tinha mais de 18, por isso ele os servia.
                Outro local de encontro freqüente era o Bar Palmira, esquina de Lemos Cunha com Mariz e Barros, onde o dono, um português chamado Manuel e seu sócio Alfredo, vulgo Fred, já eram antigos conhecidos de Izapuam e ali os dois passavam vários fins de tarde.
                Esse contato com todas as séries do colégio fez com que se aproximassem de alunos de turmas mais atrasadas, como as do quarto ginasial e primeiro científico e clássico.
                Um deles foi Josa, que se agregou a Marquinhos, Izapuam e Sergio, passando a ser figura integrante e atuante do grupo que já dominava o Liceu.
                Entre as meninas, uma das mais importantes foi Celinha. Menina alegre, descontraída, estudava no ginasial quando se aproximou do pessoal do Grêmio. Fez logo amizade com todo mundo e não saía da sala da agremiação, ajudando aqui e ali. Morava no então distante bairro do Saco de São Francisco, que ainda era um grande loteamento com poucas casas, ruas de terra, sem água, esgoto ou asfalto implantados. Por isso era conhecida como “Celinha do Saco”. Foi a responsável pela elaboração do primeiro estatuto do Grêmio, que passou a ser conhecido como o “Estatuto da Celinha”, que só tinha dois artigos. Muito simples por sinal, sem complicações. O primeiro dizia que as decisões da diretoria eram irrevogáveis, não admitindo contestações. E o segundo estabelecia que ficavam revogadas as disposições em contrário. Mais democrático que isso, impossível.
                   Um dia, de manhã, ela e outros alunos estavam matando aula na sala do Grêmio, ajudando na confecção das tabelas do Campeonato de Vôlei Feminino que ia começar no sábado seguinte.
                   Nisso, alguém gritou:
                   -- Corram, corram... o diretor vem aí...
                  Dois rapazes que também matavam aula correram e pularam a janela que dava acesso para uma pequena rua atrás do colégio. Celinha foi atrás. Mas, hesitou na hora de pular, era muito alto até o chão. Rapidamente, Izapuam e Jorge, os mais fortes do grupo, foram até a janela, baixaram-na para o lado de fora e ficaram segurando seus pulsos para que não caísse ao chão. Ficaram os dois de costas para a janela, uma das mãos de cada um para fora da mesma segurando as mãos de Celinha suspensa no ar, do lado de fora.
                   O professor Aldo chegou à porta, cumprimentou todo mundo, deu uma olhada no ambiente, perguntou:
                   -- Tudo bem por aqui? Não tem ninguém perdendo aula, não é seu Marcos?
                   -- Não senhor, professor. Nós estamos em intervalo. Nosso professor faltou.
                   O diretor ainda deu uma outra olhadela, deve ter estranhado aqueles dois alunos encostados na janela com uma das mãos para fora, assoviando e olhando para o teto, mas nada disse. Retirou-se, silencioso.
                   Do lado de fora, na rua, os dois outros alunos que tinham pulado a janela antes de Celinha saíram de seus esconderijos num matagal ali próximo e ajudaram-na a descer ao chão. Depois, um deles disse:
-- Puxa, Celinha, foi sem querer, eu não queria ver, mas vi. A cor da sua calcinha era preta, desculpe.


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                  – Cininha, por favor, aproveita o teu intervalo e copia essa aula para mim.
                  Ele, o suor escorrendo pelo rosto, bebia água num tanque existente no pátio, deixando o líquido molhar-lhe os cabelos e a face. A camisa branca do uniforme estava molhada de suor e manchada pelas marcas da bola de borracha. Ela, sentada calmamente num banco de cimento ao lado, lia um livro de Geografia. Ele passou-lhe o caderno de uma colega com a aula do dia e o seu em branco.
                  – Mas, o que você vai fazer, Marquinhos? Tá matando aula?
                  Ele, com o dedo indicador nos lábios, como se pedisse silêncio.
                  – Tou sim, Cininha, fala baixo. Tou no meio de um racha lá na quadra de basquete. O meu time está perdendo e agora vai começar o segundo tempo.
                 Do pessoal das turmas mais novas, Cininha foi quem mais dele se aproximou, mais ficou sua amiga.
                 Estudava numa série uns dois ou três anos mais atrasada que ele.
                Talvez ela estivesse no ultimo ano do ginásio ou no primeiro do hoje segundo grau quando ele estava terminando o antigo científico. Moreninha de olhos escuros, dois dentinhos salientes na frente (ganhou logo o apelido de Esquilo), cabelos curtos, gravata solta displicentemente no pescoço, tornou-se sua maior amiga e companheira. Ele não tinha muitas amigas do sexo feminino, seu mundo era mais o de Izapuam, Sérgio, Antonio e Josa.
                Mas, Cininha era especial. Diferentemente de Celinha, que era a agitação em pessoa, era calma, tranqüila, jamais elevava a voz, sabia ouvir e conversar. Era a irmã (talvez a namorada) que ele sempre quis ter. Passavam horas e horas conversando, debatendo os problemas pessoais, familiares, da juventude daqueles dias. Ele, que, atualmente, faltava muito às aulas, totalmente absorvido pelas atividades do Grêmio, costumava repetir aquele pedido. E ela pacientemente copiava as aulas do terceiro científico, antecipando as matérias que só iria dar dois anos depois.
                Iam a bailes juntos, festas, jogos no Caio Martins, passeavam por Icaraí e outros lugares. Ela participou de várias excursões organizadas pelo Grêmio, como a Angra dos Reis e Colégio Naval. Ele a colocou como capitã do time de vôlei feminino do colégio, sendo ela a inspiradora da camisa amarela e azul que passou a ser o uniforme oficial esportivo do Grêmio.
                 Disse-lhe uma vez:
                 -- O amarelo ouro combina muito bem com o moreninho da tua pele.
                 E, apesar de sentir uma enorme atração por ela, nunca lhe falou em namoro, nunca lhe deu um beijo no rosto, nem a mão sobre seu ombro uma vez colocou. Talvez por timidez, talvez com receio de receber uma resposta negativa e terminar com aquela amizade que era tão importante para ele. Naquele tempo, na realidade, ainda não pensava em namoro sério, não tinha tempo a não ser para o Grêmio, queria tomar seus chopes na Gruta ou no Manuel’s, não queria se prender a ninguém. Também, talvez ela nunca tivesse pensado nele em termos de namoro. Eram excelentes amigos, quase irmãos, isso era tudo. Mas, quem sabe?
                 Conhecê-la e tê-la como amiga foi, na realidade, uma das coisas mais importantes de sua vida.


