P A I X Ã O . . .
CALF
– Eu já não sei mais o que fazer.... Dá vontade de largar tudo e me mandar para o interior... Já pensei numa casinha em Friburgo, num lugar sossegado, só p'ra mim e a Maria – disse Amâncio, jogando as cartas sobre a mesa.
Mário, olhando para as próprias cartas, escolhia qual a melhor jogada a fazer. Decidiu-se e comprou uma carta do "morto".
– Eu também já pensei nisso, mas p'ra mim, que sou sozinho, acho que vou ficar muito mais isolado. Aqui, pelo menos, os filhos e netos vêm me visitar, estão sempre por perto se alguma coisa me acontecer...– Parou de falar por um momento, como se estivesse refletindo. Continuou, voz baixa, quase um murmúrio: – Mas, isso aqui, realmente, está muito perigoso de viver, já não se pode mais nem sair à rua, é violência por todo canto...
Baixou uma trinca de reis.
– Eu já estou de saco cheio – disse Roberto, olhar atento nas cartas que tinha nas mãos. Baixou uma seqüência de espadas. – Já não tenho mais coragem de sair à noite, de ir a um teatro ou assistir um show. Nem mesmo para o meu chopinho no botequim do Arnaldo, coisa que fazia diariamente antes de dormir, hoje tenho ânimo para sair de casa.
Alberto ouvia tudo em silêncio, nada comentando. Olhava distraidamente para as cartas abertas à sua frente, olhar distante, como se estivesse desligado do jogo e da conversa.
Os quatro amigos, todos beirando os oitenta anos de idade, distraíam-se jogando buraco naquele cantinho do Posto seis, ponto tradicional de encontro dos idosos de Copacabana, lugarzinho cercado, em frente à praia, junto do local onde alguns anos antes se situara o imponente Cassino Atlântico, depois os estúdios da extinta TV - Rio. Em várias mesas espalhadas no cercado de lona, outras senhoras e senhores passando dos setenta conversavam animadamente.
Mário continuou:
– Quem diria que a cidade iria se transformar no que está agora... Lembra, Alberto, quando a gente brincava o Carnaval, pulando dos estribos dos bondes, fantasiados de palhaço ou mascarados, fazia a ronda por todos os bares de Copacabana e ia acabar na Fiorentina, lá no Leme, só indo p'ra casa às seis da manhã, dia clareando, conversando alto pela Atlântica, todo mundo de pilequinho?
– E as batalhas de confete e serpentina da Galeria Cruzeiro, aquele monte de mulher bonita desfilando pela Rio Branco... – lembrou Roberto, com um olhar de melancolia.
– Vai fazer isso agora, p 'ra ver o que te acontece... Tu chega nu em casa, se conseguir chegar vivo... Te roubam tudo, até a roupa do corpo, se bobear...
Alberto continuava sem nada dizer, uma guimba de cigarro no canto da boca, os ralos cabelos brancos esvoaçando com a brisa gostosa daquele fim de manhã de sol esplendoroso da "Princesinha do mar"... Olhava ora para as cartas, ora para o jogo que estava sobre a mesa, inteiramente concentrado no jogo.
– Não, eu não agüento mais ficar por aqui – repetiu Amâncio, um pouco exaltado, enquanto virava o resto de chope que havia em sua caneca. – Não se tem mais liberdade de sair à rua, todo mundo vive com medo, trancado em suas casas. Outro dia mesmo, na quinta-feira, 8 horas da manhã, vejam bem, 8 horas da manhã, depois de ter caminhado cedo na praia, voltava para casa e esperava o sinal abrir na esquina de Nossa Senhora com Santa Clara. Calmamente, distraído, pensando na morte da bezerra, quando comecei a ouvir : PUM! PUM! TAC! TAC!... Sem brincadeira… Mais de vinte tiros… Depois, os carros de polícia, em disparada pelas ruas, sirenes abertas, policiais com armas na mão.... Gente se jogando no chão, procurando abrigo nas lojas que começavam a abrir... Uma zorra total... Depois vim a saber que fora uma tentativa de assalto num caixa eletrônico na esquina da Figueiredo... Que loucura....
