ABUSO
DE AUTORIDADE...
EXCLUDENTE
DE ILICITUDE...
Calfilho
Lamentável,
para não dizer revoltante...
Quantas
vezes este ano que está por terminar, o macabro 2020, nos trouxe, nas páginas
dos jornais ou noticiários da televisão, mais um caso de morte de inocentes,
muitos deles simples crianças, a maioria moradores de comunidades carentes,
envolvendo policiais militares (em sua grande parte) ou civis? E, também,
seguranças de estabelecimentos comerciais.
A
pandemia da COVID-19 é a pior coisa que aconteceu este ano, para torná-lo tão
macabro. Já ceifou a vida de quase 200 mil brasileiros. Mas, a morte de
inocentes, em “confrontos” em que a polícia esteve envolvida, ou mesmo quando
este sempre alegado “confronto” inexistiu, talvez tenha sido a segunda pior
tragédia deste 2020 que ora se finda.
É
a tecla em que venho batendo desde o início de minha atividade profissional, a
maior parte passada na área criminal: temos que ter muito cuidado em preparar psicológica e profissionalmente nossos policiais (ou seguranças particulares)
antes de entregar-lhes uma arma de fogo. Em tese, para nos defender, mas, que,
muitas das vezes, acaba virando contra a própria sociedade, ceifando vidas de
inocentes. E, olhe que não são armas leves, quase sempre poderosos fuzis,
armamento de guerra.
É
claro que a criminalidade evoluiu muito nesses últimos 30 anos. Organizou-se,
armou-se com armas contrabandeadas, também de grosso calibre, e os jornais
televisivos mostram que eles transitam livremente pelas comunidades mais
carentes portando ostensivamente todo esse armamento. Criaram-se as milícias,
cujos membros, em grande parte, são ex-policiais expulsos de suas corporações
ou contraventores ligados ao conhecido jogo do bicho, e parecem querer dominar
o espaço público. Assaltam caminhões de carga nas estradas, constroem
irregularmente prédios em terrenos públicos, cobram taxas de segurança para os
pequenos comerciantes das comunidades e mesmo de bairros afastados, usam o
terror como arma principal para obter o domínio da região.
Lógico
que é sabido que essas quadrilhas se refugiam nessas comunidades, pois sabem
que ali falta quase tudo, onde o Estado não está presente e é muito fácil
controlar aqueles que necessitam de transporte, de comércio, de luz, gás,
internet, etc... A polícia raramente aparece nessas comunidades e, quando o
faz, age de forma atabalhoada, agressiva, truculenta, invadindo barracos,
intimidando moradores honestos, que trabalham, que estudam, que lutam por uma
melhor situação de vida.
Por
isso, necessário que a polícia esteja fortemente armada para enfrentar um
inimigo de tão alto poder de violência e intimidação. Mas, antes de tudo, que
os policiais que vão usar estas armas estejam psicologicamente preparados e
treinados para esse uso. Não podem entrar nas comunidades atirando a esmo,
temerosos de qualquer movimento suspeito que pensam ter visto, e atingindo
inocentes que ali residem por não terem outro lugar para morar.
Infelizmente,
não é isso o que se vê.
A
grande maioria de nossos policiais (civis ou militares), jovens recrutados nas
classes menos favorecidas da população, grande parte com baixo nível de
escolaridade, sem o treinamento adequado, sem uma rigorosa seleção psicológica,
colocam uma farda ou portam um distintivo, pegam uma arma de alto poder letal e
vão para as ruas cumprir missões para as quais evidentemente não estão
preparados.
Aí,
uma menina de 11 anos, aluna de uma escola pública, que brincava com colegas na
hora do recreio, é morta brutalmente porque policiais militares perseguiam um
suspeito fora da área do colégio e dispararam seus fuzis nessa perseguição.
Ou
um carro que trafegava por uma rua da zona norte é metralhado porque policiais
de uma patrulha receberam comunicação pelo rádio de que um veículo com as
mesmas características transportava bandidos em fuga. Sem uma abordagem, sem
nada. “Atira primeiro, pergunta depois...”.
Ainda
um menino que é atingido e morto por tiro de fuzil quando estava no interior de
sua residência, em São Gonçalo, em outra alegada diligência policial na
comunidade pobre em que morava...
Mais
duas meninas que conversavam na porta de uma casa humilde de outra comunidade
carioca também são mortas porque a polícia entrou abruptamente na favela
alegando procurar um perigoso delinquente...
E,
ainda mais recente, dois jovens que transitavam em uma motocicleta por uma via
da Baixada são atingidos por tiros de fuzil, presos, colocados na viatura
policial e aparecem mortos em outro local...
Alguns
desses casos foram gravados por câmeras de vigilância... e os outros? Quantos
mais não o foram?
Sei
que o problema é de difícil solução. Mas, esta não pode ser encontrada com
“tiros na cabecinha” ou com entradas espalhafatosas em comunidades, com
policiais despreparados atirando descontroladamente as armas que portam, sem
que sejam tomadas cautelas mínimas para evitar a morte de inocentes...