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                   -- O homem não deixou -- disse Jorge, desanimado. – Falou que se a gente for, vai suspender todo mundo.
                   -- Porra, sacanagem. Eu bem disse que a gente não devia ter falado nada pra ele – disse Marquinhos.
                   -- Mas, eu, como presidente do Grêmio, não podia deixar de comunicar-lhe. Afinal, vamos perder uma semana de aulas – rebateu Jorge.
                   -- E, agora, com tudo pronto, as passagens na mão, o pessoal lá esperando a gente... – lamentou-se Josa.
                  Tinham recebido, uns vinte dias antes, convite do Liceu de Cachoeiro do Itapemirim, Espírito Santo, para os Jogos Interliceus. Iriam o de Campos e vários outros do Espírito Santo. Várias modalidades de esporte: futebol, basquete, vôlei, natação, tênis de mesa, atletismo. Era a grande chance que o Liceu de Niterói esperava, a aventura maior de competir em outro Estado.
                  Conseguiram, através da Secretaria de Educação, as passagens de trem para 42 pessoas. Ficariam alojados em casas de alunos do Liceu de Cachoeiro, que nos ofereceram a hospitalidade.
                   E agora, o Professor Aldo não queria deixar o pessoal ir !!!
                  --Eu acho que a gente deve ir no peito. Depois, vê no que vai dar – disse Marcos.
                 Jorge, o presidente, refletiu por um minuto. Depois, resolveu:
                -- Tá certo. Vamos marcar uma reunião com todos os atletas convocados, explicar a eles o que está havendo e decidir com a maioria.
                 Feita a reunião, todos concordaram em desobedecer o diretor.
                 E lá foram eles. Viajaram 15 horas de trem, participaram de todas as competições, foram bem em algumas, deram vexame em outras, encantaram o pessoal de Cachoeiro, travando com eles sólida amizade. Tiveram noites divertidíssimas no alojamento do ginásio local, com brincadeiras, gozações, noites de violão e muita cerveja. Daquela excursão resultaram até alguns casamentos no futuro.
                 Uma semana depois, a volta.
                Na segunda-feira seguinte, todos meio escabreados, voltaram para as salas de aula. As monitoras entregavam um bilhetinho a cada um dos atletas, convocando-os para uma reunião no gabinete do diretor.
               Lá, todos reunidos, o Dr. Aldo sentado em frente à sua mesa, fisionomia fechada, mais sério que o costume. O olhar severo de sempre atrás das grossas lentes claras dos óculos.
               --E então, qual a explicação que vocês me dão?
               Jorge, o presidente, meio encabulado, tentou explicar:
               -- Desculpe-nos, professor Aldo, mas foi a decisão unânime de todos os atletas... tomada em assembléia geral...
              O diretor, ainda com a mesma fisionomia fechada, ficou em silêncio por alguns instantes. Passou os dedos pelos ralos cabelos brancos. Depois, esboçou um sorriso e disse:
               -- Eu quero é saber quantas medalhas vocês trouxeram...
               Os alunos riram, aliviados, abraçaram-se. Exibiram com orgulho as medalhas conquistadas. O diretor cumprimentou um a um.
               No final, a advertência:
               -- Não me repitam mais isso.
              É, na verdade, o Professor Aldo já não era mais o mesmo... amolecera o coração...


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                 Final de 1959.
                 Festa de formatura do científico.
                 O Teatro Municipal de Niterói, o João Caetano, lotado.
                A grande mesa, presidida pelo diretor, o Professor Aldo, estava enfeitada por uma linda corbeille de flores. Quase todos os professores a compunham. Atrás, os alunos do científico e do clássico. Depois dos discursos e cerimônias habituais, o diretor chamava um a um, que, acompanhados do padrinho ou madrinha, recebiam o diploma que simbolizava o término de uma fase de suas vidas. Talvez, a mais bonita de todas, término do fim da irresponsabilidade da adolescência e início dos deveres da vida adulta. Marcos, dando o braço à mãe, recebeu o diploma, enquanto apertava a mão do Professor Aldo e meditava sobre aquele momento.
                 Enfim, era hora de abandonar o Liceu querido, “razão de ser da própria vida”, como cantava seu glorioso hino.
                Os formandos, todos felizes, contentes, um sorriso nos lábios. Uma nova vida iria abrir-se para eles. Quantos se reencontrariam no futuro? O que seria de suas vidas? Advogados, engenheiros, médicos, dentistas? O que lhes reservava o futuro?


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                 Ele não se conformou.
                 O colégio era sua vida, só ali se sentia bem.
                Mesmo tendo sido aprovado no vestibular para Direito, matriculou-se no curso clássico do Liceu.
                 Não deixaria de usar o uniforme querido...

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