A praia estava praticamente lotada. As barracas multicoloridas imprensavam-se umas contra as outras, as ondas fortes beijavam com violência a areia clara, fazendo ressaltar a beleza indescritível de um dos mais famosos e belos cartões postais do mundo. No calçadão e na pista interditada aos domingos para o lazer dos cariocas, uma multidão de pessoas caminhava, corria, pedalava, outros apenas passeavam, aproveitando aquela maravilhosa manhã de domingo que só o Rio consegue oferecer.
– Eu também, acho que me mudo para o interior. Estou vendo alguma coisa lá pelos lados de Mangaratiba, pois não sei ficar longe da praia. Lá tem uns sítios bons, não são muito caros – disse Roberto. – Não quero acabar morrendo por uma bala perdida ou sendo assaltado por um bando de pivetes na rua.
– Pois é – prosseguiu Mário. – Minhas filhas já foram assaltadas nos ônibus, meu neto teve o celular arrancado das mãos outro dia desses. Até seus tênis os moleques já levaram...
– E vai tentar reagir, oferecer resistência – interrompeu Amâncio. –- Acaba levando um tiro ou uma facada, morre estupidamente nas mãos de um boçal desses...
– Viu aquela menina da Tijuca, semana passada? – indagou Roberto. – Os pais não deixavam ela sair sozinha na rua, iam levá-la e buscá-la no colégio todos os dias. Na única vez que permitiram que voltasse sozinha para casa, uma estação só do metrô, acontece aquela tragédia... Só quatorze anos, uma vida estupidamente perdida... Esse é o nosso Rio de Janeiro, a "Cidade Maravilhosa"...
– Tá parecendo Chicago dos anos 20, cidade sem lei, dominada por Al Capones, Dillingers, etc... – filosofou Mário.
– E os camelôs nas calçadas? – interveio Amâncio. – Aqui, na Nossa Senhora e no centro, não se pode mais andar pelas calçadas. Tem-se que passar pelo meio da rua, correndo o risco de ser atropelado.
– É verdade – concordou Roberto, ar de desânimo na voz. – E nós, que já estamos velhos, é que sofremos mais. Os carros não respeitam quando a gente atravessa as ruas, vêm para cima mesmo. E, somos os alvos preferidos dos pivetes e assaltantes. Juntam dois, três, empurram a gente, levam tudo que a gente carrega.
– E você, Alberto, não diz nada? Vai dizer que também não tem medo de viver aqui? – perguntou Amâncio.
Alberto, com o mesmo ar calmo e tranqüilo que mantinha até ali, olhou mais uma vez para as cartas que tinha nas mãos. Depositou-as suavemente sobre a mesa. Disse, olhando triunfalmente para os companheiros:
– Bati...
Os outros olharam desanimados para as cartas sobre a mesa. Mario chamou o garçom e pediu uma outra rodada de chope. Amâncio insistiu:
– E, então, Alberto, você não diz nada?