Não
adianta o porta-voz da corporação vir perante às câmeras da TV e dizer que
“houve confronto”, que “os policiais não dispararam”, “que um inquérito
rigoroso vai ser instaurado”. Suas palavras não vão diminuir a dor dos pais,
filhos, parentes daqueles que são enterrados em consequência de um ato
estúpido, truculento praticado por alguém que não estava preparado para usar
uma arma tão poderosa...
Muitos
afirmam que o problema da violência policial contra pobres e pretos seria,
acima de tudo, racismo...
Essa
afirmação foi veementemente sustentada após o espancamento bárbaro de um
cliente negro por seguranças de um supermercado no Rio Grande do Sul. Violência
que resultou na morte da vítima. Dois “seguranças” brancos que espancam um
negro até a morte. Fato assistido por uma supervisora do estabelecimento que
tenta, inclusive, impedir o registro da cena por um celular de entregador de
mercadorias, fazendo-lhe ameaças. Tudo gravado de diversos ângulos, desde o
início da discussão entre o cliente e uma caixa, a intervenção dos
“seguranças”, até o momento final da bárbara e covarde agressão, num outro
local do estabelecimento.
Não
resta dúvida de que o ingrediente “racismo” está presente nesse tipo de
violência. Até porque quem veste uma farda, seja de policial ou simples
segurança particular, considera-se investido de uma autoridade excepcional
contra os seus semelhantes, principalmente se for um negro e pobre, por
considerá-los inferiores, parentes próximos da marginalidade, segundo seus deturpados
conceitos.
É
o famoso “sabe com quem está falando?”, há muito impregnado na cultura
brasileira. Além das autoridades do “alto escalão”, todo aquele que usa uma
farda ou um distintivo de uma instituição pública também se considera como tal.
Mais modernamente, surgiram os coletes, para indicar que esse ou aquele
servidor pertence a determinado órgão público. Tais como “Defesa Civil”,
“GAECO’, “Meio ambiente”, “Ministério Público”, “Segurança” e tantos outros que
proliferaram nos últimos anos...
Então,
por ostentarem uma farda, um distintivo, um colete, se acham superiores aos
outros cidadãos, principalmente se estes pertencerem a classes menos
favorecidas da sociedade... O que vimos gravado no episódio do supermercado de
Porto Alegre, com o espancamento covarde (um imobilizando, outro dando socos e
pontapés), que acabou com a morte do cliente, vai bem por esse enfoque do abuso
da “autoridade”. Pode ter existido algum racismo, mas acho que muito mais
prepotência, arrogância, o “sabe com quem está falando?” por parte dos
“seguranças” autores do assassinato e da cúmplice supervisora, que nada fez
para impedir o massacre e até quis impedir que a cena grotesca fosse gravada...
Quando
ainda era ministro da Justiça, o ex-juiz Sergio Moro, famoso por ter combatido
a corrupção, quis introduzir no nosso Código Penal uma excludente de “ilicitude”
para policiais que cometessem um homicídio “por medo, ou receio” quando no
exercício da função. Excludente de ilicitude, segundo o nosso Direito Penal,
significa que “não há crime”, ou seja, no caso do homicídio em particular, a
morte de alguém teria sido um ato lícito.
Nosso
ex-ministro talvez fosse mais especializado nos chamados crimes de colarinho
branco, na corrupção ativa e passiva. Mas, apesar destes também poderem ser
praticados por policiais, a tal excludente visava absolver por ausência de
ilicitude (não isentar de pena, o que é outra coisa), o agente da lei que
matasse outrem “por medo ou receio”. Pronto, a farra estaria completa e os policiais
e demais “autoridades” poderiam legitimamente “atirar antes, para perguntar
depois”, pois teriam certeza de que estavam agindo legitimamente.
Acho
que essa não era a área do ex-ministro, que, felizmente, não foi adiante. Mas, é claro, só fez essa tentativa por
influência superior, que, desde a campanha eleitoral sempre esteve a favor da
classe policial, e tem nela um forte apoio à sua gestão.
Tanto
que, já com Moro longe, voltou agora, recentemente, a insistir na inclusão
dessa aberração em nosso ordenamento jurídico. Isso ocorreu num comício recente
que fez num centro de abastecimento em São Paulo.
Aliada
à intenção do governo da liberação total de compra e posse de armas (até o
imposto de importação foi zerado), com essa excludente, vamos ter mais
inocentes mortos em “confrontos”, em “diligências”, em invasões espalhafatosas
em comunidades carentes, em “rigorosos inquéritos” para apurar
responsabilidades, com mais policiais engrossando as já poderosas milícias em
nossas cidades...
E,
todos portando suas armas, vamos assistir duelos nas ruas, nas estradas, nos
condomínios, e vão sair vitoriosos aqueles que conseguirem “sacar” primeiro...