Ele coçou a cabeça, passando os dedos por entre os fios de cabelos brancos. Virou o resto do chope, acendeu um outro cigarro. Respondeu, voz macia, as palavras saindo-lhe vagarosamente pela boca onde alguns dentes já faltavam:
– Olha, vocês querem saber de uma coisa? Eu daqui não saio não. Nasci aqui, aqui fui criado, estudei, trabalhei e me casei. Minha mulher já morreu, a gente não teve filhos. Não tenho nenhum parente vivo e, mesmo que tivesse, não ia dar trabalho a ninguém no fim da vida. Vi essa cidade crescer, transformar-se, acompanhei as diversas fases da sua evolução. Aqui tenho de tudo: praia, montanha, floresta, comércio bom e variado, conheço todo mundo no meu quarteirão, padeiro, jornaleiro, bicheiro, farmacêutico, dono de botequim. Amo minha praia, adoro passear no centro da cidade, fazer um lanche na Colombo, tomar um chope no bar Luiz ou no Brasil, lá na Lapa. Não há nada que se compare ao almoço de domingo num desses restaurantes da beira da praia, onde fico mastigando alguma coisa, vendo as meninas desfilando nos seus biquínis mostrando quase tudo. Conheço cada esquina, cada buraquinho de Copacabana. Aqui vi a bossa nova nascer, lá no beco das Garrafas, freqüentei o Vogue, o Sacha's, o Copacabana Palace... Vi Heleno de Freitas jogar futebol na areia dessa praia, João Saldanha era meu vizinho na Miguel Lemos... Copacabana e o Rio fazem parte do meu corpo, da minha alma... Estão na minha pele, são meu sangue, me alimentam, me trouxeram até os meus 78 anos de vida... Esses bandidinhos que andam por aí, esses marginais de meia tigela, não vão me expulsar da minha cidade, não me metem medo... eu já vivia aqui muito tempo antes deles... se quiserem me matar, que matem, mas como dizia aquela antiga musiquinha de carnaval : '' DAQUI NÃO SAIO, DAQUI NINGUÉM ME TIRA... " . Aqui é minha cidade, tenho verdadeira paixão por ela, nela nasci e, se Deus quiser, nela vou morrer...
Quase todos os freqüentadores do local levantaram-se e bateram palmas, entusiasmados e emocionados, relembrando, talvez, um Rio de Janeiro que já não exista mais....
terça-feira, janeiro 15, 2008
NIKITA DO LNP...
NIKITA DO LNP
CALF
– Psiu, neném! Não pode, não!!!
Lá vinha ele, no seu costumeiro terno marrom, o dedo indicador balançando naquele seu característico gesto de “não pode”. Descia os degraus da escada que dava acesso ao pátio e caminhava com passos vigorosos em direção à quadra de basquete. O pessoal interrompia por segundos o “racha” que acabara de começar.
Eu, que estava matando aula, disse para Serrinha:
– Vai lá, Serrinha, fala com ele que vocês estão de intervalo. Eu não posso aparecer porque estou matando.
A turma do Serrinha era do primeiro científico. Ele, um pouco temeroso dirigiu-se ao chefe dos inspetores de disciplina:
– Poxa, “seu” Borges, a gente está de intervalo, a professora de História faltou.
Ele, ainda sob a sombra acolhedora do pátio, olhou para Serrinha, depois para o pessoal que estava na quadra, a uns dez metros de distância. Eu procurei ficar atrás de um “cara” da turma deles, o Mangelli, tentando evitar que ele me visse.
Disse para Serrinha:
– Vocês já sabem que o diretor não permite futebol a não ser na hora do recreio.
Continuava a olhar para os garotos na quadra, tentando descobrir alguém de outra turma.
– Mas, “seu” Borges, a gente estava terminando uma partida interrompida no outro dia. Não tem mal nenhum, a gente não tem aula mesmo – tentou argumentar Serrinha.
– Mas, o diretor não deixa. Vocês gritam muito, perturbam os outros que estão em aula. Além disso, depois vão para a sala todos suados, não prestam atenção à nada, ficam conversando o tempo todo – retrucou “seu” Borges.
Repentinamente, dirigiu-se em passos rápidos para a quadra.
“Pronto, ele me viu, tou ferrado” – logo pensei.
Ainda na pista de atletismo, no limiar do cimento da quadra, parou. Falou baixo, quase um sussurro:
– “Seu” Carlos, por favor, venha aqui.
Saí detrás do Mangelli, caminhei vagarosamente em sua direção.
Ele indagou, sério:
– O que o senhor está fazendo aí, misturado com essa turma?
Pensei um instante antes de responder.
– Estava vendo umas coisas do Grêmio, “seu” Borges. Acabei me atrasando, perdi a aula. Também não era tão importante, era História, já tenho nota pra passar – emendei rápido.
– E aí o senhor vem jogar bola com o pessoal de outra série, não é?
Respondi, meio sem jeito, um pouco de cinismo na voz:
– Eu estava à-toa, eles precisavam de alguém para completar um dos times...
Mesmo com o uniforme já molhado de suor, aproximei-me dele, coloquei o braço esquerdo, ensopado de suor, sobre seu ombro.
Quase implorei, voz de pidão:
– Puxa, “seu” Borges, deixa os garotos brincarem. O jogo está empatado, eles apostaram dez cocas. Se o senhor quiser, eu saio, vou lá para o Grêmio, ou fico quieto, sentado aqui num banco, conversando com Cenira. Vou levar falta mesmo.
Ele olhou para mim, ainda com a fisionomia séria. Depois de alguns segundos, não conseguiu esconder um esboço de sorriso que lhe aparecia nos lábios. Afastou minha mão do seu ombro, limpando o suor que lhe molhava o paletó.
– Bem, desta vez passa – disse. – Agora, vejam se vocês não fazem barulho.
Virou as costas e voltou para o pátio, balançando a cabeça para os lados, num gesto de conformismo.
Assim era o “seu” Borges, em 1959, ano em que eu cursava o terceiro científico. No ano anterior, 1958, era muito mais rigoroso, realmente não permitia o jogo de futebol a não ser na hora do recreio. Chegou a apreender e furar várias das nossas bolas de borracha que levávamos para o colégio.
Mas, naquele ano, com a força que o Grêmio alcançou junto ao Professor Aldo, nosso diretor, bem como as atividades aos sábados, intensificadas nos recreios, quando até as meninas levavam bolas de vôlei para uma brincadeira naquele curto período, ele foi amaciando um pouco o rigor.
Era baixinho, pouco mais de um metro e sessenta. O terno marrom era sua marca característica bem como o cabelo todo branco, cortado bem rente, quase à moda escovinha, enevoando-lhe a cabeça. Daí, devido à semelhança que tinha com o então premier russo, Nikita Kruschev, que de diferente tinha apenas a cabeça raspada, passamos a chamá-lo de Nikita. Era o Nikita do LNP em oposição ao Nikita da KGB...
Ele, a princípio não entendeu a origem do apelido. Depois que soube, riu gostosamente, aceitando-o sem reclamar.
Tinha dois filhos que também estudavam no Liceu, Wilson e Carlinhos Borges. Por isso, talvez não se sentisse muito à vontade em proibir os “rachas” dos alunos, porque seus filhos também adoravam futebol e, não raro, eram surpreendidos por ele matando aula e disputando uma pelada animada.
Vivíamos nessa briga de gato e rato com ele. Começávamos um “racha” e dez minutos depois lá vinha ele com o dedo indicador balançando negativamente:
“– Psiu, neném. Vocês já saem que não pode”.
Mas, aos trancos e barrancos, a gente pedindo daqui, ele concordando dali, levamos o ano de 1959. Nunca deixamos de terminar uma pelada, Ouvíamos suas broncas, ele virava as costas e reiniciávamos a partida interrompida.
Certa feita, um colega de sala, o “Cabeça de Rolinha” ficou nervoso com a atitude de uma nova professora de História do Brasil. Ela, que nos dava sua primeira aula, em substituição à titular que estava adoentada, quis mostrar autoridade. Moça novinha, não devia ter mais de 25 anos. Chegou em sala e foi logo dizendo:
– Vou dar uma prova para vocês, valendo a nota do mês de maio.
As nossas provas sempre eram marcadas com antecedência de, no mínimo, quinze dias, dando-nos um tempo razoável para estudar a matéria. Ela não podia fazer aquilo conosco, a turma mais veterana do Liceu, a do terceiro científico.
“Cabeça de Rolinha”, um aluno alto, com mais de um metro e oitenta, não gostou. Tentou argumentar:
– Mas, professora, nós não estudamos nada. Nem sabemos qual a matéria.
Ela foi irredutível:
– Não interessa. Vou ditar as questões.
“Cabeça de Rolinha” levantou-se e num gesto de raiva, rasgou o papel almaço onde deveria fazer a prova. Esperei uns dez segundos e saí lá de trás da sala, também rasgando minha folha de papel, solidarizando-me ao gesto do colega. Saímos os dois de sala. A professora caiu numa crise de choro. Fomos levados para a Secretaria. Lá, “seu” Borges, com a fisionomia fechada, nos disse:
– Podem ir para casa. Vocês estão suspensos.
No dia seguinte, chegamos ao colégio para a primeira aula. “Seu” Borges mandou nos chamar na secretaria. Nossas cadernetas tinham sido apreendidas na véspera, dia do incidente. Ele disse para “Cabeça de Rolinha”:
– O senhor está suspenso por uma semana. Sua caderneta vai ficar comigo.
“Cabeça” saiu da secretaria, cabisbaixo:
– E eu, “seu” Borges, também estou suspenso por uma semana? – perguntei.
Ele me olhou de cima a baixo, Devolveu-me a caderneta, dizendo:
– Não, o senhor pode voltar para a sala. Não foi suspenso.
Surpreso, indaguei:
– Mas, por que, “seu” Borges? Nós fizemos a mesma coisa...
– É porque o senhor é aluno daqui desde o primeiro ginasial e nunca sofreu uma punição. Não vou manchar sua caderneta. Já ele é transferido de outro colégio, só tem dois anos de Liceu, merece ser punido. Além disso, foi ele quem teve a iniciativa da falta disciplinar, o senhor apenas se solidarizou.
– Mas, isso é injusto, “seu” Borges. Vai pegar mal pra mim perante a turma. Vão pensar que eu sou seu protegido. Também quero ser punido.
Ele olhou para mim, surpreso. Depois, sorriu. Abanou a cabeça e pediu minha caderneta de volta. Escreveu alguma coisa nela.
– Está certo, aqui vai sua punição. Agora, volte para sua sala – disse, devolvendo-me a caderneta vermelha.
Depois, a caminho da sala, enquanto lia o que ele escrevera na caderneta, não pude também deixar de rir.
Ali estava escrito que eu fora advertido verbalmente, apesar de ele ter consignado a advertência em letras bem claras na caderneta. Até hoje não sei se fui advertido de boca ou por escrito...
Assim era o nosso Nikita. Cara de mau, mas no fundo, no fundo, uma alma bondosa, um coração de mãe, que detestava prejudicar um aluno...
Depois que deixei o Liceu, já adulto, pai de filho, várias vezes nos encontramos na rua e demos boas gargalhadas, relembrando aquela época maravilhosa...
CALF
– Psiu, neném! Não pode, não!!!
Lá vinha ele, no seu costumeiro terno marrom, o dedo indicador balançando naquele seu característico gesto de “não pode”. Descia os degraus da escada que dava acesso ao pátio e caminhava com passos vigorosos em direção à quadra de basquete. O pessoal interrompia por segundos o “racha” que acabara de começar.
Eu, que estava matando aula, disse para Serrinha:
– Vai lá, Serrinha, fala com ele que vocês estão de intervalo. Eu não posso aparecer porque estou matando.
A turma do Serrinha era do primeiro científico. Ele, um pouco temeroso dirigiu-se ao chefe dos inspetores de disciplina:
– Poxa, “seu” Borges, a gente está de intervalo, a professora de História faltou.
Ele, ainda sob a sombra acolhedora do pátio, olhou para Serrinha, depois para o pessoal que estava na quadra, a uns dez metros de distância. Eu procurei ficar atrás de um “cara” da turma deles, o Mangelli, tentando evitar que ele me visse.
Disse para Serrinha:
– Vocês já sabem que o diretor não permite futebol a não ser na hora do recreio.
Continuava a olhar para os garotos na quadra, tentando descobrir alguém de outra turma.
– Mas, “seu” Borges, a gente estava terminando uma partida interrompida no outro dia. Não tem mal nenhum, a gente não tem aula mesmo – tentou argumentar Serrinha.
– Mas, o diretor não deixa. Vocês gritam muito, perturbam os outros que estão em aula. Além disso, depois vão para a sala todos suados, não prestam atenção à nada, ficam conversando o tempo todo – retrucou “seu” Borges.
Repentinamente, dirigiu-se em passos rápidos para a quadra.
“Pronto, ele me viu, tou ferrado” – logo pensei.
Ainda na pista de atletismo, no limiar do cimento da quadra, parou. Falou baixo, quase um sussurro:
– “Seu” Carlos, por favor, venha aqui.
Saí detrás do Mangelli, caminhei vagarosamente em sua direção.
Ele indagou, sério:
– O que o senhor está fazendo aí, misturado com essa turma?
Pensei um instante antes de responder.
– Estava vendo umas coisas do Grêmio, “seu” Borges. Acabei me atrasando, perdi a aula. Também não era tão importante, era História, já tenho nota pra passar – emendei rápido.
– E aí o senhor vem jogar bola com o pessoal de outra série, não é?
Respondi, meio sem jeito, um pouco de cinismo na voz:
– Eu estava à-toa, eles precisavam de alguém para completar um dos times...
Mesmo com o uniforme já molhado de suor, aproximei-me dele, coloquei o braço esquerdo, ensopado de suor, sobre seu ombro.
Quase implorei, voz de pidão:
– Puxa, “seu” Borges, deixa os garotos brincarem. O jogo está empatado, eles apostaram dez cocas. Se o senhor quiser, eu saio, vou lá para o Grêmio, ou fico quieto, sentado aqui num banco, conversando com Cenira. Vou levar falta mesmo.
Ele olhou para mim, ainda com a fisionomia séria. Depois de alguns segundos, não conseguiu esconder um esboço de sorriso que lhe aparecia nos lábios. Afastou minha mão do seu ombro, limpando o suor que lhe molhava o paletó.
– Bem, desta vez passa – disse. – Agora, vejam se vocês não fazem barulho.
Virou as costas e voltou para o pátio, balançando a cabeça para os lados, num gesto de conformismo.
Assim era o “seu” Borges, em 1959, ano em que eu cursava o terceiro científico. No ano anterior, 1958, era muito mais rigoroso, realmente não permitia o jogo de futebol a não ser na hora do recreio. Chegou a apreender e furar várias das nossas bolas de borracha que levávamos para o colégio.
Mas, naquele ano, com a força que o Grêmio alcançou junto ao Professor Aldo, nosso diretor, bem como as atividades aos sábados, intensificadas nos recreios, quando até as meninas levavam bolas de vôlei para uma brincadeira naquele curto período, ele foi amaciando um pouco o rigor.
Era baixinho, pouco mais de um metro e sessenta. O terno marrom era sua marca característica bem como o cabelo todo branco, cortado bem rente, quase à moda escovinha, enevoando-lhe a cabeça. Daí, devido à semelhança que tinha com o então premier russo, Nikita Kruschev, que de diferente tinha apenas a cabeça raspada, passamos a chamá-lo de Nikita. Era o Nikita do LNP em oposição ao Nikita da KGB...
Ele, a princípio não entendeu a origem do apelido. Depois que soube, riu gostosamente, aceitando-o sem reclamar.
Tinha dois filhos que também estudavam no Liceu, Wilson e Carlinhos Borges. Por isso, talvez não se sentisse muito à vontade em proibir os “rachas” dos alunos, porque seus filhos também adoravam futebol e, não raro, eram surpreendidos por ele matando aula e disputando uma pelada animada.
Vivíamos nessa briga de gato e rato com ele. Começávamos um “racha” e dez minutos depois lá vinha ele com o dedo indicador balançando negativamente:
“– Psiu, neném. Vocês já saem que não pode”.
Mas, aos trancos e barrancos, a gente pedindo daqui, ele concordando dali, levamos o ano de 1959. Nunca deixamos de terminar uma pelada, Ouvíamos suas broncas, ele virava as costas e reiniciávamos a partida interrompida.
Certa feita, um colega de sala, o “Cabeça de Rolinha” ficou nervoso com a atitude de uma nova professora de História do Brasil. Ela, que nos dava sua primeira aula, em substituição à titular que estava adoentada, quis mostrar autoridade. Moça novinha, não devia ter mais de 25 anos. Chegou em sala e foi logo dizendo:
– Vou dar uma prova para vocês, valendo a nota do mês de maio.
As nossas provas sempre eram marcadas com antecedência de, no mínimo, quinze dias, dando-nos um tempo razoável para estudar a matéria. Ela não podia fazer aquilo conosco, a turma mais veterana do Liceu, a do terceiro científico.
“Cabeça de Rolinha”, um aluno alto, com mais de um metro e oitenta, não gostou. Tentou argumentar:
– Mas, professora, nós não estudamos nada. Nem sabemos qual a matéria.
Ela foi irredutível:
– Não interessa. Vou ditar as questões.
“Cabeça de Rolinha” levantou-se e num gesto de raiva, rasgou o papel almaço onde deveria fazer a prova. Esperei uns dez segundos e saí lá de trás da sala, também rasgando minha folha de papel, solidarizando-me ao gesto do colega. Saímos os dois de sala. A professora caiu numa crise de choro. Fomos levados para a Secretaria. Lá, “seu” Borges, com a fisionomia fechada, nos disse:
– Podem ir para casa. Vocês estão suspensos.
No dia seguinte, chegamos ao colégio para a primeira aula. “Seu” Borges mandou nos chamar na secretaria. Nossas cadernetas tinham sido apreendidas na véspera, dia do incidente. Ele disse para “Cabeça de Rolinha”:
– O senhor está suspenso por uma semana. Sua caderneta vai ficar comigo.
“Cabeça” saiu da secretaria, cabisbaixo:
– E eu, “seu” Borges, também estou suspenso por uma semana? – perguntei.
Ele me olhou de cima a baixo, Devolveu-me a caderneta, dizendo:
– Não, o senhor pode voltar para a sala. Não foi suspenso.
Surpreso, indaguei:
– Mas, por que, “seu” Borges? Nós fizemos a mesma coisa...
– É porque o senhor é aluno daqui desde o primeiro ginasial e nunca sofreu uma punição. Não vou manchar sua caderneta. Já ele é transferido de outro colégio, só tem dois anos de Liceu, merece ser punido. Além disso, foi ele quem teve a iniciativa da falta disciplinar, o senhor apenas se solidarizou.
– Mas, isso é injusto, “seu” Borges. Vai pegar mal pra mim perante a turma. Vão pensar que eu sou seu protegido. Também quero ser punido.
Ele olhou para mim, surpreso. Depois, sorriu. Abanou a cabeça e pediu minha caderneta de volta. Escreveu alguma coisa nela.
– Está certo, aqui vai sua punição. Agora, volte para sua sala – disse, devolvendo-me a caderneta vermelha.
Depois, a caminho da sala, enquanto lia o que ele escrevera na caderneta, não pude também deixar de rir.
Ali estava escrito que eu fora advertido verbalmente, apesar de ele ter consignado a advertência em letras bem claras na caderneta. Até hoje não sei se fui advertido de boca ou por escrito...
Assim era o nosso Nikita. Cara de mau, mas no fundo, no fundo, uma alma bondosa, um coração de mãe, que detestava prejudicar um aluno...
Depois que deixei o Liceu, já adulto, pai de filho, várias vezes nos encontramos na rua e demos boas gargalhadas, relembrando aquela época maravilhosa...
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